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Sobreviventes da pólio: engajados pelo fim da paralisia infantil e agora desafiados pela Síndrome Pós-pólio

Imagem de capa: Zé Gotinha é o personagem criado pelo artista plástico Darlan Rosa, em 1986, para a campanha de vacinação contra o vírus da poliomielite.

 

No dia 24 de outubro, Dia Mundial de Combate à Poliomielite, o Brasil celebrou 32 anos sem registrar nenhum caso da doença também conhecida como paralisia infantil. Essa façanha, claro, só foi possível graças à existência de vacinas eficientes e seguras e de um programa de vacinação altamente eficaz que, historicamente, atinge quase 100% das crianças brasileiras.

Mas, qualquer descuido pode colocar essa conquista em risco, pois o poliovírus ainda não está totalmente erradicado no mundo e pode ser importado facilmente. Infelizmente, o número de crianças vacinadas no Brasil vem caindo. Em 2019, pela primeira vez em quase 20 anos, o Brasil não atingiu a meta para as principais vacinas indicadas a crianças de até um ano e somente 82,7% das crianças brasileiras foram vacinadas contra a pólio. Em 2020, segundo o Ministério da Saúde, a imunização atingiu cerca de 76% da população-alvo da campanha, enquanto o ideal seria uma cobertura de 95%. Os dados referentes a 2021 ainda não estão disponíveis, pois a campanha deste ano se encerrou no dia 29 de outubro. Tomara que todos os pais e responsáveis tenham levado suas crianças para serem vacinadas. Essa é a minha torcida e também de todas as pessoas que vivem com sequelas de pólio que, todos os anos, são as primeiras a se engajar no exército liderado pelo Zé Gotinha.

Esse simpático herói veio para nos salvar das horrorosas campanhas anteriores, nas quais, invariavelmente, apareciam tristes criancinhas em cadeiras de rodas, olhando pela janela as outras a brincar lá fora. Ao lado do cadeirante lacrimoso havia sempre uma gaiola, cujo habitante era um passarinho borocoxô. Teve um ano em que botaram um Ronaldo Fenômeno, com cara de coitado, sentado numa cadeira de rodas! Até entendo a ideia por trás dessas cenas tétricas. Achavam que era preciso assustar as pessoas com os horrores da deficiência para convencê-las a vacinar seus filhos. Mas, pelo meu ponto de vista, essas propagandas revelavam apenas a preguiça, o preconceito, a falta de talento e ausência de imaginação dos publicitários.

Essa situação perdurou até que, nos anos 1980, o movimento das pessoas com deficiência em defesa de seus direitos começou a se insurgir contra essas propagandas. Afinal, apesar de apoiarmos desde a primeira hora a campanha pela vacinação e erradicação da pólio, nunca achamos que, no processo, fosse necessário nos pintar como coitadinhos, até porque isso não é verdade. Aliás, sempre botei fé no que meu médico favorito, o saudoso Dr. Bartolomeu Bartolomei, um mestre da ortopedia, sempre me dizia: “As crianças com pólio são as mais bonitas e inteligentes de todas.” Bem, mesmo que isso não seja um fato inconteste,  a verdade é que a maioria de nós venceu com coragem e bom humor essa batalha. Todavia, essa história das propagandas sobre a vacina contra a pólio vai ter de ficar para outro artigo.

 

Erradicação da poliomielite

 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) decidiu eliminar mundialmente a poliomielite oito anos depois de ter certificado, em 1980, a erradicação da varíola. Contando com o compromisso do Rotary International de angariar fundos nesse sentido, a OMS criou a Iniciativa Global de Erradicação da Pólio, com a participação dos governos nacionais; do Centro para o Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos Estados Unidos; do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e com o apoio de parceiros-chave, como a Fundação Bill & Melinda Gates.

Essa iniciativa global fez o número de casos cair em mais de 99%. Em 1994, a Região das Américas foi o primeiro continente a erradicar a pólio e o Brasil, cujo último caso tinha ocorrido em 1989, foi certificado, pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), como livre dessa doença devastadora. Em 2000, a pólio foi erradicada da Região do Pacífico Ocidental e o mesmo ocorreu, em junho de 2002, na Europa. Em 2014, o Sudeste Asiático também foi declarado isento da pólio. Em agosto de 2020, a  OMS certificou que o continente africano havia se livrado do poliovírus selvagem. Das três cepas de poliovírus selvagem que existiam, o tipo dois foi erradicado em 1999 e o de tipo três, em 2019. Somente o tipo um ainda circula de forma endêmica em pelo menos dois países – Paquistão e Afeganistão –, o que mantém o risco de algum país ter um caso importado e o vírus voltar a circular em regiões nas quais foi eliminado.

 

Casos de poliovírus derivado da vacina

 

Além dessa cepa do poliovírus selvagem que ainda assombra o mundo, em agosto de 2020, ocorreram 323 casos de paralisia infantil causados por poliovírus derivado da vacina, no Paquistão, no Afeganistão, na África e nas Filipinas. Isso acontece quando o vírus vivo, mas enfraquecido, usado na vacina oral contra a poliomielite, continua a circular [1] em populações com níveis baixos de vacinação. Ao longo do tempo, esse vírus enfraquecido sofre uma mutação e se transforma num vírus que causa a paralisia. Para evitar com maior eficácia a evolução do Poliovírus Circulante Derivado da Vacina, é preciso fazer constantemente a vigilância sanitária, manter a população completamente vacinada, adicionar à cesta de imunizantes a vacina injetável, que contém o vírus inativado, além de acelerar a avaliação e a introdução mundial da nova vacina oral contra a poliomielite, cujos  testes clínicos mostram fornecer proteção comparável à vacina Sabin contra o poliovírus, embora seja mais estável geneticamente e menos provável de sofrer mutações que causam paralisia em ambientes de baixa imunidade.

 

Os efeitos do lockdown sobre a luta contra a poliomielite

 

Além das dificuldades ainda existentes, sobretudo nos países mais pobres, para vacinar todas as crianças, a política do lockdown como resposta à pandemia de covid-19, além de destruir empregos, lançar milhões à fome e à pobreza, aumentar os casos de diversas doenças agravadas por falta de diagnóstico e tratamento precoces [2],  também contribuiu para diminuir a vacinação contra a pólio no mundo. No Brasil, como já informado, em 2020, a campanha de imunização só atingiu cerca de 76% da população-alvo e a Iniciativa Global de Erradicação da Pólio interrompeu, durante quatro meses, as campanhas “porta a porta” de vacinação. Como resultado, foram registrados no mundo 1.226 casos de pólio causados pelo vírus selvagem e pelos poliovírus mutantes, em comparação com 138 casos identificados em 2018.

 

Síndrome Pós-pólio: Nós ainda estamos aqui

 

Em 90% dos casos, o vírus da poliomielite é destruído pelo sistema imunológico sem causar sintomas. Uma pequena parte dos infectados manifesta apenas sinais comuns a várias doenças, como febre, vômito e dor de cabeça. Somente 1% das pessoas que têm contato com o vírus desenvolve a paralisia flácida típica da poliomielite, causada pela destruição de neurônios motores. Ou seja, é uma loteria ao contrário. Recentemente, citei essa porcentagem para meu médico endocrinologista que a desconhecia. Eu brinquei: “Não ensinam mais sobre a pólio na faculdade de medicina ou você fugiu da escola justo no dia dessa aula?” Ele me confirmou que no curso todo só houve uma aula sobre a pólio em si e, claro, nenhuma informação sobre a Síndrome Pós-poliomielite (SPP, CID – G14)[3]. Acho que isso precisa mudar.

Em geral, a paralisia se manifesta de forma assimétrica. Afeta as duas pernas, mas em graus diferentes, também pode  atingir só uma perna e/ou incluir um ou os dois braços. As principais características são a perda da força muscular e dos reflexos, mantendo a sensibilidade no membro atingido. Quando o poliovírus ataca o músculo cardíaco e os responsáveis pela respiração, a doença pode ser letal.

Para suprir a falta dos neurônios que morreram, os que sobraram criam novas ligações (como aqueles “gatos” feitos nos postes de luz) para inervar os músculos que foram desligados pela pólio. Assim, parte dos movimentos perdidos durante a fase aguda da doença podem ser recuperados.

Depois de 30 a 50 anos de uma vida adaptada às sequelas, aproximadamente 75% dos que tiveram paralisia infantil apresentam, de repente, sintomas semelhantes aos da fase aguda da poliomielite. É a Síndrome Pós-Pólio.

De acordo com a literatura médica,  essa síndrome degenerativa e progressiva, tem como causa mais aceita a deterioração das unidades motoras restantes, algumas gigantes (com grande número de fibras musculares inervadas pelo mesmo neurônio motor), formadas após a fase aguda da poliomielite. É como se aquele “gato” do poste se desligasse de repente ou então de modo gradativo, mas constantemente.  “O esforço contínuo afeta as inervações que o paciente havia ganho com o brotamento dos neurônios”, explica um dos pioneiros e mais importantes estudiosos da SSP, no Brasil, o Dr. Acary Bulle, neurologista responsável pelo Setor de Doenças Neuromusculares da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

A síndrome é caracterizada, principalmente, por três sintomas: nova fraqueza muscular, fadiga e dor. Geralmente, a nova fraqueza muscular, acompanhada ou não de fadiga e dor muscular e/ou articular, afeta os músculos que foram mais comprometidos na fase aguda da doença, mas também pode atingir a musculatura que aparentemente não tinha sido afetada pela pólio. Os outros sintomas que podem ou não aparecer são enfraquecimento da voz; dificuldade para engolir; insuficiência respiratória; transtornos do sono associado ou não à cefaleia matinal; aumento de peso corporal; intolerância ao frio; ansiedade; depressão, problemas de memória, etc.

 

Quantas pessoas têm Síndrome Pós-pólio?

 

Segundo cálculos da OMS, existem vinte milhões de pessoas em todo o mundo com algum grau de limitação física causada pela poliomielite. Estudos mostram que cerca de 60% dos indivíduos com sequela de poliomielite paralítica e 40% dos casos não paralíticos desenvolvem a Síndrome Pós-Poliomielite. [4]

Em 2018, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revisou os dados do Censo 2010 e determinou que existem 12,7 milhões de pessoas com deficiência no Brasil, o que representa 6,7% da população em geral.[5] Por sua vez, a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019, realizada pelo Ministério da Saúde, em parceria com o IBGE, divulgada em agosto de 2021, aponta que 17,3 milhões de pessoas acima de dois anos têm algum tipo de deficiência, ou seja, 8,4% da população brasileira. Desses, cerca de 3,8% (7,8 milhões) de pessoas tinham, naquele ano, deficiência física nos membros inferiores e 2,7% (5,5 milhões), nos membros superiores. [6]

Mas, não temos, no Brasil, estatísticas atuais referentes ao número de brasileiros afetados pela poliomielite. Um dos poucos dados a respeito, divulgado pelo Ministério da Saúde em 1994, informa que, entre 1968 e 1989, foram notificados 26.827 casos de pólio.[7] Como os maiores surtos de pólio, no Brasil, ocorreram nos anos 1950, quando a notificação da doença ainda não era obrigatória, só podemos conjecturar quantas pessoas com sequelas da pólio existem no País e quantas estão enfrentando problemas em virtude da SSP. Certamente, serão dezenas de milhares.

Por se tratar de uma síndrome pouco conhecida, os próprios afetados e a maioria dos médicos podem não entender o que está acontecendo. Assim, a conscientização é fundamental para evitar os problemas decorrentes do agravamento dos sintomas da síndrome. A principal recomendação para as pessoas com sequelas da pólio, quer apresentem ou não os sintomas da SPP, é fazer exercícios, mas evitar esforços desnecessários. “Culturalmente, é difícil convencer uma pessoa a usar cadeira de rodas se ela consegue caminhar, mas o paciente não deve exasperar-se, caso tenha de usá-la em algumas ocasiões. É necessário evitar o uso contínuo de escadas e as caminhadas de grandes distâncias, por exemplo”, aconselha o Dr. Acary.

A Associação G-14 de Apoio aos Pacientes com Poliomielite e Síndrome Pós-pólio [8], formada e gerida por pessoas com sequelas da pólio, tem por objetivo fomentar o conhecimento sobre a SPP. Para tanto, divulga estratégias para melhorar a qualidade de vida, repassa informações sobre como lidar com os sintomas e estimula a troca de experiências entre pessoas afetadas pela síndrome, familiares, amigos e demais interessados. Além disso, a associação promove simpósios para incentivar a pesquisa científica e instar  o poder público a desenvolver serviços de apoio e tratamentos necessários.

Afinal, tudo bem que a meta seja nos tornarmos uma espécie extinta, mas, por enquanto,  somos os sobreviventes e ainda estamos aqui.

 

Notas:

[1] A poliomielite é uma doença viral transmitida entre pessoas, especialmente nas zonas com condições precárias de saneamento. O poliovírus entra pela boca e multiplica-se no intestino. As pessoas infectadas expelem o poliovírus para o ambiente durante várias semanas, podendo transmiti-lo rapidamente a crianças e adultos, por meio do contato direto com as fezes ou com as secreções expelidas pela boca. Menos frequente é a contaminação por meio da água ou de alimentos contaminados.

[2] O número de mamografias realizadas, na rede pública, em mulheres com idade entre 50 e 69 anos, diminuiu 42% em 2020, em comparação com o ano anterior, caindo de 1.948.471 em 2019 para 1.126.688 no ano em que a pandemia começou. A diferença de 800 mil exames não realizados no ano passado deve significar algo em torno de quatro mil casos de câncer de mama não diagnosticados em 2020, considerando estimativas da taxa de detecção da doença nas mamografias digitais (em média,  cinco casos detectados para 1000 exames). “Isso representa uma sobrecarga em potencial da doença para os próximos anos”, diz o estudo, assinado pela mastologista Jordana Bessa. Fonte: aqui!

[3] Conforme documento do Ministério da Saúde, de 2016, Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com Síndrome Pós-Poliomielite e Comorbidades, disponível neste link.

[4] Conforme documento do Ministério da Saúde, de 2016,  Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com Síndrome Pós-Poliomielite e Comorbidades, disponível neste link.

[5] Conforme documento “Releitura dos dados de pessoas com deficiência no Censo Demográfico 2010 à luz das recomendações do Grupo de Washington”, em 2018, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revisou os dados do Censo 2010 e determinou que existem 12,7 milhões de pessoas com deficiência no Brasil, o que representa 6,7% da população em geral. Esses números estão abaixo dos 23,9% identificados anteriormente pelo Censo 2010 e estão mais alinhados com as estimativas internacionais, segundo as quais 10% da população mundial tem alguma deficiência. Fonte:  IBGE.

[6] Leia mais aqui https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/31445-pns-2019-pais-tem-17-3-milhoes-de-pessoas-com-algum-tipo-de-deficiencia

[7] Fonte: GT-Pólio/CNDI/CENEPI/FNS/MS. 1994, disponível neste  link.

[8] A página oficial pode ser acessada neste link.

 

 

Lia Crespo, para Vida Destra, 01/11/2021.                                                              Sigam-me no Twitter, vamos debater o meu artigo! @liacrespo

 

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Lia Crespo é militante jurássica do movimento das pessoas deficientes, jornalista, com doutorado em História Social, com a tese "Da invisibilidade à construção da própria cidadania. Os obstáculos, as estratégias e as conquistas do movimento social das pessoas com deficiência no Brasil, através das histórias de vida de seus líderes" (FFLCH/USP), e mestrado em Ciências da Comunicação, com a dissertação “Informação e Deformação: A imagem das pessoas com deficiência na mídia impressa” (ECA/USP). Autora dos livros infantis “Júlia e seus amigos” e “Uma nova amiga”, que tratam de deficiência e da importância da amizade para uma sociedade inclusiva.