Adiada pela segunda vez, no dia 23 de fevereiro de 2022, pelo Tribunal da Cidadania, ou Superior Tribunal de Justiça (STJ), o julgamento dos recursos nos processos EREsp 1.886.829 e EREsp 1.889.704, sob a relatoria do ministro Luís Felipe Salomão. A questão em julgamento é se o rol de procedimentos de cobertura obrigatória pelos planos de saúde, definidos pela Agência Nacional de Saúde Complementar (ANS), é um rol taxativo ou exemplificativo, conforme notícias do Migalhas Quentes, de 23 de fevereiro de 2022.
O rol taxativo ou “numerus clausus” é aquele que se fecha em si, ou seja, não admite outro procedimento se não aqueles que foram arrolados pela ANS. Já o rol exemplificativo ou “numerus apertus”, identifica a relação como referência mínima e, em geral, concede a obrigatoriedade de cobertura para além do rol.
A priori, faz-se necessário dizer que, devido as limitações dos recursos do Estado, muitos cidadãos procuram a saúde suplementar, assistência promovida pelo setor privado, que é regido por normas e fiscalizações do poder público.
Neste sentido, foi criada a ANS, com atribuição de regulamentar o setor de saúde suplementar, através da Lei 9.961/2000. A ANS é uma autarquia sob regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde.
O cerne da atuação da ANS é promover aos usuários a garantia do adequado acesso aos serviços de assistência médico-hospitalar, em observância ao perfeito equilíbrio entre a cobertura contratada e o valor da contraprestação pecuniária exigida, extirpando qualquer prática abusiva que ofenda o direito fundamental à saúde.
Em paralelo, o Presidente Bolsonaro sancionou a Lei 14.307/2022, fruto da conversão da MPV 1067/2021, alterando a Lei 9.656/98, que disciplina os planos e seguros privados de saúde, a fim de trazer regras para a incorporação de novos tratamentos pelos planos e seguros de saúde administrados pela ANS, bem como tornou obrigatório o fornecimento de medicamentos contra o câncer, de uso oral e domiciliar, em conformidade com a prescrição médica, desde que estejam registrados na ANVISA com o uso terapêutico aprovado. Tal lei ainda possibilita aos pacientes a continuidade da terapêutica domiciliar, sem a necessidade de internação hospitalar, conforme notícia do Vida Destra, que você encontra aqui.
Vale enfatizar que o processo de aprovação de um remédio na ANVISA é muito lento, se comparado à FDA, agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA, afora a demora das operadoras de planos de saúde em implementar os medicamentos já aprovados pela ANVISA.
Ademais, a lei 9.656/98, ora alterada pelo Presidente Bolsonaro, em seu artigo 10, caput, estabelece a cobertura de todas as doenças listadas na Classificação Estatística de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, nos limites da respectiva segmentação.
No mesmo sentido, o artigo 35-F da lei 9.656/98 reforça a obrigatoriedade da integralidade de assistência ao usuário, abrangendo todas as doenças.
A primeira-dama Michele Bolsonaro participou, juntamente com o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, de reuniões com a ONG “Rare Diseases Internacional”, realizadas em Nova York. O objeto dessas reuniões foi a inclusão, na agenda mundial, do direito das pessoas com doenças raras, que será objeto de políticas públicas para acesso aos recursos do SUS. E, em 3 de março, foi lançada pelo Presidente Bolsonaro a “Caderneta do Raro”, em comemoração ao Dia Mundial de Doenças Raras, celebrado no último dia de fevereiro em vários países.
O artigo 32 da Lei 9.656/98 prevê o ressarcimento ao SUS da utilização de instituições públicas ou privadas, conveniadas ao SUS, pelas operadoras de planos de saúde. E, para espanto geral, o SUS não cobra das operadoras.
Voltando ao julgamento dos EREsp, estes são embargos de divergência no Recurso Especial, em razão de o acórdão proferido no julgamento do REsp divergir do julgamento proferido por outro órgão colegiado do próprio Tribunal, conforme o artigo 1.043 do Código de Processo Civil.
O entendimento consolidado nos tribunais, nos últimos 20 anos, é que a interpretação deve ser mais ampla, dando guarida ao rol exemplificativo, formando-se a tese de que é abusiva a recusa da operadora de plano de saúde de arcar com cobertura de medicamento prescrito pelo médico para o tratamento do beneficiário do plano, sendo ele off label, de uso domiciliar ou ainda não prescrito no rol da ANS e, portanto, experimental, quando necessário ao tratamento da enfermidade objeto da cobertura pelo plano.
Entendo que, durante a pandemia, devem ter sido judicializadas muitas ações, de forma a garantir o tratamento precoce, que assegurou, a critério do médico assistente, em decisão compartilhada com o paciente, a utilização de medicação off label para o tratamento precoce contra a COVID-19, conforme Parecer CFM no 4/2020.
No entanto, passou a haver uma divergência entre a 3ª e a 4ª Turma no STJ. Enquanto a 3a Turma considera meramente exemplificativa, a 4a Turma passou a entender, a partir de 2019, que o rol é exaustivo, o mínimo obrigatório para as operadoras, pois teria o condão de encarecer e padronizar os planos de saúde, obrigando-os a fornecer qualquer tratamento prescrito, restringindo a livre concorrência, negando a vigência aos dispositivos legais que estabelecem o plano de referência de assistência à saúde e a possibilidade de definição contratual de outras coberturas.
Então, o caso aportou na 2a Seção do STJ para uniformizar o tema, que servirá de base e como precedente para instâncias inferiores. A 2a Seção do STJ é responsável pelo julgamento de casos repetitivos e é especializada em direito privado. Atualmente, é integrada pelas ministras Isabel Galotti (presidente) e Nancy Andrighi, e pelos ministros Luís Felipe Salomão, Raul Araújo, Paulo de Tarso Sanseverino, Antonio Carlos Ferreira, Vilas Bôas Cueva, Marcos Buzzi, Marco Aurélio Belizze e Moura Ribeiro.
O julgamento teve início em 2021, com o voto do relator ministro Luís Felipe Salomão pela taxatividade da lista editada pela ANS, sustentando que a elaboração do rol tem o objetivo de proteger os beneficiários de planos, assegurando a eficácia das novas tecnologias adotadas na área da saúde, a pertinência dos procedimentos médicos e a avaliação dos impactos financeiros para o setor, conforme notícias do CONJUR, de 23 de fevereiro de 2022. Tal decisão se adequa aos mesmos moldes da 4a Turma, numa atitude legítima de manter os lucros das operadoras de planos de saúde, porém, contém uma antinomia no voto, ao se referir a todas as doenças da OMS.
Entretanto, o relator ressaltou hipóteses excepcionais, em que seria possível obrigar uma operadora a cobrir procedimentos não previstos expressamente pela ANS, como terapias que têm recomendação expressa do Conselho Federal de Medicina, e possuem comprovada eficiência para tratamentos específicos, como é o caso da Estimulação Magnética Transcraniana (EMT), prescrita pelo psiquiatra para os casos de quadro depressivo grave e esquizofrenia.
Neste sentido, o apresentador Marcos Mion chamou a atenção para o tema nas redes sociais. Ele, que é pai de menino com autismo, diz que, a depender da decisão da Corte, o julgamento poderá prejudicar milhares de pessoas que necessitam de tratamentos específicos, conforme notícia do Migalhas Quentes, de 23 de fevereiro de 2022. Nessa mesma data, a ministra Nancy Andrigh, que havia pedido vistas ao processo, proferiu seu voto, considerando o rol exemplificativo, e entendeu que, qualquer norma infralegal editada pela ANS que restrinja a cobertura de tratamento para as pessoas listadas no CID, fora aquelas hipóteses excepcionadas pela própria Lei 9.656/98, extrapola os limites materiais no seu poder normativo e, portanto, configura atuação abusiva e ilegal, que coloca o consumidor aderente em desvantagem exagerada.
Logo após o voto da ministra Nancy, o ministro Vilas Bôas Cueva pediu vistas, mas a tendência é que siga o caminho do rol exemplificativo em razão de suas decisões adotarem a Súmula 102 do Tribunal de Justiça de São Paulo, que ora transcrevo, bem como cita jurisprudência da ministra Nancy:
Súmula 102: Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob argumento de sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS.
Além do que, os ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Marco Aurélio Belizze, Raul Araújo, Moura Ribeiro já se manifestaram em outros agravos internos e recursos especiais pelo entendimento do rol exemplificativo, o que formaria a maioria na 2a Seção, aliado ao voto de Nancy Andrighi e Vilas Bôas Cueva.
Aproveito para informar que sou um defensor ativo do rol exemplificativo, inclusive o meu TCC consta do Repositório Oficial do UNICEUB e do Compêndio FAJS (Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais) – 2o Semestre/2018, com o título “Os princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato como balizadores para intervenção judicial nas abusividades das operadoras de planos de saúde”, que me conferiu o grau de bacharel em Direito.
Por fim, entendo que na relação consumerista – formada, de um lado, pelo usuário do Plano de Saúde e, de outro, pela operadora do plano de saúde – o único momento de fé do usuário é ter seu recurso judicial aprovado em 3a Instância, para garantir-lhe um tratamento digno, em vez de as operadoras protelarem o atendimento da demanda através das abusividades que se formam, em que só o lado do dinheiro importa, traduzindo-se no enriquecimento de modo ilícito.
Luiz Antônio Santa Ritta, para Vida Destra, 09/03/2022.
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O cerne da questão é o custo e não propriamente o rol. Terapêutica de alto custo tem que ser conservador? Ora tratamento alternativo ou experimental se praticado com profissionalismo e honestidade com o passar do tempo passa a ser conservador com as devidas reparações. Se o custo operacional fosse baixo não haveria judicializaçao. Em várias doenças o tempo é primordial para o tratamento ser eficaz. Excelente explanação!