A importância da religião para a humanidade é um fato evidenciado pelas estatísticas. O gráfico (1) a seguir mostra a distribuição da população mundial segundo credos religiosos em 2015:
Gráfico : Distribuição das religiões no mundo
Fonte: Pew Research Center (2017)
Como pode ser observado no gráfico, para dados referentes ao ano de 2015, do Pew Research Center, aproximadamente 86% da população mundial possuía filiação religiosa, já que o percentual total exclui aqueles que não possuíam afiliação religiosa, os agnósticos e os ateus. Com esses dados em mente, convém lembrar que a religião tem o potencial de influenciar e moldar, de modo decisivo e de diferentes maneiras, o comportamento humano nos aspectos individual e coletivo, contribuindo para a transformação contínua da cultura, da economia e do ambiente de todas as sociedades conhecidas. Na antiguidade, civilizações floresceram tendo a religião como um de seus pilares fundamentais de sustentação, como foi o caso do Império Egípcio, Babilônico, Medo Persa, dentre outros. Segundo o Nobel de Economia de 1993 Douglass North (1990), seria impossível analisar corretamente a história sem reconhecer o papel que as religiões tem na formação de sociedades e de economias.
Marshall (1996, p.77), grande economista neoclássico britânico, considerou a religião e a economia como as duas instâncias modeladoras mais importantes do comportamento humano ao longo da história:
“Pois o caráter do homem tem sido moldado pelo seu trabalho quotidiano e pelos recursos materiais que busca por esse meio, mais do que por outra influência qualquer, à parte a dos ideais religiosos. Os dois grandes fatores na história do mundo têm sido o religioso e o econômico. Aqui e ali o ardor do espírito militar ou artístico predominou por algum tempo; mas as influências religiosas e econômicas nunca foram deslocadas do primeiro plano, mesmo passageiramente, e quase sempre foram mais importantes do que as outras todas juntas.”
O fato de pouco mais de 80% da população do mundo possuir algum credo religioso, constitui uma justificativa importante para o estudo da religião sob a perspectiva econômica e das implicações dela derivadas. Isso porque informa que as religiões fornecem bens e serviços desejados e valiosos para a maioria das pessoas, apesar de toda a oposição que as crenças religiosas possam encontrar por parte dos seus críticos.
Considerando as várias crenças religiosas existentes, é interessante constatar que o grau de observância dos fiéis que a elas aderem é muito variado. Enquanto alguns aderentes são extremamente zelosos em obedecer aos preceitos da sua fé, outros não têm o mesmo tipo de empenho e de compromisso. Pelo contrário, sendo a religião um bem que assume a forma de produção coletiva em muitas situações, existe espaço para o surgimento do problema do free-rider, ou carona, comportamento este em que indivíduos procuram apenas obter os benefícios do consumo de bens e dos serviços religiosos sem incorrer em custos.
Também salta aos olhos o fato de, mesmo tendo a possibilidade e a liberdade de praticar determinadas ações que, em princípio, não seriam consideradas condenáveis sob uma ética laica, muitos indivíduos optam por não praticá-las em decorrência da observância da ética religiosa que adotaram. Observando o comportamento humano, depara-se, com muitas situações, de forma rotineira, onde as pessoas que professam alguma religião formam suas preferências e fazem suas escolhas, em um determinado horizonte de tempo, com base em suas crenças religiosas.
Por outro lado, preferências moldadas em crenças religiosas também condicionam os seus aderentes a evitar o consumo, de modo temporário ou definitivo, de determinados tipos de bens e de serviços, como bebidas alcoólicas, fumo e literatura obscena. Ou de determinados tipos de alimentos. E isso tem implicações de ordem econômica, no que se refere à influência das religiões na formação de crenças e estruturação das preferências individuais. A questão da formação das preferências é um tópico de interesse da Ciência Econômica, já que esse aspecto comportamental tem impactos na produção, distribuição e consumo de bens e de serviços demandados pela sociedade. Essa também é uma justificativa a ser destacada, pela sua importância, para o estudo da religião pela Economia, que é uma disciplina conhecida como Teoria Econômica da Religião.
Sobre a importância da religião na formação de crenças e preferências individuais, com impactos óbvios sobre o consumo, é pertinente a indagação de Cosgel e Minkler (2004, p.331): “Por que, por exemplo, alguém que nunca provou carne de porco em sua vida consegue formar preferências completas sobre isso?” (tradução minha), referindo-se à abstinência alimentar de carne de porco, praticada por judeus e mulçumanos (2). Isso acontece, nesse caso, porque existe uma proibição, de caráter religioso, que tem poder coercitivo para os que a aceitam e a ela se submetem, moldando suas preferências.
Assim, quer incentivando o consumo de alguns bens e serviços ou desincentivando o consumo de outros, o que explicaria tal comportamento, que predispõe pessoas em todo o mundo a balizarem suas decisões de consumo de acordo com parâmetros religiosos? O que motivaria boa parte das pessoas a adotar uma determinada religião, utilizando seus recursos escassos, como renda e tempo, para adquirir e consumir bens e serviços religiosos, ofertados no mercado religioso, seja este de livre competição ou regulado pelo governo? Segundo pensadores como Hume (2004), o comportamento religioso seria uma mera expressão de uma mente primitiva do ser humano; ou apenas uma faceta irracional deste, segundo Freud (1996). No entanto, segundo argumentam os teóricos da Escolha Racional, base da Teoria Econômica da Religião, que investigam as relações entre religião e economia, em um corpo crescente de literatura, a prática religiosa não tem nada de irracional, ou ilógica, e pode ser explicada com fundamentos racionais, inclusive por meio de modelos matemáticos e estatísticos, baseados em evidências que corroboram essas hipóteses, como é o caso do trabalho seminal de Azzi e Ehremberg (1975).
Mesmo aqueles comportamentos impostos, por diversos grupos religiosos, aos seus aderentes, comportamentos esses que poderiam ser, à primeira vista, considerados irracionais, têm, na realidade, uma explicação perfeitamente racional e lógica. Exemplos disso são as normas muito rigorosas ligadas ao vestuário e à alimentação. Essas restrições estão ligadas à estratégias de sobrevivência de organizações religiosas que enfrentam o problema do free-rider, ou comportamento do “caroneiro”. Padrões comportamentais religiosos que, durante muito tempo, foram classificados como patológicos e/ou irracionais por muitas pessoas, em geral, e por pesquisadores das Ciências Sociais, em particular, podem ser explicados de forma lógica e coerente pelo arcabouço da Escolha Racional. Isso é possível porque esse tipo de comportamento é parte integrante e fundamental da prática de organizações religiosas, notadamente as chamadas seitas, em busca de reconhecimento e de conquista de novas fatias do mercado religioso. Sobre essa questão, Lawrence Iannaccone (1994) diz que a Teoria da Escolha Racional explica o êxito de seitas, cultos e denominações conservadoras tradicionais sem recorrer às premissas de irracionalidade, anormalidade e desinformação, tal como se defende em determinadas Ciências Sociais, como Antropologia e Sociologia.
Essas organizações religiosas adotam estratégias que lhe são típicas: regras de conduta rigorosas, conversões em massa e, geralmente, de forma dramática. Também incluem alto nível de compromisso religioso, pregação de milagres e exorcismos, rejeição a mudanças sociais, apelos a minorias, dentre outras. Igrejas reconhecidas e seitas extremistas, sob esse ângulo, aparecem como categorias analíticas existentes no mercado religioso, e não como sendo explicações ad hoc descritivas de um fenômeno religioso.
Conforme foi mostrado anteriormente, a grande maioria da população do mundo pratica algum tipo de religião, o que, por si só, já é um motivo para justificar o estudo do mercado religioso pela Ciência Econômica. O mercado religioso, que é o conjunto formado pelas diversas religiões existentes, é um espaço extremamente diversificado, onde existe uma gama variada de ofertas de bens, ou commodities religiosas, competindo pelos recursos escassos de consumidores e de outros potenciais consumidores. As estratégias utilizadas pelas religiões para angariar novos adeptos, ou simplesmente manter os já existentes, também estão inseridas num espectro muito amplo, podendo ir de métodos pacíficos, como a simples persuasão e inovação religiosa, ou mesmo violentos, como conversões forçadas. Diferentemente do que ocorre em outros tipos de mercados, no mercado religioso a competição por conquista de espaços pode resultar, como tem acontecido no decorrer da história, no aniquilamento físico de aderentes pertencentes a organizações religiosas rivais, ou mesmo de aderentes com comportamentos classificados como desviantes ou “heréticos”.
No aspecto relacionado a questões econômicas, existem credos religiosos que desautorizam o envolvimento de seus aderentes com assuntos de cunho material, enquanto outros incentivam seus fiéis a serem ativos na busca de riquezas. E tudo isso, obviamente, tem implicações fundamentais na questão das escolhas religiosas, bem como na formação das preferências e das crenças individuais, tópico de particular interesse da Economia na explicação da racionalidade econômica do ser humano.
Para Iannaccone (1998), os estudos relacionando religião e economia podem beneficiar ambas as disciplinas de diversas formas: gerando informação sobre comportamento extra-mercado; revelando como modelos econômicos podem ser modificados para avaliar questões a respeito de crenças, normas e valores; explicar as características das organizações religiosas, suas hierarquias e incentivos; além de permitir investigar como a religião (e extensivamente a moral e a cultura , já que a religião está intrinsecamente associada a estas) influencia as atitudes e as atividades econômicas de indivíduos, de grupos e de sociedades.
O estudo científico da religião, antes do advento do novo paradigma da Teoria da Escolha Racional, esteve fundamentado secularmente na chamada Tese da Secularização, que previa uma perda cada vez maior da importância da religião na vida das pessoas, à medida que a ciência e o progresso tecnológico avançassem. No entanto, essa previsão não se confirmou, tendo em vista a permanência da importância da religião no mundo atual. Assim, com o surgimento da Escolha Racional, a Tese da Secularização passou a enfrentar uma forte concorrência.
A Escolha Racional tem a seu favor o seu rigor lógico teórico e alto nível de formalização no estabelecimento de premissas preditivas com ampla possibilidade de testes empíricos. Estes poderiam ser aplicados a diversas questões, incluindo escolha, nível de participação e mudança religiosas; estrutura do mercado religioso; igrejas, seitas e cultos; comportamentos religiosos desviantes, estratégias de expansão de organizações religiosas, impactos da intervenção governamental no mercado religioso sobre o bem-estar dos agentes econômicos, dentre outros temas estudados, permitindo a interação entre a pesquisa religiosa e os estudos sobre instituições “non-market”.
BIBLIOGRAFIA
AZZI, C.; G. Ehrenberg, R. Household allocation of time and church attendance. Journal of Political Economy, 83(1): 27-56, 1975.
COSGEL, M. M.; MINKLER. L. Rationality, Integrity, and Religious Behaviour. Journal of Socio-Economics, 33(3): 329-341, 2004.
FREUD, S. O Futuro de uma Ilusão, o Mal-Estar na Civilização e outros trabalhos (1927-1931). Rio de Janeiro, Editora Imago, 1966.
HUME, D. História Natural da Religião. São Paulo, Editora Unesp, 2004.
IANNACCONE, L. Why Strict Churches Are Strong. The American Journal of Sociology, 99(5):1180-1211, 1994.
IANNACCONE, L. Introduction to the Economics of Religion. Journal of Economic Literature, 36(3):1465-1496, 1998.
MARSHALL, Alfred. Princípios de Economia. São Paulo, Editora Nova Cultural Ltda, 1996.
NORTH, Douglass C. Institutions, Institutional Change and Economic Perfomance. New York: Cambridge University Press, 1990. 152p.
Notas:
(1) Os dados podem ser obtidos neste link. Acesso em 24-04-2021.
(2) Diversas outras religiões, além do Judaísmo e do Islamismo, prescrevem dietas alimentares, de caráter temporário ou permanente, aos seus fiéis. Um exemplo é a recomendação de não ingerir carne na sexta-feira de Páscoa feita pela Igreja Católica e de observar outras prescrições dietéticas no período da Quaresma (Brooks, 2004, p.9).
Lívio Oliveira, para Vida Destra, 26/04/2021. Sigam-me no Twitter! Vamos debater o assunto! @liviololiveira
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Neste excelente art. de @liviololiveira s/a importância da religião na economia em q há uma balela de q hindus por idolatrarem a vaca não comam carne bovina.O q me preocupa são os choques de culturas religiosas, como há na França c/muçulmanos.
Grato pelo comentário Luiz.
Excelente abordagem, Lívio. Em um momento em que querem acabar com cultos religiosos, seu artigo nos chama à realidade. A título de complementação, podemos também citar a obra de Max Weber, “A Ética Protestante e O Espirito do Capitalismo”. Parabéns.
Agradeço pelo seu comentário Fábio.