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O Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, a política do lockdown e o movimento por direitos

A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que existam aproximadamente um bilhão de pessoas com algum tipo de deficiência no mundo e que 80% delas vivem em países em desenvolvimento. Para conscientizar governos e sociedades sobre os direitos e quais as medidas que devemos adotar para diminuir as barreiras físicas e atitudinais que as pessoas com deficiência enfrentam diariamente, em 1992 a ONU escolheu o dia 3 de dezembro para ser o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência.

O tema escolhido para este ano foi “Liderança e participação das pessoas com deficiência por um mundo pós-Covid-19 inclusivo, acessível e sustentável”. Não sei exatamente o que a ONU quis dizer com esse tema, mas, uma coisa é certa: a maneira inédita como o mundo resolveu enfrentar a pandemia do novo coronavírus, ou seja, a política do lockdown, está sendo especialmente nefasta para as pessoas com deficiência em geral e, sobretudo, para as crianças e suas famílias.

Se as crianças sem deficiência precisarão de décadas para superar o prejuízo causado pelas escolas fechadas durante quase dois anos, imagine o estrago que isso fez, está fazendo e fará na vida das crianças com deficiência. As famílias, sobretudo as mais pobres, foram abandonadas à própria sorte. As crianças ficaram isoladas, sem a única oportunidade de socialização de que dispunham, sem o atendimento de que necessitavam e, obviamente, totalmente à margem de toda essa falácia sobre “aulas virtuais”.  Tudo para “salvar vidas”, obviamente.[1]

A política do lockdown prejudicou a prevenção de doenças e deficiências [2], dificultou ou impediu o atendimento indispensável para o não agravamento de doenças e deficiências. Para trabalhar e garantir o sustento da família e sem poder mandar os filhos para a escola, muitos pais e mães se viram obrigados a deixá-los com pessoas despreparadas, sujeitando as crianças com deficiência a negligências e maus tratos. Além disso, lamentavelmente, é frequente que os abusos sejam praticados por familiares e o fechamento das escolas resultou na diminuição de denúncias, já que, na maioria das vezes, são os professores que detectam a violência e tomam providências.[3]

Então, repito, não sei o que diabos a ONU quis dizer com esse tema, mas, para mim só pode significar uma coisa: lockdown nunca mais.

O símbolo do Dia Internacional das Pessoas com Deficiência é o mesmo do Ano Internacional das Pessoas Deficientes (1981), composto pelos ramos de oliveira que fazem parte do emblema da ONU e que circundam uma representação gráfica de duas pessoas diferentes que estão de mãos dadas, frente a frente, num plano de igualdade, numa atitude mútua de solidariedade. As duas figuras parecem estar brincando de rodopio. Se uma largar a mão da outra, ambas caem.

Acho esse símbolo muito significativo porque resume bem a parceria indispensável que deve existir entre as pessoas com e sem deficiência em busca de uma sociedade mais amigável para todos. Só com o apoio de toda a sociedade as pessoas com deficiência poderão ter uma vida melhor e mais inclusiva. Por sua vez, a sociedade também se beneficia ao atender as necessidades de crianças, idosos e pessoas com deficiência, pois uma sociedade que acolhe e protege os mais frágeis é uma sociedade melhor para todos.

Embora alguns queiram sequestrar a causa das pessoas com deficiência para aprisioná-la no espectro “progressista” da política, acredito firmemente que respeitar e valorizar os membros mais vulneráveis da sociedade é a atitude mais “conservadora” que se pode adotar.

Felizmente, a causa e o movimento por direitos das pessoas com deficiência ainda não foram abduzidos pela esquerda, como vemos que aconteceu com os movimentos feminista, negro e LGBT. Ao incitar o ódio das mulheres contra os homens, dos negros contra os brancos, dos homossexuais contra os héteros, esses movimentos capturados pela esquerda não têm mais nada a ver com os direitos das mulheres, dos negros e dos homossexuais, trans, etc. Esses movimentos apoderados jogaram no lixo as lutas e as conquistas obtidas a duras penas, com muito sacrifício, lágrimas e sangue dos líderes do passado, tais como a sufragista Bertha Lutz; Martin Luther King, o Prêmio Nobel da Paz de 1964; e Harvey Milk, o primeiro homem abertamente gay a ser eleito a um cargo público na Califórnia.

Esses movimentos se tornaram reféns de ideologias nefastas que foram responsáveis por políticas que resultaram na pobreza, tortura e morte de milhões de pessoas e que foram principalmente funestas para crianças, idosos, negros, mulheres e pessoas com deficiência ao longo da história.

Nós, os jurássicos que — apoiados nos ombros de gigantes — demos início ao movimento por direitos das pessoas com deficiência, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, sabemos os sacrifícios que todos fizemos e os desafios que enfrentamos para que hoje haja, no mínimo, essa mudança cultural e legislativa que torna impossível negar a existência dos direitos das pessoas com deficiência e a necessidade de adotar medidas que garantam o exercício desses direitos. Ainda que, na prática, seja preciso fazer muita coisa, essa base imprescindível é um avanço significativo.

Na era jurássica do movimento das pessoas com deficiência, a mistura entre política partidária e a Política com pê maiúsculo não era bem-vista, nem bem-vinda e era evitada por 99% dos ativistas. Nas raras vezes em que essa postura foi negligenciada, houve prejuízo para o movimento e para a causa em geral.

Um personagem emblemático da equidistância que o movimento de pessoas com deficiência manteve da política partidária foi Cândido Pinto de Melo.[4] Nascido em 4 de maio de 1947,  Cândido tinha 21 anos de idade, era estudante de engenharia e presidente da União de Estudantes de Pernambuco (UEP), da Universidade Federal de Pernambuco, quando, no dia 28 de abril de 1969, sofreu um atentado político que o deixou paraplégico.

No final dos anos 1970, Cândido Pinto de Melo era um respeitado bioengenheiro, que trabalhava no Hospital das Clínicas de São Paulo e fazia parte da equipe do Dr. Euryclides de Jesus Zerbini [5], quando se tornou um dos mais importantes líderes do movimento em defesa dos direitos das pessoas deficientes.

Naturalmente, Cândido era de esquerda. E, se alguém tinha o direito de se recusar a sequer se dirigir ao governo do general João Figueiredo, esse alguém era ele. No entanto, durante sua atuação como líder do movimento, Cândido não mencionava sua história e nunca misturava as estações. Uma coisa era sua atuação política de esquerda, sua luta por Justiça e pela punição do autor do atentado que sofreu. Outra era sua liderança no movimento de pessoas deficientes. Por exemplo, Cândido fez parte do grupo de líderes que compôs uma comissão representativa recebida por Figueiredo, durante uma manifestação feita, em frente ao Palácio do Planalto,  pelos participantes do 1º Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes, realizado entre 22 e 25 de outubro de 1980, em Brasília. Cândido faleceu, no Recife, em 31 agosto de 2002, aos 55 anos, em decorrência das sequelas deixadas pelo atentado.

Por enquanto (mas, temo que não por muito tempo), a causa e o movimento das pessoas com deficiência pairam acima e permanecem apoiados por todos os espectros da política partidária. Evidentemente, essa é uma vantagem que deveria ser defendida e celebrada por todos os ativistas. Espero que o exemplo de Cândido Pinto de Melo nunca seja esquecido.

 

Notas:

[1] Esse comentário contém ironia.

[2] No Brasil, em 2020, a campanha de imunização só atingiu cerca de 76% da população-alvo e a Iniciativa Global de Erradicação da Pólio interrompeu, durante quatro meses, as campanhas “porta a porta” de vacinação. Como resultado, foram registrados no mundo 1.226 casos de pólio causados pelo vírus selvagem e pelos poliovírus mutantes, em comparação com 138 casos identificados em 2018. Leia mais aqui!

[3] Leia mais neste link!

[4] Saiba um pouco mais sobre dois líderes do movimento, Maria de Lourdes Guarda e Cândido Pinto de Melo, acessando este vídeo.

[5] Médico cardiologista e cirurgião brasileiro que fez o primeiro transplante de coração do Brasil e da América Latina, no dia 26 de maio de 1968, no Hospital das Clínicas em São Paulo.

 

 

Lia Crespo, para Vida Destra, 03/12/2021.                                                              Sigam-me no Twitter, vamos debater o meu artigo! @liacrespo

 

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Lia Crespo é militante jurássica do movimento das pessoas deficientes, jornalista, com doutorado em História Social, com a tese "Da invisibilidade à construção da própria cidadania. Os obstáculos, as estratégias e as conquistas do movimento social das pessoas com deficiência no Brasil, através das histórias de vida de seus líderes" (FFLCH/USP), e mestrado em Ciências da Comunicação, com a dissertação “Informação e Deformação: A imagem das pessoas com deficiência na mídia impressa” (ECA/USP). Autora dos livros infantis “Júlia e seus amigos” e “Uma nova amiga”, que tratam de deficiência e da importância da amizade para uma sociedade inclusiva.