Recentemente, o debate sobre legalização das drogas voltou à boca do povo, após o Supremo Tribunal Federal (STF) retomar o julgamento que pode descriminalizar o porte de pequenas quantidades de maconha para consumo próprio. Como a maioria dos julgamentos da Corte, este também foi alvo de polêmicas, com argumentos de ambos os lados e ideologias, por isso, pretendo, através deste texto, apresentar uma crítica argumentativa marxista – ainda que eu não seja marxista – contrária à política de legalização das drogas, com o intuito de mostrar aos leitores, principalmente os de esquerda, se este texto chegar a algum, que nem sempre as coisas são como pensamos ser, premissa que vale para a direita conservadora em relação à obra de Marx e à esquerda marxista que defende a legalização dos entorpecentes.
Um dos principais pontos que Marx cita no Manifesto Comunista é que “a burguesia [isto é, os empresários] não pode viver sem revolucionar o mundo em que vive, isto é, eles [os empresários] criam um mundo à sua imagem e semelhança”. Contudo, há algo por trás desta constante transformação, que é a busca por dinheiro: nenhum comércio existe pela benevolência do seu dono em vender o que vende, mas sim pela busca do capital, isto é, do dinheiro.
Embora a maioria dos comércios sejam legítimos em sua forma de ganhar dinheiro, alguns não o são, a exemplo de clínicas de aborto, grupos que promovem o tráfico infantil, assassinos de aluguel, pornografia etc. Notadamente, há burgueses que revolucionam o mundo à sua volta para fazerem o mal, e é o que se pretende com a legalização das drogas, dado que todos sabem dos males que essas substâncias causam (depressão, ansiedade, suicídio, comportamento antissocial, dependência).
Ou seja, a legalização das drogas torna legalizada uma atitude imoral, e as consequências disso são devastadoras, porque trazem consigo os elementos marxistas de exploração do trabalho e dominação pessoal. O primeiro diz respeito à ideia da mais valia, isto é, o trabalhador ganha um salário X, mas o que ele produz é muito maior. Essa teoria já foi refutada, entretanto, merece destaque o seguinte questionamento: se houver a legalização das drogas e consequente aumento do seu consumo, teremos trabalhadores mais debilitados, e trabalhadores mais debilitados, seja por doença, seja por letargia, terão salários maiores ou menores? Por uma questão de lógica, salários menores e piores condições, já que há quem aceite trabalho escravo e prostituição barata em troca de dinheiro para utilizar droga.
O segundo ponto é o da dominação pessoal, que significa que o uso de drogas conduz ao vício, e o vício conduz à dependência dos fornecedores, que, se legalizadas as drogas, serão muitos. Com isso, gera-se uma nova relação de opressor, vendedor de drogas e oprimido, que é o usuário. Óbvio que essa relação pode ser atenuada ou até eliminada por um tratamento, contudo, ainda no tratamento, nota-se outra relação de opressor (médico) e oprimido (paciente), visto que o tratamento não é gratuito. Assim, com a legalização das drogas, a burguesia ganha nas duas mãos, porque ao mesmo tempo que aumenta a procura por drogas e lucra com ela, também aumenta a procura de tratamento para os efeitos devastadores da droga e, consequentemente, hospitais e clínicas têm lucro com isso.
Esses problemas são agravados se considerarmos a atual era do capitalismo em que estamos, isto é, a era da financeirização e do capital fictício. Na teoria marxista, capital fictício é aquele bem que não tem valor hoje, mas que no futuro, a partir de um acontecimento, terá um valor alto, sendo as ações de empresas o melhor exemplo disso. Com a questão da legalização das drogas, o capital fictício age da seguinte maneira: investidores compram ações de empresas farmacêuticas (capitais fictícios) que irão comercializar o produto hoje pelo valor X. Acontece que esses investidores compraram tais ações esperando receber lucro no futuro, e a única forma que as farmacêuticas têm de conseguir lucro e ainda pagar os investidores é aumentando muito a venda de drogas e, para isso, terão de usar artifícios como a propaganda, como aquelas propagandas de cerveja em que as pessoas aparecem se divertindo após consumir o produto, gozando de extrema liberdade.
Porém, acontece que a droga vai produzir o extremo oposto: se entendemos liberdade como a capacidade de agirmos com autonomia em relação ao nosso próprio corpo, e o vício em drogas faz com que a pessoa tenha atitudes cada vez mais impulsivas, podemos concluir que as drogas tiram a liberdade, e que a legalização – que faz o consumo aumentar – acelera esse processo de destruição da liberdade. Essa situação é o que o filósofo marxista esloveno Slavoj Zizek chama de “a falta de liberdade sob o pretexto da liberdade” e está contida na dialética marxista da tese, antítese e síntese: se o não uso de drogas é a tese e o uso de drogas para obter liberdade é a antítese, então a dependência e a consequente negação da liberdade são a síntese.
Marx diz ainda que os comunistas podem condensar a sua teoria numa única expressão: supressão da propriedade privada. No entanto, o que devemos pensar como propriedade privada nos dias de hoje? Os conceitos de meios de produção certamente estão incluídos, mas é possível alongar a ideia para além disso, pois propriedade deriva do latim “proprietas,atis”, qualidade do que é próprio. Assim, não podemos incluir nosso corpo e nossa autonomia como propriedade, já que pertence a nós mesmos? Se a resposta for sim, então, a legalização das drogas promove a superação da propriedade inicial, que é a autonomia sobre o próprio corpo e sobre a própria vida.
Tal superação, todavia, deve ser readmitida, pois a autonomia sobre o próprio corpo é básica para a vida em sociedade. Com isso, o grande capital oferecerá serviços de recuperação a viciados em drogas, seja de forma direta, isto é, através do oferecimento de clínicas, seja de forma indireta, através de serviços governamentais, como a vacina antidrogas que está sendo pesquisada pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Ou seja, o fato é que a mesma entidade que vende o veneno vende também a cura para ele, modificando assim as relações de outro aspecto da teoria marxista: a infraestrutura e a superestrutura. A infraestrutura é o conjunto de relações de produção, isto é, o poder econômico, e a superestrutura, a expressão cultural que resulta das interações na infraestrutura, como a religião, a lei, as artes, a educação etc. Marx acreditava que a infraestrutura determinava a superestrutura, entretanto, estava errado e foi corrigido por filósofos pós-marxistas, como Gramsci e os frankfurtianos, que descobriram que há uma relação dialética entre infra e superestrutura, de modo que uma determina à outra.
E a legalização das drogas se encaixa como uma luva: com a liberação, o governo (superestrutura) cria um incentivo para que o poder econômico (infraestrutura) se expanda e crie uma miríade de viciados consumidores. Essa expansão econômica vai inserir a questão das drogas na vida cotidiana da sociedade, por exemplo, nas mídias (superestrutura), que vão pretender lucrar em cima dessa situação produzindo filmes, séries e produtos relacionados à droga, como já acontece hoje: seriados como Elite, Sex Education, Control Z e outros possuem cenas que associam drogas à diversão e à liberdade. Note-se que não é por coincidência que tais séries são voltadas ao público adolescente que, por questões lógicas, é o público mais propenso a consumir entorpecentes – ainda mais quando esses passam a mensagem de uma falsa sensação de liberdade. O fato é que há sempre a infraestrutura e a superestrutura se retroalimentando com o objetivo de beneficiar unicamente o lucro à custa da vida e da saúde de outrem.
Fato semelhante aconteceu com a pornografia: após sua legalização, o que se viu no mundo foi uma inundação de conteúdo pornográfico em nome do lucro. A título de exemplo, podemos citar o caso da “Beiçola do Privacy”, uma garota de 20 anos que tem ganhado muito dinheiro por postar conteúdos eróticos em sua conta na plataforma Privacy, voltada a conteúdo adulto. O que não se fala, no entanto, é que a pornografia é uma droga perigosíssima, talvez até mais do que certas drogas ilícitas, pois ela conduz à destruição da capacidade sexual e a formas bizarras de relações sexuais, como o sadomasoquismo, a necrofilia, o gore e o homicídio necrófilo, como ocorreu no caso de Thomas Schiro, do qual já falamos.
Portanto, a partir de tais exposições, podemos concluir, sob a óptica da exploração econômica da teoria marxista, que legalizar as drogas não é um bom negócio, pois aumentará a quantidade de viciados, que passarão a ser chamados de “consumidores”, e consequentemente a exploração do homem pelo homem. Há quem diga que a legalização acabaria com o tráfico, o que de certa forma é verdade, afinal, tráfico é comércio ilegal, e se um tipo de comércio deixa de ser ilegal, não há mais tráfico. Contudo, não significa que o Fernandinho Beira-mar vai abrir uma sorveteria, ou que o número de mortes causadas pelo tráfico irá diminuir. Pelo contrário, tende a aumentar, pois haverá ainda mais disputa dos atuais traficantes pelo mercado que restou, algo que ocorreu no Uruguai após este legalizar a maconha.
Vinicius Mariano, para Vida Destra, 27/11/2022.
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