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Dia Nacional da Síndrome de Down: celebrar conquistas ou denunciar a cultura de extermínio?

Imagem de capa: Heidi Crowter, líder da campanha “Não nos cancelem”, e seu marido, James Carter.

 

No último dia 3 de março, o presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, sancionou a Lei nº 14.306/2022 [1], que institui o Dia Nacional da Síndrome de Down [2], a ser celebrado no dia 21 de março de cada ano, a exemplo do que ocorre mundialmente, desde 2006, quando a data [3] foi escolhida pela organização Down Syndrome International (Síndrome de Down Internacional), para “celebrar a vida das pessoas com Síndrome de Down e disseminar informações para promover a inclusão de todos na sociedade”.[4]

Quando meu colega articulista da revista Vida Destra, Luiz Antonio Santa Ritta (@LuizRitta) sugeriu que meu próximo artigo fosse sobre essa lei, pensei em escrever a respeito das diversas conquistas obtidas com grande empenho e tenacidade, relativamente, em tão pouco tempo, pelas pessoas com Down e suas famílias. Vítimas de muito preconceito e discriminação, há 90 anos, a expectativa de vida dessas pessoas era de apenas nove anos. Há 40 anos, era raro que chegassem aos 25. Atualmente, a expectativa de vida das pessoas com Down está em torno de 60 anos e continua aumentando.

Além de estarem vivendo mais, é um fato inconteste que grande parte dessas pessoas está desfrutando de uma melhor qualidade de vida à medida que a sociedade se torna, gradativamente, mais inclusiva. Afora estarem destruindo todos os limites acadêmicos, com cada vez mais indivíduos com Down chegando à universidade [5], mais importante do que esses êxitos educacionais é a constatação de que a maioria das pessoas com Down é comunicativa e extrovertida, se diverte, pratica esportes, estuda, ama, trabalha, enfim, tem uma vida plena e feliz, o que é mais do que muita gente sem Down pode dizer.

É preciso deixar claro que, ainda que se possa creditar muito desse triunfo aos avanços da medicina e à conscientização de que a estimulação precoce é fundamental para o desenvolvimento físico e cognitivo dessas pessoas, na verdade, nada disso teria acontecido sem a ação determinada das famílias, sobretudo das mães que, partindo do zero, decidiram se organizar para lutar por seus filhos, os quais não só corresponderam, mas ultrapassaram e continuam excedendo as esperanças neles depositadas.

Contudo, tive que mudar o rumo do artigo quando vi o tuíte [6] da Organização Mundial da Saúde (OMS), cujo print segue abaixo, divulgando as “diretrizes consolidadas sobre assistência ao aborto de qualidade, com o objetivo de ajudar a proteger a saúde de mulheres e meninas e prevenir os 25 milhões de abortos inseguros que ocorrem a cada ano”.[7] A imagem, com  diversas mulheres, incluindo uma com deficiência, mostra frases orwellianas escritas numa novilíngua castiça: “Aborto é saúde. A remoção das barreiras ao aborto protege a vida, a saúde e os direitos humanos das mulheres.”

A primeira coisa que me veio à mente foi: “Quando foi que saímos de ‘precisamos lutar contra os preconceitos e conscientizar a sociedade  de que as mulheres com deficiência podem, querem e têm o direito de engravidar’ e fomos parar em ‘mulheres com deficiência têm o direito de abortar’”?!

De uns anos para cá, tenho sido uma “ativista” não muito ativa do movimento por direitos das pessoas com deficiência (o qual, por sua vez, também parece estar hibernando), então, não sei, mas alguma coisa me diz que a OMS resolveu se apropriar do “lugar de fala” das mulheres com deficiência para dar uma lacrada. Porém, esse é um assunto para outro artigo.

Trata-se de um inegável genocídio, na mais pura acepção da palavra

Por hora, sobre esse tuíte bizarro, basta dizer que ele me fez concluir que “celebrar a vida” e disseminar informações que promovam “a inclusão” das pessoas com Down, neste momento histórico em que vivemos, não pode se restringir à divulgação da admirável evolução pela qual passaram as pessoas com Down. Em verdade, é imprescindível e urge dar visibilidade para a cultura de extermínio, sobretudo nos países mais desenvolvidos, dos bebês com essa condição. A Europa, por exemplo, caminha célere e obstinadamente para erradicar a existência de pessoas com a síndrome, talvez dentro de uma geração. Essas pessoas amáveis, bem-humoradas e pacíficas estão em franca extinção. Trata-se de um inegável genocídio, na mais pura acepção da palavra.

Segundo o jornal The Telegraph, 90% dos britânicos preferem abortar a ter um filho com Síndrome de Down. Essa era uma decisão que, há pouco tempo, exigia necessariamente a introdução de uma assustadora agulha na barriga da gestante para a retirada de uma amostra do líquido amniótico, que envolve o embrião. Era um procedimento usado com parcimônia porque sempre havia o risco de a agulha  atingir e danificar  o feto.

Mas, a mesma ciência que prolongou a expectativa e a qualidade de vida das pessoas com Down acabou por selar o destino dos ex-futuros bebês com essa condição. Isso aconteceu a partir do desenvolvimento do Teste Pré-Natal Não-Invasivo ou NIPT (em inglês Non Invasive Prenatal Testing), lançado pela primeira vez em Hong Kong, em agosto de 2011 e, logo depois, introduzido comercialmente nos Estados Unidos e outros países. Para fazer esse teste de triagem, que usa tecnologia de DNA e facilita a identificação de “anormalidade genética” em fetos, basta colher uma simples amostra de sangue da mãe na terceira semana de gestação.

Desde que o NIPT passou a ser oferecido, em 2018, pelo sistema de saúde pública do Reino Unido, a taxa de abortos de bebês com diagnóstico de Down é de 90%.[8] Na Finlândia, entre 2008 e 2018, a porcentagem de abortos dos fetos com a síndrome saltou de 50% para 70%. Na Itália, Alemanha, França, Suíça, Inglaterra e Bélgica, as taxas de aborto de bebês com Down são superiores a 90%. A Dinamarca, cujo povo heroicamente salvou mais de 95% dos judeus que viviam em seu território, durante a Segunda Guerra Mundial, agora se vangloria de que 98% dos bebês com Down são abortados. [9]

Mas o primeiro lugar nesse campeonato da morte é da Islândia, cujo governo anunciou como um grande feito o fato de que praticamente 100% dos bebês com Síndrome de Down foram eliminados. No país, a lei permite o aborto de bebês mesmo após a 16ª semana de gestação, ou seja, quatro meses, em casos de deformidade do feto, o que, segundo a lei islandesa, inclui a Síndrome de Down. Por ano, nascem apenas um ou dois (muito raramente três) bebês com Down, na Islândia. Mesmo esses não nascem por opção dos pais. Eles escapam da aniquilação sumária porque o NIPT, como outros testes de triagem, não oferece um diagnóstico definitivo da condição, mas aponta, com precisão de 85%, apenas a porcentagem de risco para a presença da síndrome.[10]

Segundo contou à CBS, Helga Sol Olafsdottir, funcionária do Hospital Universitário de Landspitali, onde 70% dos bebês islandeses nascem, o povo da Islândia não vê  “o aborto como assassinato”, mas, sim, como uma forma de  interromper uma possível vida que poderia ser muito complicada” e, assim, evitar “sofrimento para a criança e para a família”. Ela costuma dizer às gestantes que relutam em abortar que “esta é a sua vida e você tem o direito de escolher como quer que ela seja”.[11]

Esse é o tipo de visão de mundo que inspirou o publicitário, roteirista e produtor audiovisual, José Luiz Martins, de 48 anos, que tem uma deficiência física porque sua mãe teve rubéola durante a gravidez, a fazer uma postagem no seu perfil do Facebook [12], intitulada “Você não veio ao mundo para ser feliz”. Ali ele reflete sobre essa “geração de pessoas que querem viver dentro de um conto de fadas, onde não existem problemas. Uma geração que exige que todos os filmes tenham heróis trans, sob a pena de cancelarem diretor, roteirista e elenco”. Para ele, essa necessidade de “buscar a felicidade a todo custo” resulta na crença de que, diante de uma “gravidez inconveniente”, é possível “resolver o problema matando um ser humano. Para piorar, dão ares de bondade ao assassinato, dizendo: ‘mas ia nascer deficiente’, ‘ia estragar a vida da mãe’”.

José Luiz pondera que uma “deficiência (seja mental, física, visual ou qualquer outra) é apenas um dos perrengues a que um ser humano está sujeito a passar em sua vida. Uma gravidez indesejada, idem. Toda pessoa tem que enfrentar milhares de outros problemas, sendo deficiente, mãe solteira ou qualquer outra coisa. E não adianta fugir da realidade, que ela vai te pegar na próxima esquina, com outro imbróglio. (…) E não é matando alguém que ‘atrapalha’ sua vida que você solucionará seus problemas. Isso é coisa de psicopata, cuidado”, conclui.

Marcelo de Araújo, professor de Ética e Filosofia do Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), acredita que, embora “pessoas com Síndrome de Down possam trabalhar, se tornar artistas, atletas ou modelos”, sem se tornar um fardo para a família, não há como saber quão independente será a pessoa no momento em que a síndrome é diagnosticada. E, como a Síndrome de Down ocorre com mais frequência em mulheres acima dos 40 anos, o professor acredita que “é bastante provável” que o filho com deficiência viva mais tempo do que os pais. Por isso, ele considera que a “incerteza” sobre  quem cuidará da pessoa com Down, depois que os pais falecerem, é “uma boa razão” para a mãe se perguntar se quer “levar adiante a gravidez” e também um motivo válido para o Estado “conceder o direito” de ela matar o filho no ventre.

Nos países em que o aborto não é proibido, muitas pessoas que são a favor do aborto em geral têm posição contrária à eliminação de bebês com Síndrome de Down. No dizer do professor, essas pessoas acreditam que, nesse caso, a decisão é baseada em preconceitos e, sendo assim, julgam que esse aborto é “uma afronta à dignidade” e “uma forma velada de dizer” que a vida das pessoas com Down “é menos valiosa” do que a vida das demais pessoas. No entanto, Marcelo de Araújo não acredita que essas alegações para se opor ao aborto específico de bebês com Down “sejam justificadas.”[13] Para ele, embora “tenhamos nos tornados mais sensíveis às demandas de grupos que foram discriminados” no passado, isso não deve “nos impedir de compreender as razões” que as “mulheres podem ter para pôr fim à gravidez”. Nessas circunstâncias, garante o professor, “o direito de abortar” não significa que a vida das pessoas com Down “é menos valiosa”. (Imagina! Longe disso!)

“Não nos cancelem”

A despeito do que pensa o professor, Heidi Crowter, uma cidadã britânica de 24 anos, com Síndrome de Down, que trabalha com crianças e administra as contas de mídia de um salão de cabeleireiro, está convencida de que a legislação sobre o aborto, vigente no Reino Unido, lhe diz que sua “vida não é tão valiosa quanto as outras”. Junto com Maire Lea-Wilson (mãe de um menino com Síndrome de Down) e uma criança que também tem a síndrome, Heidi Crowter moveu uma ação judicial contra o Departamento de Saúde e Assistência Social, por considerar discriminatória a Lei do Aborto de 1967, que foi modificada, em 1990, para acrescentar o aborto de bebês com Síndrome de Down e outros diagnósticos, após 24 semanas de gestação, ou seja, até o momento do nascimento.  “Neste momento, no Reino Unido, bebês podem ser abortados se forem considerados ‘seriamente incapacitados’. Essa definição me inclui, apenas porque tenho um cromossomo extra”, afirma a líder da campanha Don’t Screen Us Out (em tradução livre, “Não nos cancelem”). Em setembro de 2021, o caso foi rejeitado, mas, neste mês de março, Heidi, Maire e o menor identificado apenas pela letra A receberam permissão para apelar do veredicto. [14]

Justin Welby, arcebispo de Canterbury, Inglaterra, compara o que está acontecendo na Europa, em geral, e no Reino Unido, em particular, com a “eugenia” praticada pelo regime de Adolf Hitler. “Ainda que as motivações e as razões sejam diferentes da Alemanha da década de 1930, o resultado é o mesmo”, declarou, em 2018.[15]

No Brasil, como se sabe, a gravidez só pode ser interrompida para salvar a vida da mulher, se a gestação for resultado de estupro e nos casos de anencefalia. No entanto, neste momento delicado de nossa história, o Supremo Tribunal Federal (STF) está sendo provocado [16], pela Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, ajuizada pelo PSOL, em março de 2017, a dar o sinal verde para a  legalização irrestrita do aborto até a 12ª semana de gestação. [17]

Cabe a nós ficarmos atentos e mobilizados para evitar que o STF, instado por argumentos pretensamente humanistas, tome decisões que resultem num cenário devastador para os brasileiros em geral e, especialmente, para os bebês com Síndrome de Down e/ou outras alterações genéticas.

 

Notas:

[1] Leia a íntegra da lei publicada no Diário Oficial da União de 4.3.2022, neste link.

[2] Mais frequente na gravidez de mulheres com mais de 35 anos, os primeiros registros da Síndrome de Down datam, pelo menos, desde o ano 3.200 a.C. Não é uma doença, mas, sim, condição causada por uma alteração genética.  A cada 700 crianças, uma nasce com três cópias do cromossomo  21, por isso, a condição também é conhecida por trissomia do 21. Além dos característicos olhos amendoados, com os cantos externos levemente inclinados para cima, as pessoas com Down,  geralmente, têm estatura menor do que a média, o crânio ligeiramente achatado na parte de trás, problemas cardíacos e visuais, e um grau variável de deficiência intelectual. Saiba mais aqui.

[3] A data 21 de março, ou 21/3, representa a singularidade da triplicação (trissomia) do cromossomo 21 que causa a ocorrência genética conhecida como Síndrome de Down.

[4] Saiba mais aqui.

[5] Primeiro estudante da UFJ com síndrome de Down se forma em geografia: ‘Gostei muito do curso’. Leia a matéria aqui.

[6] Acesse aqui.

[7] Em relatório publicado em 2018, Michael J. New – mestre em Estatística e doutor em Ciência Política pela Universidade de Standford, pós-doutor pelo Centro de Dados do MIT e pesquisador do Instituto Charlotte Loizier, um centro de pesquisas e políticas públicas pró-vida, sediado nos Estados Unidos – afirma que há duas razões para grupos pró-aborto tenderem a exagerar as estimativas do número de abortos clandestinos realizados em um país. “Primeiro, muitos desses grupos apoiam programas de contracepção e querem usar as estimativas de um alto número de abortos para fazer lobby por mais financiamento para esses programas de contracepção. Segundo, esses grupos citam estimativas de altas taxas de aborto como evidência de que muitos abortos estão sendo feitos em condições precárias. Assim, eles argumentam que legalizar o aborto melhoraria as condições de saúde para as mulheres”. Leia mais na matéria da Gazeta do Povo, Grupos pró-aborto têm incentivo para exagerar números, avalia pesquisador, neste link.

[8] Nascimento de crianças com Síndrome de Down cai pela metade no Reino Unido, pois pais estão decidindo pelo aborto, leia a matéria aqui.

[9] Países europeus usam o aborto para eliminar bebês com síndrome de Down, saiba mais aqui.

[10] Islândia aborta 100% dos bebês diagnosticados com síndrome de Down, leia a matéria neste link.

[11] “Em que tipo de sociedade você quer viver?”: Por dentro do país onde a síndrome de Down está desaparecendo.

[12] Leia a íntegra aqui.

[13] Síndrome de Down e sentimentos morais: o caso dos abortos na Europa e EUA https://estadodaarte.estadao.com.br/sindrome-de-down-e-sentimentos-morais-o-caso-dos-abortos-na-europa-e-eua/

[14] Saiba mais acessando aqui, aqui e aqui.

[15] Países europeus usam o aborto para eliminar bebês com síndrome de Down. Saiba mais aqui.

[16] E está doidinho para aprovar.

[17] Defesa da vida: por que o aborto não deve ser legalizado no Brasil https://especiais.gazetadopovo.com.br/defesa-da-vida-por-que-o-aborto-nao-deve-ser-legalizado-no-brasil/

 

 

Lia Crespo, para Vida Destra, 15/03/2022.                                                              Sigam-me no Twitter, vamos debater o meu artigo! @liacrespo

 

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1 COMMENTS

  1. Isso é estarrecedor!!! Não tinha ideia de que a “civilizada e desenvolvida” europa (em minúsculas mesmo) incentivava o genocidio de bebês diferenciados (nem vou entrar nos detalhes. Horrível!!!

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Lia Crespo é militante jurássica do movimento das pessoas deficientes, jornalista, com doutorado em História Social, com a tese "Da invisibilidade à construção da própria cidadania. Os obstáculos, as estratégias e as conquistas do movimento social das pessoas com deficiência no Brasil, através das histórias de vida de seus líderes" (FFLCH/USP), e mestrado em Ciências da Comunicação, com a dissertação “Informação e Deformação: A imagem das pessoas com deficiência na mídia impressa” (ECA/USP). Autora dos livros infantis “Júlia e seus amigos” e “Uma nova amiga”, que tratam de deficiência e da importância da amizade para uma sociedade inclusiva.