Prezados leitores:
Aos sábados temos publicado as excelentes traduções de artigos sobre temas relevantes publicados pela imprensa internacional, escritas pela nossa colaboradora Telma Regina Matheus. Para hoje escolhemos um artigo do jornal britânico The Guardian, que traz a opinião de um de seus colunistas a respeito do Brexit. Vale esclarecer que este jornal é de viés esquerdista, e que a opinião apresentada no artigo segue o mesmo viés. Apesar disso, consideramos relevante trazer este ponto de vista a vocês, para que possamos analisar a questão do Brexit sob óticas diferentes. Apreciem!
O Brexit é uma máquina de queixas infindáveis. Está fazendo seu trabalho à perfeição
Fonte: The Guardian
Título Original: Brexit is a machine to generate perpetual grievance. It’s doing its job perfectly
Link para a matéria original aqui!
23 de fevereiro de 2021
Rafael Behr
A história do impetuoso confronto da Grã-Bretanha para intimidar Bruxelas poupa os apoiadores do Brexit do desconforto de admitir que votaram em uma fraude
O Brexit mudou tudo no relacionamento da Grã-Bretanha com a União Europeia, e também não mudou nada. Para quem tenta fazer negócios além das fronteiras recém-engessadas pela burocracia, a comparação é cruel e dolorosa. Mas, na política, um antigo padrão está em operação – um ciclo de suspeitas e auto sabotagem que teve início muito antes do referendo de 2016. Começou com a crença de que a Grã-Bretanha não depende de seus vizinhos para fins de comércio ou qualquer outra coisa. Isso leva ao abandono da diplomacia necessária para que a parceria funcione. Ir contra a lógica da economia e da geografia faz com que toda negociação se torne um teste de autoestima nacional. Cada ajuste da realidade é criticado como uma renúncia à soberania.
O euroceticismo é uma máquina de gerar queixas infindáveis. Faz de Bruxelas o inimigo, arruína relacionamentos e, ao mau humor do público doméstico, serve como prova de que o outro lado não quer ser amigo. O Brexit desmantelou a plataforma institucional em que esse drama costumava ser encenado, mas isso não muda a dinâmica econômica e estratégica. O Reino Unido ainda precisa de Bruxelas, porém, perdeu a influência da cadeira que ocupava na cúpula da UE. Isso torna mais difícil para Boris Johnson jogar o antigo jogo duplo de beligerância em público e compromisso em privado. (Nesse jogo, a adesão à UE foi o meio utilizado pelos primeiros-ministros anteriores para obter sua parte do bolo e comê-lo).
Johnson não tem qualquer interesse pelo lado prático da diplomacia europeia. Sua promessa, em 2019, de “fazer o Brexit” expressava uma preferência pessoal pela mudança de foco da política britânica – uma preferência que se harmonizou com o ânimo acirrado do público. Na medida em que Johnson só usa o cérebro para aquilo que ele não pode mais ignorar, o não falar sobre as relações RU-UE lhe permite também não pensar sobre o assunto.
Essa tarefa foi terceirizada para David Frost – ex-negociador chefe do Brexit, agora presidente, pelo RU, do conselho de parceria que supervisiona a implementação do acordo com a UE. A Frost foi concedido um pariato no ano passado, e sua nova função veio acompanhada de um cargo no gabinete. Sua rápida ascensão foi impulsionada pelo euroceticismo dogmático e pela devoção pessoal ao primeiro-ministro. Ele crê verdadeiramente no culto à soberania. Converteu-se à fé quando sua carreira no Ministério dos Negócios Estrangeiros estagnou e, então, ele passou a buscar zelosamente uma carreira alternativa, agarrando-se às calças de Johnson. Não há nenhum registro de fala sua abordando diplomacia sofisticada ou criativa.
A nomeação de Frost não é uma provocação maliciosa, apenas um ato típico da negligência de Johnson. O primeiro-ministro gosta de delegar muitos dos aspectos de liderança que o aborrecem, mas ele confia em pouquíssimas pessoas (porque ele presume que sua própria tendência à enganação e à traição é a regra). Ele precisava de alguém que, como Frost, tentaria obedientemente arrumar a bagunça que transbordaria desse acordo furado e instável com a UE.
A tensão já alcançou o protocolo da Irlanda do Norte, que cria uma fronteira alfandegária no Mar da Irlanda. A mera existência dessa barreira comercial enfureceu os sindicalistas antes mesmo que todo o custo fosse sentido. O “período de carência”, com renúncia de inspeções, expira no fim de março. O RU solicitou uma prorrogação do prazo que equivale a uma renegociação considerável. A comissão europeia respondeu que a Grã-Bretanha deve honrar o tratado que assinou. E, assim, acaba que o Brexit “feito” não foi feito.
Não fosse pela pandemia, os negócios não resolvidos e os empregos perdidos teriam motivado muito mais manchetes. Se também estão provocando mudanças na opinião pública é outra história. Algum entusiasmo certamente caiu no abismo entre o Brexit como teologia da libertação e sua versão do mundo real como peixe não entregue apodrecendo no mercado de Calais. Mas a cultura política britânica contém reservas profundas de resignação estoica à adversidade (em especial, à adversidade dos outros). Não há caminho simples de volta, não há nenhum acordo melhor sobre a mesa, e é fácil para os ministros inventarem que os prejuízos causados pelo acordo que fizeram são agressões de europeus vingativos. Os apoiadores do Brexit serão atraídos para essa história porque isso os poupará do desconforto de admitir que votaram em uma fraude e, consequentemente, revelar um primeiro-ministro charlatão. Keir Starmer não fará isso porque, se o fizer, não terá o apoio do eleitorado que foi perdido pelo Partido Trabalhista em 2019. Dessa forma (na Inglaterra, pelo menos), o disparate do Brexit está sendo sepultado para, em algum momento no futuro, ser desenterrado, talvez por uma geração diferente de políticos.
Isso poderia ocorrer logo, mas suspeito que qualquer mudança de opinião na UE acontecerá somente como consequência de um colapso mais amplo na reputação pessoal de Johnson. Ele é a negação que o povo elegeu. Para muitos eleitores, a desilusão com o Brexit acompanha a corrente de desilusão com todo o estratagema “Boris” no fluxo de eventos políticos.
Enquanto isso, haverá negociações infindáveis, a maioria sem divulgação, exceto quando evoluírem para disputas. Nesse ponto, o velho modelo enferrujado será aplicado: confrontos impetuosos da Grã-Bretanha para intimidar Bruxelas. Essa é a história que os eurocéticos costumavam contar quando o RU era membro da UE, porém, mais poderosa por causa da dinâmica “27 contra 1”, um mito paranoico que se transformou em fato. Com o tempo, essa dinâmica tornará cada vez mais difícil para a oposição exteriorizar uma posição pró-Europa sem pagar o preço de se aliar com o inimigo.
Isso é frustrante para os que optaram pela permanência, que ainda anseiam pelo momento da revanche, quando a fraude será provada além de qualquer dúvida e haverá uma virada de maré da opinião pública. Mas, para que isso ocorra, o Brexit terá que ser medido em termos de negócios e diplomacia. Estas não são as métricas dos apoiadores do Brexit. Há muito tempo, eles trocaram o argumento econômico pela bravata da guerra cultural.
Não há defesa para o acordo de Johnson se a ambição solapou o interesse nacional. Mas há um outro teste que interessa muito aos arquitetos do Brexit, embora jamais o admitam, nem para si mesmos.
Para os que realmente acreditam, um bom Brexit é aquele que mantém viva a injustiça; que transforma os estrangeiros em bodes expiatórios de um mau governo; que continua a satisfazer os dois mitos nacionais da vitimização e da rebeldia heroica. Mensurado por esse propósito, o Brexit inútil de Johnson é perfeito.
- Rafael Behr é colunista do The Guardian
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