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Seguimos com o nosso compromisso de trazer até vocês, todos os sábados, artigos sobre temas relevantes publicados pela imprensa internacional e traduzidos pela nossa colaboradora, a jornalista e tradutora profissional Telma Regina Matheus. Apreciem!
A normalização da selvageria
As sociedades que abriram mão da liberdade, logo a encontrarão substituída pela violência.
Fonte: The Spiked
Título original: The normalisation of savagery
Link para o artigo original: aqui!
Publicação: 31 de outubro de 2023
Autor: Brendan O’Neil
Editorial
Desde o pogrom do Hamas em 7 de outubro [2023], houve uma tempestade de comentários sobre como a cultura universitária do Ocidente se tornou desequilibrada. Políticos e articulistas estão perplexos com o fato de que, em universidades onde é uma “microagressão” perguntar a alguém sobre sua origem, e onde você pode ser submetido a um interrogatório do tipo Salem por usar uma fantasia ofensiva no Halloween, a violência genocida real não parece incomodar as pessoas. Os mesmos jovens maoístas que choram e batem os pés se você disser que “as mulheres não têm pênis” deram de ombros, coletivamente, diante do assassinato em massa de mulheres e crianças judias. Alguns até justificaram. “Glória aos nossos mártires”, dizia uma projeção na parede de um prédio da Universidade George Washington.
Toque no cabelo de um estudante afro-americano e você será considerado um supremacista branco, mas assassine judeus a sangue frio e você será considerado um mártir. Use trancinhas no seu cabelo de gente branca e você será um ladrão racista, mas invada um país com a intenção expressa de matar judeus e você será a “resistência”. Sirva sushi de gosto ruim — como fez a cafeteria hiperidentitária Oberlin há alguns anos — e você será amaldiçoado por apropriação cultural. Mas assassine centenas de participantes em um festival pela paz no sul de Israel e as mesmas crianças que reclamam dos pratos japoneses servidos por chefs brancos arranjarão justificativas para você. Israel é “totalmente responsável” por “toda a violência que se alastra” no Oriente Médio, afirmaram estudantes ativistas em Harvard antes mesmo que os corpos dos 1.400 israelenses esfriassem.
Nossas universidades identitárias discutem “todos os temas possíveis e disponíveis”, disse o ex-senador de Nebraska, Ben Sasse, mas não se importam com os “mais grotescos e graves ataques contra o povo judeu desde o Holocausto”. Os universitários fazem o maior alarde sobre coisas “estúpidas”, como “microagressões e pronomes de gênero”, mas ironizam — ou fazem pior — “a carnificina de israelenses inocentes”, diz um colunista. Quando estudantes judeus da Cooper Union, na cidade de Nova York, tiveram que ser trancados na biblioteca para serem protegidos de uma multidão de ativistas “pró-Palestina”, Robert Pondiscio, do American Enterprise Institute, disse: “Nem mais uma palavra — nunca mais — sobre espaços seguros, microagressões ou ‘eliminação’ em um campus universitário. Nem mais uma maldita palavra”.
Essas críticas furiosas aos jovens moralistas em nossos campi são compreensíveis. Não é apenas irritante, mas revoltante o fato de que jovens, que veem como ato de violência a “identificação errônea de gênero”, mostrem tranquilidade em relação à violência literal. [É exasperante] o fato de que esses filhos e filhas do privilégio, sensíveis e piegas, exijam um espaço seguro, com livros para colorir e cachorros para afagar — quando um palestrante polêmico entra pela porta de sua faculdade da Ivy League —, mas não parecem considerar que os judeus israelenses merecem um espaço seguro contra os neofascistas do Hamas. Ferir a autoestima deles? Sacrilégio. Ferir e matar judeus desarmados? Martírio de merda.
E, no entanto, é importante dizer que essa simpatia medonha pelo Hamas, esse desprezo misantrópico pela segurança e dignidade dos judeus, não contradiz de fato a ideologia do espaço seguro. A atitude leviana do grupo de identitários com relação à macroagressão de massacrar civis não é realmente uma ruptura com seu policiamento obsessivo da microagressão de ferir os sentimentos de alguém com uma ideia desagradável. Não. Há uma linha lógica que vai desde a denúncia furiosa de certas formas de discurso como “violência” até a aceitação implícita da violência real, desde que dirigida contra pessoas “más”. Essa linha é o que poderíamos chamar de selvageria narcisista, em que quase tudo pode ser justificado em nome da proteção de nossas crenças e do nosso senso psíquico de segurança contra os perigos. Censura, assédio, até mesmo agressão física — quando o ‘eu’ e sua respectiva saúde emocional são sacralizados acima de tudo, acima de qualquer outra consideração moral e social, tudo se torna permissível em sua defesa.
O que testemunhamos nas últimas semanas é a violência latente na ideologia do espaço seguro. O fato de os ativistas do espaço seguro, no campus do século XXI, parecerem concordar com um dos piores atos de violência dos tempos modernos não é prova de que eles tenham traído os princípios do espaço seguro, mas, sim, de que o espaço seguro se presta incrivelmente bem à intolerância, até mesmo à variedade homicida. Há alguns anos, proferi uma palestra na Universidade da Califórnia, em Irvine, sobre “a violência do espaço seguro”. Argumentei que o que mais chama a atenção nos espaços seguros é o quanto eles são inseguros. Afirmei que, sim, essa nova ideologia se justifica na linguagem de manter os alunos a salvo da “intimidação”, mas, na verdade, os espaços seguros são “zonas inóspitas e autoritárias”, que são “sustentadas pela ameaça”. Pois, no próprio ato de prometer proteção contra pessoas transgressoras, o espaço seguro coloca as pessoas transgressoras na linha de mira, expondo-as a formas severas de reprimenda social e física.
Há muito tempo que a violência acompanha o culto do espaço seguro no campus. As pessoas têm sido humilhadas, atacadas e até mesmo submetidas a agressões com urina, tudo em nome da “segurança”, tudo em nome da preservação do sagrado espaço seguro contra a influência moral maligna delas. Em universidades do Reino Unido, reuniões de estudantes pró-Israel foram invadidas por representantes estudantis e esquerdistas, que essencialmente condenaram essas reuniões como “inseguras” para estudantes árabes e de outras minorias étnicas. Essas reuniões de estudantes, em sua maioria, judeus, foram até mesmo atacadas fisicamente: janelas quebradas, cadeiras arremessadas. Esse é o terror da segurança. Ao decretar que essas reuniões são inseguras, uma ameaça ao bem-estar emocional dos alunos, os ideólogos universitários dão sinal verde para ações extremistas contra elas.
Ora, considere o tratamento dado aos “perigosos” acadêmicos críticos de gênero. A porta do escritório de uma acadêmica foi encharcada de urina. Outros tiveram de contratar seguranças apenas para circular pelo campus. Kathleen Stock foi praticamente expulsa da Universidade de Sussex pelos chamados aliados trans. Disseram que ela era “nociva e perigosa” à saúde mental deles. O orwellianismo passou dos limites. Em nome da nossa segurança, vamos confiscar a segurança da Professora Stock. Para manter Sussex como um “espaço seguro”, o senso de segurança da professora Stock teve de ser erradicado, para que ela pudesse sair e levar com ela suas ideias malévolas, como a de que homens não podem ser lésbicas. Quando Stock falou na Oxford Union no início deste ano, multidões de estudantes se enfureceram. Merecemos nos sentir “seguros contra a intolerância e o assédio”, disseram eles, e com Stock por perto, não nos sentimos assim. Versão mais curta: temos que atacar Stock para nos sentirmos seguros.
A intimidação está no cerne da ideologia do espaço seguro. A própria concepção de que alguns indivíduos e suas ideias são tão prejudiciais à saúde espiritual de uma pessoa, que tornam necessárias medidas especiais para mantê-los afastados — isto incita ativamente a histeria e a violência. Fui impedido de falar na Universidade de Oxford em 2014, com o argumento de que a minha presença “faria com que os alunos se sentissem inseguros”. Os manifestantes estudantis ameaçaram comparecer ao debate com “instrumentos”, se fosse realizado — e eles não estavam se referindo a instrumentos musicais. Eles estavam tão convencidos de que minhas palavras — nesse caso, sobre a questão do aborto — causariam danos irreparáveis à sua autoestima que estavam dispostos a armar-se com cassetetes contra a minha liberdade. Para manter sua segurança, tinham que comprometer a minha.
A ideologia do espaço seguro alimenta o pânico existencial. Assim como os aldeões da época medieval, que enlouqueciam com visões de lobos e monstros escondidos em suas fronteiras, o estudante que vive em um espaço seguro acaba se convencendo de que todos os que estão fora desse espaço são perigosos, ou seja, perversos. Eis por que, tal como argumentei em 2016 na Califórnia, o espaço seguro deve ser sempre “fortalecido por uma ameaça latente de força contra os transgressores”, contra qualquer um que transgrida o “novo culto à segurança psíquica e ao conformismo moral”. É um erro pensar nos universitários radicais como “flocos de neve”, criaturas hipervulneráveis que podem derreter ao entrar em contato com um pensamento alternativo. Pois há uma escuridão, uma crueldade no ativismo do espaço seguro. É a tirania disfarçada de terapia.
Portanto, não é surpreendente, nem contraditório, que os ideólogos acadêmicos que se enfurecem com palavras politicamente incorretas, agora aceitem, ou pelo menos justifiquem, a violência neofascista. Eles estão projetando sua ideologia de segurança nos eventos do Oriente Médio. Em suas mentes, os israelenses são violadores do espaço seguro dos palestinos e, portanto, a vingança contra eles não é apenas justificada, mas também benéfica. É impressionante o quanto a linguagem ocidental do pânico mental está sendo usada para explicar a crise no Oriente Médio. Haverá um “tsunami de problemas de saúde mental” como resultado do último conflito entre Israel e Gaza, informa a NPR. O ataque a Gaza está tendo um impacto terrível sobre a “saúde mental das crianças palestinas”, afirma um psicólogo dos Estados Unidos. Muitos radicais acadêmicos também leem cada evento pelo prisma das noções ocidentais de vulnerabilidade. Não seria nenhuma surpresa se eles vissem o pogrom do Hamas de 7 de outubro [2023] menos como um massacre racista contra o povo judeu do que como um ato de vingança terapêutica contra um vizinho “privilegiado” — uma vingança catártica contra aqueles que fazem os árabes se sentirem “inseguros”.
Desde o pogrom de outubro, o antissemitismo disparou nos campi dos Estados Unidos, e grande parte dele é corroborada pelo culto à segurança. Erwin Chemerinsky, reitor da Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia, em Berkeley, relata que uma aluna lhe disse que “o que a faria se sentir segura” em sua faculdade de Direito seria “livrar-se dos sionistas”. Em suma, para bajular meus sentimentos narcisistas de segurança psíquica e ideológica, certos judeus devem ser expulsos. O espaço seguro também permite claramente o racismo.
O ódio é implacável. Um professor da Universidade de Columbia disse que o ataque do Hamas a Israel foi uma “vitória impressionante”. Um professor de Yale disse que o 7 de outubro foi um “dia extraordinário” e um grande golpe para o “estado colonial genocida” de Israel. Um professor de arte em Chicago disse: “Os israelenses são porcos. Selvagens… Excremento irremediável”. Um professor da Universidade da Califórnia, Davis, disse abominavelmente que “os jornalistas sionistas… têm casas [com] endereços, filhos na escola” e “eles deveriam nos temer”.
Observe a empolgação visceral que essas pessoas parecem sentir com atos distantes de violência inimaginável. O culto à vulnerabilidade — e seu primo horrendo, a vingança — roubou-lhes a humanidade. Ver os israelenses como porcos e excrementos, e os sionistas ocidentais como criaturas suspeitas que merecem viver com medo, isso fala da desumanidade que abstrai constantemente os indivíduos. [Fala] de tratar as pessoas como “oprimidas” e, portanto, boas, ou “privilegiadas” e, portanto, ruins. É um pequeno passo das teorias acadêmicas de “privilégio branco” para rebaixar os israelenses como excrementos, cujos assassinatos devem ser celebrados. O motivo pelo qual algumas pessoas nas universidades americanas sentem um prazer de segunda mão com o pogrom do Hamas está no fato de que elas acreditam que isso fortalece sua visão de mundo de privilégio/opressor e dá força física ao seu próprio desprezo pelos mercadores da insegurança. Eles aceitam o pogrom como uma espécie de terapia primal.
É assustador como muitos jovens parecem despreocupados com o terrorismo do Hamas. Uma pesquisa de Harvard, nos Estados Unidos, revelou que 52% dos jovens de 18 a 24 anos apoiam Israel, mas surpreendentes 48% apoiam o Hamas. Cinquenta e um por cento disseram que a violência do Hamas contra civis israelenses é justificada. Como dizia uma manchete da Newsweek, “Um número insano de jovens da Geração Z apoia a matança de israelenses inocentes pelo Hamas”. Pesquisas no Reino Unido sugerem que um número significativo de jovens rejeita a ideia de que o Hamas é terrorista. Não pode haver maior acusação ao nosso sistema educacional e a todos os novos sistemas de socialização do que o fato de que muitos da nova geração testemunharam o pior ato de violência antissemita desde o Holocausto e pensaram: “Talvez Israel tenha merecido”. Agora podemos ver, com toda a clareza, o impacto pernicioso que a política identitária e o culto à piedade tiveram na alma dos jovens. Isso os afastou dos valores de nossa civilização, a tal ponto que eles sentem mais afinidade com a barbárie regressiva e antiocidental do Hamas do que com os civis judeus e o Estado democrático que foram profanados por essa barbárie.
Estamos vivendo a normalização da violência. A dizimação dos ideais de liberdade, especialmente entre os millennials e a Geração Z, deu origem a uma situação em que o debate é desencorajado por ser prejudicial, em que a força bruta é usada contra os dissidentes, e em que até mesmo o terror genocida pode ser celebrado se isto silenciar os “privilegiados”. Na ausência da liberdade de expressão, os rituais pré-modernos de humilhação e punição dos transgressores da ortodoxia voltaram com uma vingança sangrenta. Certamente, o sombrio e trágico mês de outubro de 2023 será um alerta para o Ocidente.
Brendan O’Neill é redator-chefe de política da spiked e apresentador do podcast da spiked , The Brendan O’Neill Show. Assine o podcast aqui.
Traduzido por Telma Regina Matheus, para Vida Destra, 04/11/2023. Faça uma cotação e contrate meus trabalhos através do e-mail mtelmaregina@gmail.com ou Twitter @TRMatheus
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