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A Questão da Autonomia/Independência do Banco Central – Parte I

 INTRODUÇÃO

 

Uma das questões da atualidade que suscitam mais polêmica na esfera econômico-financeira é a que envolve a independência/autonomia dos bancos centrais. Os defensores dessa ideia argumentam que, na prática, essa é a melhor forma de garantir a estabilidade da moeda de uma nação. A justificativa dada é que a independência ou a autonomia daria condições ao banco central de se manter imune às pressões políticas para afrouxar a disciplina e o rigor da política monetária. Para esses teóricos, esse tipo de pressão é característica, sobretudo, de períodos eleitorais.  Nestes períodos, os governos têm interesse em implementar políticas expansionistas, com o objetivo de obter um crescimento mais rápido do produto e do emprego, ainda que não seja sustentável ao longo do tempo, em decorrência dos seus custos inflacionários.  O Brasil, país com histórico de inflação alta e persistente, apenas com a implantação do Plano Real, em 1994, conseguiu mantê-la controlada. Esse feito, para muitos estudiosos, está relacionado principalmente à maior autonomia que o Banco Central do Brasil adquiriu nestes últimos tempos em relação ao Executivo Federal, sendo proibido por lei de financiar os déficits governamentais, como ocorria no passado.

No cenário internacional, nas décadas recentes ocorreu uma tendência de os governos nacionais concederem maior independência ou autonomia aos seus bancos centrais, principalmente por conta do consenso das sociedades nacionais em torno da estabilidade de preços, o que pressupõe que tal medida criará um ambiente adequado para o controle da inflação.

É nesse contexto que assistimos no Brasil ao desenrolar dessa controvérsia, com a aprovação recente, pela Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei Complementar Nº 19 de 2019 (PLC 19/2019), de autoria do Senador Plínio Valério, já votado no Senado, que busca delinear o grau de liberdade de atuação para o Banco Central. Esse projeto irá agora para sanção do Presidente Jair Bolsonaro, que poderá aprovar na íntegra o texto ou vetar alguns dispositivos.

Apesar de envolver principalmente estudiosos e profissionais ligados à área, além do governo central, a questão da independência/autonomia do Banco Central não é apenas uma discussão teórico-acadêmica, restrita aos interesses do sistema financeiro, ou a um setor do governo. Não obstante a natureza dual público-privada dos bancos centrais, esse debate tem uma amplitude muito maior, já que o mesmo deverá trazer uma definição sobre quem de fato controlará o Banco Central. Essa também é uma questão de Estado, que afeta toda a sociedade. Por isso é uma discussão que se reveste de uma importância toda especial.

Neste e nos próximos artigos iremos analisar de forma sucinta as origens desse debate, conceituação de independência/autonomia do banco central, posicionamentos teóricos e as evidências empíricas levantadas tanto por defensores como pelos oponentes da independência/autonomia da autoridade monetária, além de situar contextualmente o caso brasileiro. 

1.ORIGENS E EVOLUÇÃO DO DEBATE

 

Nem sempre se acreditou que se deveriam estabelecer limites rígidos à concessão de crédito aos governos por parte dos seus bancos centrais. Muito menos que estes deveriam ficar estritamente independentes daqueles. Essa é uma tendência relativamente recente. Quando do seu surgimento, os bancos centrais tiveram como uma de suas atribuições principais, além da preservação da estabilidade da moeda e do sistema financeiro em geral, o financiamento dos governos nacionais. Os bancos centrais, nesse período, funcionaram como garantidores do desenvolvimento econômico, já que tinham como principal tarefa a prevenção e solução para as crises que surgiam na arena econômico-financeira.

No entanto, diante das transformações ocorridas no cenário internacional nas últimas décadas, principalmente com o advento e o rápido avanço da globalização, as crises passaram a assumir características peculiares e distintas. Até uma nova terminologia foi estabelecida para identificar a combinação da crise recessionário-inflacionária na década de 70, algo inédito à época: estagflação. Isto é: a coexistência de alta inflação e desemprego ao mesmo tempo, fenômeno antes inexistente. Para muitos analistas, os instrumentos utilizados até aquele período para garantir o pleno emprego tinham esgotado o seu papel. Os bancos centrais tinham uma função fundamental nesse esquema, já que uma parcela considerável do crescimento posterior ao fim da Segunda Guerra Mundial foi obtida através de políticas fiscais e monetárias expansionistas, onde estas últimas ficam sob a responsabilidade dos bancos centrais. Muitas vezes a manutenção de taxas de juros reais negativas, uma política recomendada pelo economista britânico John Maynard Keynes, principal arquiteto do sistema monetário-financeiro de Bretton Woods, adotado no pós guerra, foi um instrumento usado para impulsionar o crescimento econômico. Mas com a alteração do ambiente favorável a estas políticas, principalmente por conta dos choques do petróleo da década de 70 e a consequente estagflação, começou a haver o questionamento da subordinação dos bancos centrais aos objetivos da política macroeconômica dos governos. O grande consenso da sociedade em torno da busca do pleno emprego foi eclipsado pela ascensão dos vetores sociais que viam como objetivo primordial a estabilidade de preços, diante do recrudescimento inflacionário. Assim, surgiram novas abordagens teóricas aos limites de atuação do Estado. Nessa perspectiva é que o tema da independência/autonomia do banco central começa a ser tratado com profundidade a partir das décadas de 80 e de 90. Para seus defensores, os bancos centrais estavam sendo desviados de sua função primordial, que era a defesa do poder de compra da moeda, por conta de interesses políticos. A necessidade de um novo desenho institucional para as políticas monetária e fiscal mostrou-se relevante também em consequência do surgimento de inovações financeiras e de uma maior importância relativa da concessão de crédito para o crescimento das economias.

Dessa forma, o fortalecimento da tese de independência/autonomia do banco central passou a ser vista pelos defensores da ideia como essencial à estabilidade de preços, condição fundamental para um bom desempenho econômico das nações. Essa tese ganhou espaço em muitas partes do mundo. Entre 1989 e 1994, mais de trinta países concederam maior grau de independência ou autonomia a seus bancos centrais, principalmente na Europa, como consequência do processo de unificação monetária. Assim, uma das exigências para um país europeu fazer parte da União Monetária Europeia-UME é a renúncia ao seu poder de emissão monetária, através da subordinação a um banco central único e independente, que é o Banco Central Europeu, criado nos moldes do antigo Bundesbank, o banco central alemão, célebre por sua disciplina monetária e autonomia frente às decisões de governo. Muitos países conhecidos por sua disciplina monetária, como Reino Unido, Nova Zelândia e Chile concederam autonomia a seus bancos centrais, enquanto outros países estudam aplicar idêntica medida. Após trinta anos de debates no Congresso Nacional, finalmente o Brasil está prestes a implementar um modelo formal de autonomia de seu Banco Central, baseado em mandatos fixos para o Presidente e os Diretores da instituição, intercalando mandatos do Presidente da República com os diretores do Banco Central, com o objetivo de preservar estes de pressões políticas externas, relativas à condução da política monetária.

A despeito do amplo grau de difusão do tema da independência/autonomia da autoridade monetária por todo o mundo, ele não se constitui em consenso, como seria de se esperar. A defesa dessa tese envolve a defesa de questões fundamentais para algumas escolas de pensamento econômico, que vão desde a crença na auto regulação da economia, passando pela concepção de moeda, até a coordenação entre políticas e a interação entre economia e política. São questões suscetíveis a análises divergentes e até totalmente contraditórias, daí que a discussão em torno delas resulte em recomendações distintas.

 

Continua no próximo artigo!

 

 

Lívio Oliveira, para Vida Destra, 15/02/2021.                                                            Sigam-me no Twitter! Vamos debater o assunto! @liviololiveira

 

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8 COMMENTS

  1. Essa discussão é daquelas em que sempre haverá discussões e rediscussões, como vc deixa implícito ao final do artigo. Isso, talvez, pela quantidade e complexidade de variáveis envolvidas, que envolvem entre outras culturas nacionais, estruturas estatais, poder econômico, entre outras. Aguardando os próximos capítulos, Lívio. Parabéns. Ah, talvez vc tenha cometido uma injustiça com os sociais democratas. Até onde me lembre, mas não significa que tenha certeza, a estagflação foi uma das pérolas da República de Weimar. Parabéns, mais uma vez.

    • Grato pelo comentário Fábio. De fato, a autonomia dos bancos centrais é uma das mais complexas e que mais suscitam debates acalorados na Ciência Econômica, por envolver a questão fundamental da moeda e de quem a controla. Sobre a a república de Weimar, o fato é que a hiperinflação alemã, que ocorreu após o término da I Guerra, foi resultado direto das pesadas reparações do Tratado de Versalhes, impostas pelos aliados vencedores, que arruinaram a Alemanha. Na sequência, houve uma rápida e temporária recuperação econômica alemã. Nos anos de 1926 , 1927 e 1928 as taxas de crescimento real do PIB da Alemanha foram de 2,8%, 9,9% e 4,4%; e a taxas de inflação foram de 1,8%, 2,6% e 2,5% respectivamente. Isto é, alto crescimento econômico e baixa inflação. No entanto, essa recuperação econômica foi abortada pelo crash de 1929 da Bolsa de Valores de Nova Iorque. Fonte: Robert Hetzel, in German Monetary History in the First Half of the Twentieth Century.

  2. Lívio você deu uma aula, parabéns! Vamos aguardar a 2ª parte.
    Eu receio de falar algo, até porque somos o país da corrupção, penso que o Presidente da República ficará mais uma vez de mãos atadas, Banco Central autônomo não é o mesmo que um Banco Central independente, porque o Bolsonaro tem o compromisso com os eleitores e País para uma agenda de crescimento. E se o Banco Central não estiver alinhado com essas políticas, isso não vai se concretizar. E como fica?

    • Grato pelo comentário Rose. O próximo artigo, a ser publicado semana que vem, irá conter tópicos que irão esclarecer suas ponderações.

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Lívio Luiz Soares de Oliveira. Economista, analista pesquisador, articulista do Vida Destra