A mulher deficiente expulsa do avião e a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência
Imagem de capa: Luciana Trindade usando máscara de ventilador mecânico para respirar.
Na última quinta-feira, dia 24 de fevereiro, Luciana Trindade, ativista dos direitos das pessoas com deficiência e coordenadora do PSB Inclusão Nacional (segmento de defesa do direito das pessoas com deficiência do Partido Socialista Brasileiro), foi retirada de um voo pela Polícia Federal porque a empresa aérea Gol não permitiu que ela viajasse de Brasília para São Paulo usando um ventilador mecânico, necessário para complementar sua capacidade pulmonar de apenas 14%.[i]
Luciana tem Distrofia Muscular Congênita (doença degenerativa que causa fraqueza muscular), usa cadeira de rodas e viaja com frequência usando o aparelho para respirar. Aliás, dois dias antes, ela e o marido Anselmo Araújo, que é deficiente visual, viajaram sem impedimentos de São Paulo para Brasília nas mesmas condições e pela mesma companhia aérea. Na viagem de volta, foram surpreendidos pelo incidente. Sem explicações, o casal passou horas no aeroporto e só conseguiu prosseguir viagem, no dia seguinte, embarcando em outra empresa aérea. O PSB informou que serão tomadas as medidas judiciais cabíveis para reparação dos danos materiais, decorrentes das despesas extras, e dos danos morais causados pelo constrangimento.
Pessoas com deficiência são submetidas a prejuízos desse e de diversos outros tipos com desconcertante frequência no Brasil e no mundo, apesar da legislação doméstica e internacional projetada para evitar essas humilhações. Um dos documentos mais importantes nesse sentido é a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o seu Protocolo Facultativo, que têm status de emenda constitucional, desde que foram aprovados pelo Congresso, com o quórum qualificado previsto no parágrafo terceiro do artigo quinto da Constituição da República de 1988, por meio do Decreto Legislativo nº 186/2008, e promulgados pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009.[ii]
Embora fundamentais para assegurar direitos, leis nacionais e tratados internacionais precisam ser conhecidos, respeitados e obedecidos para que, de fato, façam a diferença na vida real das pessoas. Tendo isso em consideração, a própria Convenção se preocupou em estabelecer, em seu Artigo 33, a exigência de que os países signatários escolham um organismo já existente ou desenvolvam e apoiem um novo órgão que deverá fazer esse imprescindível trabalho de monitoramento da aplicação prática do documento.
Para cumprir essa obrigação, no dia 22 de fevereiro de 2022, foi realizado o webinário internacional: “O fortalecimento da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência no Brasil: estruturando um mecanismo de monitoramento independente”.[iii] O evento virtual apresentou os resultados da consultoria independente realizada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), órgão que foi contratado pela Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (SNDCA/MMFDH) para realizar a tarefa.
Durante o webinário, a consultora independente do Pnud, Carina Calabria, informou que, de acordo com as exigências estabelecidas pelo Artigo 33 da Convenção, o organismo da sociedade civil responsável pelo monitoramento, além de contar com a imprescindível e efetiva participação das pessoas com deficiência e suas organizações representativas, deve também estar de acordo com “os princípios relativos ao status e funcionamento das instituições nacionais de proteção e promoção dos direitos humanos”. Em outras palavras, esse organismo deve seguir os Princípios de Paris, segundo os quais uma instituição nacional de direitos humanos deve ser um órgão público independente, de caráter consultivo, “previsto na Constituição ou em lei”.[iv] Nesse sentido, então, a consultora Carina Calabria defendeu que o organismo de monitoramento seja criado, preferencialmente, por meio de lei ordinária para garantir sua sólida estrutura institucional.
Para assegurar que as pessoas com deficiência e suas organizações representativas estejam, efetivamente, no centro das decisões políticas e técnicas referentes ao monitoramento da Convenção, a consultora independente do Pnud recomenda que o organismo responsável deve ser formado e gerido, em sua maioria, por pessoas com deficiência e seus representantes eleitos democraticamente por seus pares para cumprirem mandatos definidos. Com transparência e abrangência territorial, além de estrutura normativa e financiamento independentes, essa instituição da sociedade civil – sustentada pelos impostos dos contribuintes – deve ser assistida em suas decisões por um corpo técnico também composto majoritariamente por pessoas com deficiência.
Certamente há um longo e penoso caminho a ser percorrido até que seja criado esse organismo (meio utópico para a realidade brasileira, reconheço) responsável pelo monitoramento da aplicação prática de tão importante documento para os cidadãos com deficiência. Mas, ainda que com relativo atraso, finalmente, após 13 anos da aprovação da Convenção, o governo brasileiro inicia a jornada.
[i] Conforme matéria aqui http://www.fjmangabeira.org.br/luciana-trindade-coordenadora-do-psb-inclusao-nacional-e-impedida-de-pegar-voo-da-gol-em-brasilia/
[ii]Conheça a Convenção aqui http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm
[iii] Assista ao webinário acessando o link https://www.youtube.com/watch?v=gOTn8yv9rzs
[iv] Os Princípios de Paris foram adotados pela Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas pela Resolução 1992/54 de 1992, e pela Assembleia Geral da ONU em sua Resolução 48/134 de 1993.
Lia Crespo, para Vida Destra, 01/03/2022. Sigam-me no Twitter, vamos debater o meu artigo! @liacrespo
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