No mundo contemporâneo, o que chamamos de “justiça“ passou por séculos de debates e discussões para ser definido e, mesmo assim, quando nos é perguntado “o que é justiça? ”, temos uma certa dificuldade de dar uma definição exata, embora ela possa ser definida como “a arte de dar a cada um o que é seu por direito”. Uma das maiores contribuições para a construção do conceito de justiça no Ocidente foi a obra “A República”, que, embora seja atribuída a Platão, é um diálogo entre Sócrates e alguns colegas, que entram em questões profundas acerca desse tema, o que faz o livro ser citado à exaustão nas faculdades de Direito do mundo todo, até hoje. Assim, vamos fazer, a partir de hoje, uma série de artigos sobre esses diálogos socráticos e tentar extrair deles reflexões acerca da justiça, de vícios, de virtudes, dentre outras coisas.
Para resumirmos, o debate sobre a justiça começa com um diálogo entre Sócrates e Céfalo, em que o filósofo pergunta a ele sobre sua fortuna e posteriormente sobre o que é a justiça em si. Céfalo responde que a justiça seria pagar suas dívidas e falar a verdade, contudo, é confrontado por Sócrates, que apresenta a seguinte situação: “se um amigo me pede para guardar armas em sã consciência e as pede de volta, quando não está sóbrio, é justo que eu as entregue a ele? ”. Assim, o filósofo e Polemarco, filho de Céfalo, chegam à conclusão de que apenas falar a verdade e pagar suas dívidas não pode ser uma definição suficiente de justiça, ainda que tais virtudes estejam englobadas no rol do que é justo em si. Perceba que a insuficiência da definição de justiça por Céfalo se dá devido a uma questão de estado de consciência: se o indivíduo está com sua consciência alterada e recebe suas armas, ele pode cometer atos errados, que venha a se arrepender depois, logo, veja que há uma relação de sobriedade para com a justiça, sendo que ela depende do estado sóbrio, o qual não se resume à mera alteração de consciência por drogas, mas também por vícios e vaidades: um funcionário público que aceita propina para praticar um ato ilícito em sua repartição também está com a consciência alterada – não por drogas, mas sim pela avareza, um dos pecados capitais que afasta o homem das virtudes e consequentemente de Deus. Por isso, estar em perfeito estado de consciência – ou próximo disso – consigo mesmo é condição necessária para alcançar a justiça.
Entretanto, ainda que o estado de consciência puro seja condição necessária para se alcançar a justiça, ele não é condição suficiente, uma vez que, partindo da definição dos gregos (justiça é pagar suas dívidas e falar a verdade), há momentos em que a verdade talvez seja melhor não ser dita. Um exemplo de tal situação encontramos no Novo Testamento, quando o apóstolo Pedro mente ao dizer que não conhece Jesus três vezes. Neste caso, se falasse que conhecia Jesus – o que era a verdade – certamente seria preso e morto e não teria dado tamanha contribuição ao cristianismo e à população em si, como as curas milagrosas que realizou usando o nome de Cristo (Atos 5.15). Se a justiça é dizer a verdade, então, ela encontra limites em si mesma para atingir sua finalidade, o que pode parecer uma contradição, visto que acabamos de ver que as virtudes são condição necessária para a implementação da justiça e uma das virtudes é a verdade, enquanto a mentira é um vício. Desta forma, pode um vício promover a justiça, como no caso de Pedro?
O filósofo Confúcio diz que há apenas uma situação em que mentir é tolerável: para defender a família e a nação. No caso de Pedro, ele mentiu para defender a família, já que sob a ótica do cristianismo somos todos irmãos, e também para defender a nação, que segundo a ciência política moderna (ver Elementos de Teoria Geral do Estado, Dalmo Dallari, 33ª edição, p. 134), nação é sinônimo de comunidade e comunidades se formam antes mesmo de seus membros terem consciência de que elas existem – o que também é o caso do cristianismo, visto que Deus é o início e o fim. Assim, se aplicarmos elementos da filosofia oriental de Confúcio à filosofia grega de Sócrates, há uma possibilidade de apenas nesses dois casos em específico – defesa da família e da nação – a mentira não ser uma virtude como a verdade para fins de promoção da justiça, mas apenas um ato tolerável. Já Santo Agostinho faz uma segmentação da mentira, dividindo-a em 6 tipos:
1 – A mentira que prejudica alguém, mas é útil ao outro, possuindo um caráter utilitário para o mentiroso;
2 – A mentira que não beneficia nem o mentiroso, nem o alvo;
3 – A mentira que dá prazer ao mentiroso;
4 – A mentira que é contada para se divertir com a reação das vítimas;
5 – A mentira que induz a um erro religioso;
6 – A mentira que salva a vida de uma pessoa, que é o caso da mentira de Pedro.
Santo Agostinho diz também que todo homem é um pecador e, portanto, um mentiroso, e a mentira, embora não possa ser entendida como uma virtude, pode salvar a vida de alguém e beneficiar outrem, como o sexto e o primeiro tipos de mentira. Mas, se a mentira não pode ser uma virtude e a virtude é necessária para promover a justiça, ainda há o problema central na questão de Pedro, se ele fez certo ou errado em mentir.
Aristóteles, por sua vez, dizia que a mentira é ou um aumentativo, ou um diminutivo da verdade. Aplicando esta tese sobre o caso de Pedro, há de se perguntar: até que ponto o apóstolo conhecia o Messias? Como não O conhecia completamente e considerando a teoria de Aristóteles (e apenas a teoria de Aristóteles aplicada a este caso concreto), ao dizer que não conhecia Jesus, Pedro pode não ter mentido, afinal, os acusadores não perguntaram até que ponto ele conhecia Cristo. Embora essa pareça ser uma justificativa para o sucesso de Pedro como missionário, na verdade, ele se deve sobretudo a seu arrependimento por ter negado Jesus, que, segundo o Evangelho, é sobretudo justo, algo que ainda não está definido no debate entre Sócrates e os amigos.
O diálogo segue civilizado entre os gregos até que um deles, Trasímaco, que era um dos muitos sofistas da época, faz uma intervenção rude e começa a debater com Sócrates sobre justiça ser, em sua concepção, “obediência ao interesse do mais forte”. No entanto, essa definição logo cai também com o exemplo dos governantes, que são os mais fortes em uma cidade: os governantes, conforme argumenta Sócrates, ao fazerem as leis, não são infalíveis e podem errar na criação. Quando o governante erra ao fazer a lei, segundo Trasímaco, ele não a fez com base em seu interesse, mas sim com base no interesse dos mais fracos, por isso, quando alguém obedece uma lei que o governante criou de forma errada, essa pessoa não está se submetendo ao interesse do mais forte, mas sim dos mais fracos, o que torna a tese do sofista contraditória, afinal, como que a justiça pode ser a obediência ao interesse do mais forte se o que se obedece é uma lei equivocada, que reflete o interesse dos mais fracos? Não faz sentido.
Sócrates vai além e faz uma analogia das artes para refutar a tese de Trasímaco: na Grécia antiga, eles chamavam de “arte” a medicina, a navegação, a pintura, a governança etc. Cada “artista”, isto é, o médico, o pintor, o marinheiro, o governante, realizava a sua arte não pensando em si, mas sim pensando nos outros: o médico presta serviço para o doente, o pintor para quem deseja uma obra de arte e o governante para os súditos, que são os mais fracos. Logo, governar não pode ser jamais o interesse do mais forte, porque é direcionado aos mais fracos, que remuneram o governante para isso, bem como os outros artistas quando prestam seus serviços. O governante em específico pode ser remunerado de 3 formas: com dinheiro, com honra ou com multa por se recusar a governar, dado que o governo ideal deveria ser formado pelo homem mais sábio da cidade, logo, se ele se recusasse a governar, seria multado por isso. Assim, a cidade perfeita para Sócrates é aquela em que os homens disputam para não governar, dada a responsabilidade que o cargo de governante traz, e não como é hoje, para decidir quem vai ser o governante. O modelo de Sócrates é perfeito na teoria, porque impõe freios aos homens sobre seus vícios e compulsões para se chegar ao governo e os substitui pela virtude de evitar o poder, que é um fator corruptível da dignidade e transformador de vícios. A pior parte da punição do homem virtuoso que se recusa a governar não é nem a multa, mas sim saber que ele seria governado por alguém pior caso recusasse o governo, e esse medo é que o fará aceitar o título de governante, ainda que haja a briga para evitar o poder – e não para detê-lo. Uma vez no cargo, o homem virtuoso, para o qual o governo é um peso, não uma benesse, teria que considerar, durante a condução de seu mandato, os interesses dos mais fracos, que são os súditos que se sujeitaram àquele governo, indo, portanto, ao encontro da justiça, posto que o administrador é uma pessoa virtuosa e que, por isso, atenderá aos interesses virtuosos dos mais fracos. O mesmo não ocorreria se o governante fosse uma pessoa eivada de vícios, pois a tendência seria que ele atendesse aos interesses eivados também de vícios dos súditos mais fracos até deteriorar o estado.
Inclusive, Sócrates usa essa linha de raciocínio para refutar de vez Trasímaco: ele diz que a injustiça é boa e que a justiça é ruim, no entanto, Sócrates pede para que ele imagine a injustiça completa em uma quadrilha de assaltantes. Se isso ocorrer, os próprios assaltantes se matarão entre si e sequer irão concluir o roubo, pois um tentará roubar o que o outro já roubou. Assim, veja que uma sociedade completamente injusta é impossível, pois deteriora-se, o que nos permite concluir, a partir de uma análise proporcional, que a injustiça é algo pouco ruim se aplicada um pouco e muito ruim se aplicada completamente, já que torna impossível qualquer associação, sendo necessário um mínimo de justiça para reger quaisquer relações. Desta forma, quanto mais justa uma sociedade é, mais ela tende a convergir e a prosperar, até que se chegue à utopia proposta por Sócrates, dos homens virtuosos disputando quem não vai governar ao invés de disputarem o governo.
Fomos da Grécia Antiga ao Velho Testamento para investigar os fundamentos da virtude objeto deste texto, no entanto, uma coisa não ficou clara: o que é, afinal, a justiça? Sócrates termina o primeiro livro de “A República” afirmando que, embora tenha vencido Trasímaco na argumentação, se desviou do objetivo principal, que era entender o que era a justiça, e como não descobriu, sequer sabe se ela é virtude ou não, mesmo com os brilhantes ensaios. Tal como dito na introdução, “A República”, embora não seja um livro grande, é extremamente conciso e recheado de informações que dariam uma tese de doutorado ou uma dissertação de mestrado extensa, por isso, iremos definir justiça no próximo artigo desta série. Enquanto isso, deixe um comentário e compartilhe esse texto para incentivar o debate, afinal, se nem Sócrates foi capaz de definir a justiça, quem somos nós para tal?
Vinicius Mariano, para Vida Destra, 30/05/2022.
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