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Agendado para morrer: a ascensão do programa de suicídio assistido do Canadá
O que você faria se descobrisse que o seu filho agendou sua própria morte?
Fonte: The Free Press
Título original: Scheduled to Die: The Rise of Canada’s Assisted Suicide Program
Link para o artigo original: aqui!
Publicado em 11 de outubro de 2022
Autora: Rupa Subramanya*
No dia 7 de setembro, Margaret Marsilla telefonou para Joshua Tepper, o médico que planejava matar o filho dela.
Marsilla tem 46 anos e mora nos arredores de Toronto com seu marido e sua filha, uma estudante de enfermagem. Ela soube que seu filho de 23 anos, Kiano Vafaeian, sofria de depressão – ele era diabético e perdera a visão de um dos olhos; não tinha emprego, nem namorada, nem muito futuro – e Marsilla pediu para sua filha se conectar na conta de Kiano. (Kiano havia dado direito de acesso à irmã, para que ela pudesse ajudá-lo com seus e-mails.) Ele nunca compartilhou qualquer coisa com sua mãe – nem pensamentos, nem planos – e Marsilla estava apavorada.
Foi então que Marsilla soube que Kiano havia se inscrito, em julho [de 2022], e sido aprovado para “morrer via assistência médica”, ou seja, suicídio assistido. [N.T.: no Canadá, esse procedimento é conhecido como MAiD = medical assistance in dying.]
Sua morte estava agendada para setembro de 2022.
Em e-mail datado de 7 de setembro [de 2022], de Tepper, o médico, para Kiano e Tekla Hendrickson, diretor-executivo do MAiDHouse, a clínica localizada em Toronto onde ocorreria a morte de Kiano, Tepper descrevia o planejamento do procedimento:
“Oii”, ele escreveu. (Aparentemente, Tepper não usa o corretor ortográfico.) “Confirmo a seguinte agenda: por favor, chegue às 8:30 horas. Acionarei a enfermeira às 8:45 horas e darei início ao procedimento por volta das 9 horas. O procedimento estará concluído em poucos minutos”.
O procedimento consistia em administrar dois medicamentos. Primeiro, um agente indutor do coma. Depois, um bloqueador neuromuscular que interromperia a respiração de Kiano. O rapaz estaria morto em questão de cinco a dez minutos.
Ao que tudo indicava, Kiano queria levar seu cachorro junto com ele. Em e-mail enviado no mesmo dia, Hendrickson disse: “Cães são bem-vindos em nossas instalações, desde que haja alguém que se responsabilize pelo animal durante o tempo que permanecer na MAiDHouse”.
Marsilla estava aterrorizada. Ela tentara fazer de tudo por seu filho, mas tinha sido difícil para ele. Ela e o pai de Kiano haviam se divorciado quando Kiano ainda era uma criança. No aniversário de 16 anos do rapaz, ela o presenteou com um BMW. Aos 17 anos, ele sofreu um acidente terrível de carro. Não freqüentava a faculdade. Fumou uma tonelada de maconha. Viveu com seu pai; depois, com sua mãe; e agora morava com a tia, irmã de sua mãe.
Onde quer que fosse, o que quer que fizesse – ele se sentia infeliz. Ficar cego do olho esquerdo, em abril [de 2022], foi o ponto de inflexão.
No dia que descobriu o e-mail, Marsilla telefonou para Tepper. Ela fingiu ser uma candidata ao MAiD. Deu o nome de Joann e disse que “queria passar por todo o processo, de A a Z, antes do Natal – se é que você me entende”. Tepper demonstrou ter entendido.
Tepper, mostrando-se pragmático, percorreu a lista de requisitos: “Você tem que ter mais de 18 anos. Tem que possuir um cartão OHIP”. (Ele se referia ao Plano de Seguro de Saúde de Ontário.) “Seu sofrimento deve ser do tipo que não pode ser remediado ou tratado de maneira aceitável para você”.
Marsilla, que gravou a conversa e compartilhou a gravação de 5 minutos e meio com o Common Sense, disse a Tepper que era diabética e cega – mais ou menos a condição de seu filho. Tepper respondeu que “tinha pacientes em condições muito semelhantes” às dela.
E então o médico disse: “Se quiser, posso avaliá-la formalmente”. Marsilla perguntou se deveria ir até ele. Tepper respondeu: “Fazemos [as avaliações] remotamente; em geral, via vídeo: WhatsApp, Zoom, FaceTime, algo do tipo”.
Poucos minutos depois, Marsilla desligou. Ela tinha apenas duas semanas para impedir a morte do filho.
‘Prestes a se tornar o regime de eutanásia mais permissivo do mundo’
Quando pensamos em suicídio assistido ou eutanásia, imaginamos um número limitado de pessoas idosas que têm câncer em estágio terminal ou ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica) avançada, que estão em situação de extremo sofrimento. O argumento para ajudá-las a morrer é claro: a morte é iminente. Por que elas devem ser forçadas a sofrer?
Em 2015, a Suprema Corte do Canadá decidiu que o suicídio assistido era constitucional. Em 2016, o Parlamento aprovou a Lei C-14, mais conhecida como Lei da Assistência Médica na Morte. A MAiD, agora, era lei vigente em todo o país. Qualquer pessoa que pudesse demonstrar que sua morte era “razoavelmente previsível” se qualificaria [para o procedimento]. A este respeito, o Canadá não está sozinho: Holanda, Suíça, Bélgica, Espanha, Austrália e Nova Zelândia, entre outros [países], permitem o suicídio assistido. Bem como dez estados nos Estados Unidos.
Em 2017, o primeiro ano completo de operação da MAiD – que, por sua vez, é gerida pelos governos provinciais –, 2.838 pessoas optaram pelo suicídio assistido: é o que informa um relatório do governo. Por volta de 2021, esse índice havia saltado para 10.064 pessoas – respondendo por mais de 3% de todas as mortes daquele ano, no Canadá.
As mortes via MAiD já totalizaram 31.664 ocorrências, e a grande maioria dessas pessoas tinha entre 65 e 80 anos de idade quando morreram. Em 2017, somente 34 mortes via MAiD estavam na faixa etária de 18-45 anos. Em 2018, esse índice aumentou para pelo menos 49. Em 2019, já era de 103. Em 2020, 118; e em 2021, 139.
Atualmente, milhares de pessoas que poderiam viver ainda muitos anos estão se inscrevendo – com sucesso – para se suicidar.
Na verdade, em algumas províncias canadenses, cerca de 5% das mortes são via MAiD. Em 2021, Quebec reportou que 4,7% das mortes na província eram devidas à MAiD; na Colúmbia Britânica, esse número era de 4,8%. Segundo me contaram alguns médicos, a progressista ilha de Vancouver é informalmente conhecida como a “capital mundial da morte assistida”.
A que se deve esse dramático aumento [de casos]? Ao longo dos últimos anos, os médicos adotaram uma perspectiva cada vez mais liberal quando se trata de definir o que é uma morte “razoavelmente previsível”. Então, no ano passado [2021], o governo aprovou uma emenda à legislação original, estabelecendo que uma pessoa poderia se candidatar à MAiD mesmo que sua morte não fosse razoavelmente previsível. Este segundo grupo de candidatos tinha que simplesmente demonstrar que sua condição era “intolerável para eles” e que não podiam encontrar “alívio sob condições que considerassem aceitáveis”. Isso incluía candidatos como Kiano, filho de Margaret Marsilla.
Em 2023, esses números muito provavelmente aumentarão.
No próximo mês de março, o governo planeja expandir o espectro de candidatos elegíveis ao suicídio para, então, incluir doentes mentais e “menores com maturidade”. De acordo com o Departamento de Justiça do Canadá, os pais geralmente são “responsáveis por tomar decisões médicas em nome de seus filhos. A doutrina do menor com maturidade, entretanto, permite que crianças consideradas suficientemente maduras tomem suas próprias decisões médicas”. (O governo federal não define o que é ser “maduro”, nem especifica o que determinaria se alguém tem maturidade ou não. Além disso, a doutrina varia de uma província para outra.)
A Dra. Dawn Davies, médica de terapias paliativas que apoiou a MAiD quando foi inicialmente concebida, declarou ter “toneladas de preocupações” sobre quão longe isso poderá ir. Ele podia imaginar crianças com distúrbios de personalidade ou outras enfermidades mentais dizendo que queriam morrer. “Algumas delas estariam realmente falando sério; outras, não”, afirmou. “E não seremos necessariamente capazes de discernir umas das outras”.
Hugh Scher, advogado de Margaret Marsilla, me disse: “Embora outros países tenham considerado estender o suicídio assistido aos menores [de idade], tais governos insistiram em medidas protetivas significativas, incluindo notificação e consentimento dos pais. O Canadá está prestes a se tornar o regime de eutanásia mais permissivo do mundo, abrangendo menores e pessoas com distúrbios psiquiátricos, e já removeu a previsibilidade de morte ou as doenças terminais como condição essencial para se ter acesso à eutanásia ou ao suicídio assistido”.
A Dra. Ellen Warner é oncologista no proeminente Sunnybrook Research Institute, em Toronto, e professora na faculdade de medicina da Universidade de Toronto. “Minha objeção à MAiD, desde o primeiro dia, foi que não havia como evitar esse caminho escorregadio, porque os casos não são ‘preto no branco’”, declarou. “Sou 100% contra a MAiD. Sou uma médica à moda antiga, que cumpre o Juramento de Hipócrates”.
Mas o Dr. Derryck Smith, psiquiatra na Universidade da Colúmbia Britânica, vê a ascensão das mortes via MAiD como um progresso. (Smith nunca fez o Juramento de Hipócrates, disse ele, porque o considera “arcaico”.) “A MAiD tem a ver com o alívio do sofrimento, o respeito à dignidade humana e o reconhecimento do direito inerente do indivíduo de tomar decisões que afetam a sua saúde e até mesmo sua morte”, declarou Smith. O suicídio assistido, ele ressaltou, é praticado há séculos. “Antes da MAiD, os pacientes terminais eram assistidos, ao longo do processo, com altas doses de narcóticos”, disse ele. “A justificativa era ‘deixar as pessoas confortáveis’”.
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‘A nova rede de segurança social’
Muitas das pessoas que estão avaliando [a possibilidade] de se matarem, no Canadá, estão aliviadas [com a decisão] do governo de facilitar a morte.
“Os pesadelos sempre foram um problema”, me contou Mitchell Tremblay, 40 anos. “Desde os meus seis anos de idade, quando meu primo me molestou”. Eu achei Tremblay no Twitter. Ele tinha uma lista pequena de seguidores, mas era ativo nos círculos da #MAiD.
Tremblay era um ‘curioso’ da MAiD. Os ‘curiosos’ da MAiD são pessoas solitárias e assustadas, e se uniram em uma comunidade online que cresce a cada dia, principalmente no Twitter e no Facebook, e através dos cafés da morte. Havia mais de 1.300 cafés da morte no Canadá e 14.000 no mundo todo. No início, em 2012 ou 2013, as pessoas costumavam se encontrar nas casas umas das outras, a fim de conversar sobre as complexidades emocionais e filosóficas da morte. Elas degustavam bolos e tomavam café ou chá. Desde então, o número de cafés virtuais tem crescido consideravelmente. (Havia também uma constelação florescente de médicos de término da vida e “doulas da morte”. Karry Sawatsky, uma doula da morte na MAiDHouse, clínica onde Kiano Vafaeian estava agendado para morrer, é descrita, no website da MAiDHouse, como uma pessoa que acredita que “o planejamento do término da vida leva a uma experiência profunda e transformadora”.)
Tremblay vivia nos arredores de Toronto e, por períodos intermitentes, durante mais de duas décadas, fora um sem-teto. Ele passou anos entrando e saindo de clínicas psiquiátricas. Havia se prostituído, consumira toneladas de drogas e se alojara em apartamentos lúgubres e casas de reabilitação. No momento, ele tem um lugar para morar, mas sua expectativa é de ser despejado na primavera. Planeja se candidatar à MAiD assim que a lei for expandida para incluir doentes mentais, em março de 2023.
“A MAiD me dará dignidade”, disse Tremblay. “Preciso partir agora, porque sei que vai piorar”.
Les Landry, 65 anos, disse que estava em meio ao processo de se candidatar para a MAiD. Ele era de Medicine Hat, Alberta, localidade no meio do nada, várias horas a sudeste de Calgary e um pouco ao norte da linha de Montana. Recebia 1.238 dólares mensais do governo, mas estava sempre sem dinheiro. Ele disse ter sido molestado por sua mãe quando tinha 4 anos – ela colocou sua mão no espremedor de uma máquina de lavar antiga. Ele disse que sofria de TEPT [Transtorno de Estresse Pós-traumático], era epilético e tivera três derrames.
Assim como Tremblay, também era ativo no Twitter.
“Há um ponto de inflexão em que você não suporta viver”, Landry me contou. “A MAiD é a nova rede de segurança social”.
Victoria e Joan Cowie pensam da mesma forma. (Victoria e Joan ficaram amigas online de Landry e Tremblay.)
Victoria, 21 anos, era terceiranista de engenharia em LaSalle, Ontário, na outra margem do rio que vem de Detroit. Ela sofria de epilepsia – incluindo convulsões frequentes – e tinha anemia; por isso, submetia-se, semanalmente, a três ou quatro infusões de ferro por via intravenosa. Além disso, tinha que cuidar de sua mãe Joan, 53 anos, que lutava contra um câncer de ovário e estava confinada a uma cadeira de rodas devido à Síndrome de Guillain-Barré, uma doença neuromuscular.
As duas mulheres recebiam, do governo provincial de Toronto, auxílio por invalidez – que lhes garantia 1.361 dólares mensais. Depois de pagar aluguel e serviços públicos, elas geralmente ficavam com pouco mais de 70 dólares para comprar comida.
Às vezes, pessoas lhes mandavam gêneros alimentícios ou outros alimentos essenciais via Amazon Wishlist; outras vezes, elas conseguiam comida enlatada no banco de alimentos local. Quase sempre, faziam uma única refeição por dia.
Em maio, Victoria analisou rigorosamente seu orçamento. Elas não conseguiriam continuar assim por muito tempo. “Mãe”, Joan recordou quando Victoria lhe disse, “acho que não conseguiremos sobreviver. Temos que nos candidatar para a MAiD”.
*Rupa Subramanya é escritora residente em Ottawa, Canadá. Iniciou sua carreira no Wall Street Journal India, com uma coluna semanal que abordavam a interseção de temas econômicos, políticos e de políticas públicas. Seu trabalho foi citado no New York Times, no Financial Times e no Guardian, entre outros. Atualmente, é colunista regular do National Post.
Traduzido por Telma Regina Matheus, para Vida Destra, 07/01/2023. Faça uma cotação e contrate meus trabalhos através do e-mail mtelmaregina@gmail.com ou Twitter @TRMatheus
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