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CAPACITISMO E MICROAGRESSÃO: A cultura do mimimi alcança os deficientes

 

CAPACITISMO E MICROAGRESSÃO:

A CULTURA DO MIMIMI ALCANÇA AS PESSOAS DEFICIENTES

(Até porque correr não é o forte delas)

 

“Gosto de ser surda. Gosto do silêncio, assim como da rica cultura e da língua que a surdez me proporciona. Quando vejo a palavra ‘surdo’ publicada, me vem à tona um sentimento de orgulho pela minha comunidade. É algo que fala comigo, como se eu estivesse sendo abordada diretamente, como se chamassem meu nome.”

A surpreendente declaração está na matéria “Como linguagem do dia a dia pode ofender pessoas com deficiência”, publicada no G1 [1], em 15 de maio de 2021. Tive que ir à matéria original, veiculada em inglês pela BBC, em 5 de abril de 2021 [2], para descobrir que a autora é Sara Nović, escritora americana e ativista dos direitos dos surdos.

Tive poliomielite [3], a chamada paralisia infantil, quando tinha um ano e dois meses de idade. Não fui vacinada porque no período Triássico [4], da Era Mesozoica, ou, mais precisamente, nos anos 1950 [5], as vacinas contra a pólio estavam apenas começando a ser desenvolvidas. Convivo com sequelas de pólio desde que me conheço por gente. Nunca passou pela minha cabeça ter orgulho da minha deficiência. Nem vergonha, evidentemente. Não gosto, nem desgosto [6], apenas aceito e vivo minha vida. Tenho orgulho do que me tornei, das conquistas que logrei alcançar, não da minha deficiência.

Como jornalista, a única psicologia que estou habilitada a praticar é a de botequim, portanto, arrisco-me a dizer que essas declarações de orgulho pela deficiência guardam alguma semelhança com a necessidade que aquele cara tem de ostentar seu conversível vermelho porque… Bem, melhor deixar isso de lado e nos concentrarmos na “rica cultura” surda e nessa história de que a “linguagem do dia a dia pode ofender pessoas com deficiência”.

Será que existe uma “cultura surda”? Existe o país da Surdolândia, com hino nacional, bandeira e seleção de futebol filiada à Fifa? Ou será que o surdo que nasce no Brasil está imerso na cultura brasileira e o que vive na Inglaterra está mergulhado na cultura britânica? Nem mesmo a língua de sinais usada pelos surdos é universal. Cada país possui sua própria, com estrutura e gramática específicas. Assim, existem a Língua Brasileira de Sinais e a Língua Americana de Sinais, por exemplo.[7]

Será mesmo ofensivo às pessoas com deficiência dizer que alguém se “faz de surdo” ou que está dando “uma de joão-sem-braço? [8] Conforme a autora da matéria, essas expressões, de todo corriqueiras em qualquer bate-papo entre pessoas comuns, seriam “microagressões”, efeitos do “capacitismo”, termo que pretende equivaler-se a “racismo”, “machismo”, no que se refere às pessoas com deficiência.

Ainda que desconhecido fora da bolha, o capacitismo – a nova roupa do velho preconceito – está na moda. Há quem considere importante esse neologismo para denominar especificamente o preconceito e a discriminação em relação às pessoas com deficiência. Existem os que acreditam ser “fundamental em qualquer discussão da deficiência que parta do ponto de vista emancipatório de que as pessoas com deficiência são socialmente oprimidas”, como explica Ana Maria Baila Albergaria Pereira, em sua dissertação de mestrado “A viagem ao interior da sombra: deficiência, doença crônica e invisibilidade numa sociedade capacitista”, apresentada à Universidade de Coimbra, em Portugal, em 2008, onde e quando a palavra “capacitismo” apareceu em português pela primeira vez, como tradução de “ableism” [9]. Só eu percebi um sotaque “progressista” aqui?

Já o termo “microagressão” foi usado pela primeira vez, nos anos 1970, pelo psiquiatra americano Chester Pierce. Com essa palavra, o estudioso do racismo pretendeu definir as mensagens ofensivas e humilhantes dirigidas a pessoas negras. O acúmulo dessas recorrentes “pequenas agressões” acabaria por minar a autoestima e, por consequência, prejudicar a saúde mental dos negros. Mesmo que o emissor das mensagens não tenha tido a intenção de ofender ou humilhar. O conceito foi e continua sendo extrapolado para qualquer grupo ou subgrupo de pessoas, incluindo toda a sopa de letrinhas do antigo universo LGBT, passando por mulheres, asiáticos e latinos e, claro, pessoas com deficiência e todos os seus subgrupos.

Os estudiosos do assunto estão divididos. Há os que acham que a identificação com um grupo (negros, mulheres, gays, deficientes etc.) pode elevar a autoestima e, assim, proteger o indivíduo dos efeitos danosos das microagressões. E existem aqueles que acreditam que a identificação amplifica a percepção de situações de discriminação, causando um efeito negativo na saúde mental.[10]

Temos, então, Sara Nović, a autora da matéria original, afirmando que “sempre dói quando sou lembrada de que, para muitos, a palavra ‘surdo’ tem pouco a ver com o que eu mais amo — na verdade, suas conotações são quase sempre negativas. Por exemplo, na imprensa do mundo todo não é raro ler que determinado governo ou autoridade ‘se fez de surdo’”.

Para ela, a frase “se fazer de surdo”, além de indicar que a “maioria das pessoas associa a surdez com a ignorância intencional”, ainda por cima, “perpetua estereótipos” e “mascara a realidade da situação que descreve”. E conclui: “Ser surdo é um estado involuntário, ao passo que as pessoas que ‘se fazem de surdas’, diante de determinados apelos, estão fazendo uma escolha consciente de ignorar essas solicitações”.

Segundo Sara Nović, para eliminar os danos “reais e duradouros” do capacitismo, um bom começo é “analisar as próprias expressões e tentar substituí-las por sinônimos menos problemáticos”. Em apoio a suas ideias, cita Rosa Lee Timm, chefe de marketing da organização sem fins lucrativos Serviço de Comunicação para Surdos, em Maryland, nos EUA, para quem a “linguagem capacitista incentiva uma cultura de segregação”. Para Jamie Hale, presidente da Pathfinders Neuromuscular Alliance, do Reino Unido, desmanchar “as estruturas capacitistas não começa com a linguagem, mas construir um mundo sem elas requer que mudemos nossa linguagem”.

Será mesmo que expressões como “se fazer de surdo” e “dar uma de joão-sem-braço” precisam ser eliminadas da linguagem cotidiana porque são ofensivas e contribuem para perpetuar a segregação das pessoas com deficiência?

Acho que o cara que “se faz de surdo” está imitando um surdo de verdade, creio que ele acredita que as pessoas surdas não escutam mesmo. Não acredito que ele esteja associando a surdez real à surdez intencional. O mesmo ocorre com “dar uma de joão-sem-braço”. Acho que, quando usam essa expressão, estão apenas dizendo que perceberam que alguém está dando uma desculpa esfarrapada para escapar de alguma situação da qual não quer participar. Significa que o espertalhão foi pego na mentira. Não indica que ele está sendo comparado com uma pessoa sem braço de verdade. Muito menos quer dizer que a pessoa sem braço de verdade está sendo alvo de deboche.

Essa sensibilidade exagerada me causa estranheza. Como participante do movimento por direitos das pessoas com deficiência, desde seu início, em 1980, sei que muitos dos militantes jurássicos [11] (eu inclusive) chamavam a si mesmos de “aleijados”, “chumbados”, “prejudicados” [12]. Fazíamos isso justamente para esvaziar essas palavras de sua conotação preconceituosa. Conheço tetraplégicos que não movem um músculo e trabalham bastante para sustentar a si mesmos e a suas famílias. Frequentemente dizem: “Hoje, corri o dia todo para entregar aquele trabalho”. Com mais frequência ainda, ouço cegos dizerem ao encontrar amigos: “Que bom ver vocês aqui”. Já ouvi tetraplégico dizendo que seu amigo, outro tetraplégico, era muito folgado: “Esse cara não se mexe pra nada”. Nos intervalos de incontáveis reuniões, encontros, seminários e congressos, promovidos pelo movimento, era praxe os próprios deficientes contarem muitas piadas de cegos, surdos, aleijados, fanhos, para divertimento geral.

Claro que esse bom-humor não significava que os militantes não percebiam o preconceito e a necessidade primordial de combatê-lo para modificar a realidade concreta, marcada pela exclusão, em que a maior parte das pessoas com deficiência vivia (e ainda vive, apesar de muito ter sido conquistado, especialmente, em termos de legislação). Muito pelo contrário.

O preconceito existia então e continua existindo agora. Ainda hoje, há muita gente que considera e trata pessoas com deficiência como dignas de pena e caridade; eternas crianças assexuadas; incapazes de se casar, constituir família, trabalhar, ser útil à sociedade, tomar as próprias decisões, gerir o próprio destino, enfim, ter uma vida plena. O cartunista Ricardo Ferraz traduz muito bem essas situações em cartuns conhecidos internacionalmente [13].

Cartum de Ricardo Ferraz mostra um garçom tratando como criança uma mulher em cadeira de rodas.

Os jurássicos sabiam que, para sair da invisibilidade quase completa, era preciso alterar a imagem que a sociedade tinha das pessoas com deficiência. Para isso, identificaram duas medidas como indispensáveis: convivência e informação correta. As barreiras ambientais e atitudinais existentes dificultavam e quase impediam a primeira medida. Na era pré-internet, restava aos ativistas jurássicos fazer a informação correta chegar ao público por meio da mídia. Nesse sentido, cada oportunidade foi aproveitada para conscientizar esses profissionais, na esperança de modificar o discurso da imprensa, da publicidade, das telenovelas. Assim, um dos motes do início do movimento foi a frase: “Nem coitadinho nem super-herói”, título de uma matéria do Folhetim, suplemento da Folha de S. Paulo que, em 1981, fez uma edição especial em alusão ao Ano Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD).

Matéria publicada na edição especial do Folhetim para celebrar 1981, ano escolhido pela ONU para ser o AIPD.

No entanto, o discurso jornalístico, como qualquer discurso, não é passível de controle. Os significados ocultos sempre encontram um caminho e escapam. Assim, a comunicação de massa reflete a desinformação da sociedade sobre as pessoas com deficiência. Desse modo, embora menos do que antes, ainda vemos nos jornais expressões como “condenado à cadeira de rodas”, “é cego, mas mora sozinho”, “é surdo, mas estuda”, “tem deficiência intelectual, mas trabalha”. Frases que permitem ler nas entrelinhas a ideia de que a deficiência é um castigo e uma condição que infantiliza, incapacita e impede a vida independente.

Um exemplo é a matéria “Clay Regazzoni pilota carros no deserto” (FSP, 25-12-90), sobre a qual escrevi em minha dissertação de mestrado:

Matéria sobre o piloto de Fórmula 1 Clay Regazzoni, paraplégico desde 1980 e morto em 2006, aos 67 anos, num acidente de trânsito.

“O título desta matéria é imediatamente negado pela primeira palavra do primeiro parágrafo. Embora conserve intacta a profissão de piloto, Clay é ‘confinado’ em sua cadeira de rodas pelo jornalista. Deficiente e piloto são duas qualidades que se contrapõem, não combinam, uma tenta negar a outra. Colocado fora da norma pela FISA, impedido de correr em ‘pistas normais’ e disputar ‘provas oficiais’, torna-se ‘assíduo frequentador do Paris-Dacar’, de resto um dos circuitos mais exóticos e arriscados do mundo do automobilismo esportivo/competitivo. Regazzoni transmutou-se, no curto espaço ocupado por um parágrafo de notícia, de prisioneiro confinado em herói.”

Em comparação com matérias anteriores ao movimento, acho que houve progresso. Mas não muito. O sentido indômito do discurso é poderoso como um buraco negro. Ninguém escapa. Nem mesmo um reconhecido gênio, como podemos constatar na matéria “Eddie Redmayne espera que ‘A Teoria de Tudo’ faça justiça à história de amor de Stephen Hawking e Jane Wilde”, publicada no Caderno2, do Estado de S. Paulo, em 22 de fevereiro de 2015. Não importa que Hawking, em sua mente brilhante, viajasse aos confins do universo, para o jornalista, ele estava “confinado a uma cadeira de rodas”.

Trecho da matéria sobre filme que dramatiza a vida de Stephen Hawking, físico teórico inglês, que tinha esclerose lateral amiotrófica e faleceu em 2018, aos 76 anos.

 

Os jurássicos iniciaram uma revolução cultural por inclusão porque estavam fartos dos guetos, queriam viver em sociedade e conviver, em igualdade de condições, com as demais pessoas. Ainda que, nas escolas especiais, as crianças com deficiência pudessem estar mais abrigadas do preconceito, desde o início defendemos a educação inclusiva. Sempre consideramos essencial a frequência delas na escola comum para que aprendessem, o mais cedo possível, a lidar com o mundo e vice-versa.

Mesmo que fosse desejável, seria impossível elaborar uma lista que contivesse todas as expressões potencialmente sensíveis e ofensivas aos incontáveis grupos e subgrupos que se consideram vítimas de preconceitos e microagressões. Então, não sei o que esses novos teóricos da deficiência esperam obter com essa cultura do melindre e da vitimização.

Outra coisa também me intriga: por que essas mesmas pessoas com deficiência, que se sentem tão ofendidas com palavras e expressões, não se importam de serem reduzidas (e de reduzirem a si mesmas) a meras siglas? Eu, ao contrário, prefiro ser chamada de aleijada do que de PCD, essa abominável sigla sempre presente nas cartilhas a respeito das pessoas deficientes. Aliás, “deficientes” também não é uma palavra aceitável para esses “pensadores”. Mas, como sou politicamente incorreta…

Patrulhar, dificultar, constranger e censurar a fala espontânea das pessoas (e/ou induzi-las à autocensura), interditando o diálogo, parece-me uma estratégia contraproducente, eticamente condenável e impossível.  Creio que combater ideias preconcebidas não tem nada a ver com se declarar vítima de opressão e se sentir ofendido por tudo e por nada. Pelo contrário, esse combate exige resiliência, compreensão e disposição para o diálogo. Sobretudo, requer senso de humor. A propósito, oprimida uma ova! O preconceito não me define. Eu sou uma pessoa livre.

NOTAS:

[1] Mais informações neste link!

[2] Leia a matéria original “The harmful ableist language you unknowingly use”, neste link!

[3] Na maioria das pessoas, a infecção por poliovírus é assintomática. Aproximadamente, de um a cinco casos em mil progridem para a doença paralítica. Mais informações aqui!

[4] O Período Triássico, em tempo geológico, é o primeiro período da Era Mesozoica e começou a 252 milhões de anos, no fim do Período Permiano. Esse período terminou a 201 milhões de anos, sendo sucedido pelo Período Jurássico.

[5] Em 1954, começaram os experimentos clínicos com a vacina do Dr. Jonas Salk. No ano seguinte, ela foi considerada eficaz e segura. Em 1957, foi amplamente usada e os casos de pólio despencaram. Em 1962, o médico e cientista Albert Sabin desenvolveu a vacina oral e facilitou enormemente a sua aplicação. Mais informação neste link!

[6] É claro que, às vezes, é um pé no saco!

[7] A Língua Brasileira de Sinais (Libras) foi reconhecida como um meio legal de comunicação e expressão de surdos pela Lei nº 10.436/2002.

[8] A expressão “joão-sem-braço” se refere ao preguiçoso, omisso ou trapaceador, numa alusão ao pedinte que amarrava sob a roupa um ou os dois braços, fingindo ser deficiente para pedir esmolas. Saiba mais neste link!

[9] Leia neste link!

[10] Mais informações aqui!

[11] Termo usado pelos próprios ativistas para designar aqueles que iniciaram o movimento, em 1980, uma raça quase extinta.

[13] Para saber mais, clique neste link!

 

 

 

Lia Crespo, para Vida Destra, 01/06/2021.                                                              Sigam-me no Twitter, vamos debater o meu artigo! @liacrespo

 

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4 COMMENTS

  1. Essa do mimimi no mundo dos defis (ops!) é coisa antiga. Toda hora estão criando uma siglazinha para descrever a que categoria pertencem nesse nosso mundinho ingrato (sniffffffff), só que em diversos lugares desse Brasil de cultura disforme e generalista somos apenas aleijadinhos, ceguinhos, surdinhos e gorduchos. Ponto. Sem mais

  2. Excelente texto, maravilhoso, um grito de competência libertadora!
    Ninguém pode ser classificado por eventuais falhas e sim, pelas batalhas vencidas!
    Eu tenho 5 graus de miopia no olho esquerdo o que faz com que meus óculos pendam eternamente para um lado. Acabei por deixar de usar óculos e sou eu mesma bifocal: o olho direito enxerga longe e o esquerdo bem de pertinho.
    Também tenho a perna esquerda mais curta que a direita, alguma coisa q hj em dia se acerta ainda no berço, mas naquele tempo de antanho ngm sabia. Qd descobri, finalmente entendi pq as barras das minha calças eram sempre díspares. Aos 30 anos me aconselharam uma palmilha mais alta, etc, coisa q não tinha e nem tenho saco para usar. Vou continuar tomando analgésico pelo resto da minha vida.
    Todo mundo tem um parafuso fora do lugar, ou um parafuso faltando, etc.
    É só uma questão de se adaptar.
    E prefiro mancar de uma perna e enxergar mal do que ser comunista, ou petista, esses sim, defeitos adquiridos por vontade própria.

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Lia Crespo é militante jurássica do movimento das pessoas deficientes, jornalista, com doutorado em História Social, com a tese "Da invisibilidade à construção da própria cidadania. Os obstáculos, as estratégias e as conquistas do movimento social das pessoas com deficiência no Brasil, através das histórias de vida de seus líderes" (FFLCH/USP), e mestrado em Ciências da Comunicação, com a dissertação “Informação e Deformação: A imagem das pessoas com deficiência na mídia impressa” (ECA/USP). Autora dos livros infantis “Júlia e seus amigos” e “Uma nova amiga”, que tratam de deficiência e da importância da amizade para uma sociedade inclusiva.