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O lockdown destruiu o espírito australiano
Fonte: SPIKED online
Título Original: Lockdown has destroyed the australian spirit.
Link para a matéria original: aqui
Publicado em 3 de janeiro de 2022
Autor: Nick Cater
Um país antes tranquilo se tornou tirânico, desconfiado e dividido.
A Austrália, atualmente, é o 104º país do mundo em mortes por coronavírus – um tipo de vitória aos olhos da classe “laptop” que hoje governa nossas vidas. Entretanto, o custo dessa conquista é incalculavelmente alto e o dano causado à sociedade civil talvez nunca seja totalmente reparado. A lista de decretos mesquinhos, e que está sempre mudando, esgarçou o tecido social de incontáveis maneiras, e a Austrália tornou-se um país menos cordial.
Antes da Covid-19, o auge dos maus modos seria falar rudemente com um membro da tripulação de um voo da Qantas. Hoje, a ‘hostilidade’ é tão comum que as companhias aéreas australianas, apoiadas pela Polícia Federal do país, está veiculando uma campanha com o alerta: comportamentos grosseiros e ofensivos a bordo poderão resultar em 10 anos de prisão e multas de seis dígitos para cobrir os custos de desvio de rota da aeronave. Atribui-se o aumento da grosseria unicamente ao uso obrigatório de máscara facial, uma regra imposta por uma agência do governo federal que pouco levou em consideração a equipe de cabine, cujo trabalho mudou da noite para o dia. Em vez de servirem alimentação, passaram a policiar o uso de máscara facial.
Esse resumo ilustra como a guinada para o autoritarismo, desde a chegada da Covid-19, está erodindo o espírito de respeito mútuo que, um dia, fez da Austrália um lugar tranquilo. A descrição de DH Lawrence – do povo descontraído que ele encontrou durante uma visita a Sidney, um século atrás, um local onde ‘tudo era muito calmo e não havia bagunça’ – lembra a Austrália em que eu vivia há três anos, mas que hoje parece irreconhecível. A Austrália é, em 2022, um país muito mais despótico, desconfiado, repressor e dividido do que era no início da pandemia.
A decretação da pandemia em 2020 foi um presente para a suposta classe dominante da Austrália, cuja aptidão por controlar as vidas dos seres inferiores já era evidente há anos. Nossos líderes declararam estado de emergência e nos agruparam ao redor de um inimigo comum, a fim de reivindicar poderes extraordinários e nada democráticos. O uso desses poderes se tornou cada vez mais despótico, mesmo com o recuo da ameaça da Covid.
A legitimação desses regimes tirânicos dependeu, nos primeiros dias, da manutenção de um nível elevado de medo, que pudesse justificar o abandono de processos cívicos normais. Os líderes da Austrália fizeram isso com desenvoltura, assistidos entusiasticamente pela mídia, usando modelagem e aconselhamento médico questionáveis para legitimar o ilegítimo e normalizar o impensável.
O abandono descuidado dos princípios liberais-democráticos na Austrália, durante a pandemia de Covid-19, ganhou notoriedade. De um lado, alguns abusos eram meramente idiotas e tolos, como o aviso da Secretaria de Saúde da Austrália do Sul aos fãs do futebol australiano, para que evitassem tocar nas bolas desviadas do campo. De outro lado, os abusos eram sinistros, notavelmente no estado de Victoria, que adotou muitas das manobras de um estado policialesco, incluindo vigilância invasiva e intimidação.
Havia a expectativa de que as imagens que ganharam o mundo em setembro de 2021 – da polícia de Melbourne, posicionada em formação militar e disparando projéteis plásticos indiscriminadamente em manifestantes pacíficos – fossem o ponto mais baixo a que a sociedade civil australiana poderia chegar, e que nada pior ocorreria em 2022.
Melbourne é a cidade com o maior lockdown no mundo, com um total de 262 dias de restrições, o que a coloca confortavelmente à frente da segunda colocada, Buenos Aires (245 dias). Melbourne foi a primeira cidade da Austrália a implementar o toque de recolher noturno, imposto em períodos prolongados durante 2020 e 2021. Além disso, foi incansavelmente vigiada pela polícia, que, além de monitorar postagens de mídias sociais para identificar violações das regras, prendeu infratores.
As restrições em Victoria impactaram de modo devastador os pequenos negócios, a saúde mental e a confiança nas autoridades. Mesmo assim, o primeiro-ministro de estado Dan Andrews, do Partido Trabalhista, continua sendo não só o queridinho da classe “laptop”, mas também um líder popular que venceria confortavelmente as eleições, caso fossem realizadas amanhã. O mesmo ocorre com outros líderes do lockdown, especialmente com o primeiro-ministro da Austrália Ocidental, Mark McGowan, que conquistou, para o Partido Trabalhista, 53 dos 59 lugares do parlamento estadual, na eleição de março de 2021.
A vacinação também andou de mãos dadas com as medidas coercitivas. As regras variam de estado para estado, porém, é praticamente obrigatória em todos os lugares – a menos que alguém esteja disposto a viver uma vida miserável, banido de lojas, restaurantes, igrejas e, em alguns casos, empregos.
Tal como uma república incivilizada aprisionada por trás da antiga Cortina de Ferro, a Austrália se tornou um país onde as pessoas têm que apresentar documentos no decorrer da vida diária, só que agora vale na tela do celular. Durante grande parte da pandemia, os cidadãos tinham que solicitar autorização governamental para entrar ou sair do país, inclusive permissões para viagens domésticas, de um estado para outro. Se você cruzasse alguma fronteira estadual sem a autorização relevante, você correria o risco de ser preso na chegada e ficaria quarentenado em um hotel por 14 dias, à sua custa, sem garantia de indulto devido a um teste de Covid negativado. As regras são cruelmente aplicadas, como descobriu o senador liberal Alex Antic, no fim do ano passado, quando pegou um voo de volta para seu estado natal na Austrália do Sul, após um período legislativo no parlamento federal de Camberra: algemado, foi conduzido a um ônibus que o levou para uma estadia de 15 dias em um hotel em péssimas condições.
Professores, médicos, enfermeiros, motoristas de ambulância e outros servidores públicos foram demitidos de seus empregos porque exerceram o direito de não se vacinarem. Nenhuma simpatia lhes foi dedicada pela mídia mainstream, que se refere à subclasse dos não vacinados usando termos depreciativos. Em New South Wales, chegou-se a pedir que os dissidentes fossem obrigados a pagar o custo total do tratamento hospitalar. Essa campanha recebeu total apoio em programas de rádio e nas mídias sociais, particularmente dos tuiteiros da classe “laptop”.
Leitores fora da Austrália talvez reconheçam alguns desses elementos desagradáveis em seus próprios países, pois a sanha autoritária foi, em alguma extensão, despertada em praticamente cada jurisdição do mundo. No entanto, é difícil identificar outra democracia liberal que tenha sido tão negligente quanto a da Austrália, que abandonou os princípios de liberdade e soberania, antes tão valorizados, em nome da saúde pública.
Os australianos viveram boa parte de sua história lutando pela liberdade, mas no exterior, nunca em casa. Eles ocupam um dos dois continentes (o outro é a Antártica) que jamais vivenciaram uma guerra civil. A noção iluminista de liberdade foi incorporada à Austrália desde o início da colonização europeia e nunca foi seriamente contestada. Em seu livro de 2013, How We Invented Freedom and Why It Matters [Como inventamos a liberdade e por que isso importa], Daniel Hannan louvou a Austrália por representar “a concretização da filosofia libertária de Mills”. Agora, talvez ele seja forçado a revisar essa descrição ou, no mínimo, levar em consideração o experimento de dois anos de autoritarismo na Austrália.
Uma explicação para nossas dificuldades atuais é que, após a Primeira Guerra Mundial, chegou [aqui] uma classe dominante que toma decisões pelo restante da sociedade, uma turma que DH Lawrence havia observado não existir na Austrália. ‘Na Austrália, não se espera que alguém governe, e ninguém o faz’, ele escreveu em 1923. ‘O instinto do lugar era absoluta e completamente democrático, uma terra democrática. Aqui, o povo é seu próprio mestre, sem conflitos.’
Mas, sob a Covid-19, uma elite nomenklatura autonomeada se infiltrou em áreas de nossas vidas privadas que, um dia, imaginamos sacrossantas. Essas elites roubaram a dignidade do povo australiano, negaram-lhe o livre arbítrio e exigiram total obediência. Em vez de se valerem das abundantes reservas de boa vontade e conformidade voluntária dos australianos, elas recorreram ao planejamento centralizado e à coerção. Como resultado, a Austrália se aproximou mais da distopia sobre a qual nos alertou Friedrich Hayek, em O Caminho da Servidão.
A ascensão da classe “laptop” era previsível muito antes de o computador se tornar portátil, e muito antes do surgimento da Covid-19. Observamos esse grupo exercitando seus músculos por três décadas ou mais, crescendo em força à medida que tomava o controle de instituições e desenvolvia maneiras de contornar a democracia, as normas e as leis.
Assistimos a essas elites crescerem cada vez mais condescendentes com os mortais inferiores e cada vez mais convictas da eficácia de seus próprios projetos. O desprezo delas pela ordem liberal estabelecida aumentou, e a confiança de que poderiam nos destruir e criar algo melhor ficou mais forte, a despeito do fracasso e dos custos de seus experimentos.
A forma como acumularam poder durante a pandemia foi esboçada com precisão, há mais de um quarto de século, por Thomas Sowell em sua obra-prima A Visão dos Ungidos. Primeiro, vieram os alertas de um grande perigo para toda a sociedade; depois, os chamados urgentes à ação para evitar a catástrofe iminente. O governo foi instado a restringir drasticamente o comportamento perigoso de muitos, como reação às conclusões prescientes de poucos. Argumentos divergentes foram descartados porque seriam desinformação, irresponsáveis ou motivados por propósitos indignos.
Não posso oferecer uma explicação melhor para a extraordinária saída da Austrália da condição de um estado equânime, que a fez ser um país tão atraente para me estabelecer quando emigrei da Inglaterra, em 1989. E, embora eu ainda tenha fé nos pesos e contrapesos que acompanham a distribuição de poder em uma democracia liberal sofisticada, não podemos mais confiar em um crescimento inexorável da liberdade, da justiça e da prosperidade que, um dia, pareciam fazer parte da ordem natural deste país excepcional, habitado por pessoas empreendedoras e impetuosamente igualitárias, adeptas da ideia de que todos podem jogar o “jogo justo”. Nos dias atuais, a expressão vernácula de cordialidade, vínculo e otimismo casual – ‘sem problema’ – é verbalizada com menos facilidade pelos australianos.
*Nick Cater é diretor executivo do Menzies Research Centre e colunista da Australian.
Traduzido por Telma Regina Matheus, para Vida Destra, 22/01/2022. Faça uma cotação e contrate meus trabalhos através do e-mail mtelmaregina@gmail.com ou Twitter @TRMatheus
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