Anna Quindlen é uma importante e conceituada jornalista americana do tradicional veículo New York Times que se destaca dentre seus colegas por uma característica um tanto quanto curiosa: ela, segundo o texto “Guilt Cookies Don’t Make up for Being Gone”, publicado em sua coluna em Outubro 1988, odeia viagens de trabalho, pois as fazem achar que, após retornar, sua família não a amará mais e, por isso, antes de partir, ela assa biscoitos de chocolate para seus filhos – os chamados “biscoitos da culpa”. De início, parece apenas uma mãe querendo demonstrar afeto à sua família, mas a biografia da senhora Quindlen nos faz achar que o buraco é mais embaixo. Sendo assim, o objetivo deste artigo será analisar nossa jornalista e o porquê de ela assar os tais biscoitos da culpa antes de suas viagens.
Para começar, sejamos francos: não há nada de errado em você ser mãe e deixar seus filhos – desde que bem cuidados por uma pessoa de confiança – por dois ou três dias para fazer uma viagem de trabalho, ainda mais se você é um jornalista dos tempos modernos, em que o timming da notícia não pode esperar devido à rapidez com que a informação trafega hoje, fazendo com que os primeiros veículos que a publicarem se tornem os que mais vão receber mídia, likes, patrocínios e engajamento. Como dizem os americanos: time is money (tempo é dinheiro) e ao contrário do que dizia Renato Russo, não temos mais todo o tempo do mundo.
Mas o que faria então uma jornalista do “conceituado” New York Times se sentir tão culpada por deixar seus filhos em casa por alguns dias e chegar ao ponto de assar biscoitos – coisa que um escritor moderno, tão atarefado, não costuma fazer? Como toda boa jornalista de esquerda, a Sra. Quindlen é também uma ferrenha defensora do aborto, um “direito” sobre o qual ela disse em outro texto de sua coluna que “não podemos retroceder”, quando o ex-juiz da Suprema Corte americana Harry Blackmun afirmou que a decisão Roe vs. Wade, que legalizou o aborto em 1973, mas que foi recentemente derrubada pelos ministros republicanos conservadores, não duraria muito tempo.
O nome deste texto é “Quanto ao aborto” e nele, Quindlen nos diz que “quando se conhece a verdade, não se pode retroceder”. É fato, todos nós sabemos a verdade sobre o aborto, que se trata nada mais nada menos do que assassinato de crianças no útero, e até mesmo a senhora Quindlen reconhece tal fato ao descrever, no livro Living Out Loud, a sua gravidez. Nossa autora afirma: “Não senti que tinha um protoplasma em meu interior, mas sim um ser humano completo em miniatura, ao qual podia falar, cantar e fazer promessas”. Nesta mesma obra, ela afirma ter ajudado uma colega da faculdade a realizar um aborto, o que nos leva a uma ambivalência: ou a Sra. Quindlen acha que ela é a única mulher capaz de carregar no útero um ser humano, ou ela sente culpa por ter sido cúmplice em um crime de infanticídio. Considerando que a primeira opção é uma figura de linguagem – ironia –, resta somente a segunda, isto é, nossa jornalista sabe que o aborto é errado, pois, quando se conhece a verdade, não se pode retroceder; contudo, ela tenta, através do ativismo, anestesiar a culpa.
A Sra. Quindlen sofre, como nos explica o professor Eugene Michael Jones, de um fenômeno moderno que afeta praticamente todas as mentes de ativistas de esquerda, que é a “delação premiada à própria consciência”. Funciona assim: a pessoa comete um erro (como ajudar a colega da faculdade a assassinar seu filho no útero), a consciência a cobra daquilo, a pessoa a ignora e com isso, gera-se a culpa. A culpa é um sentimento desagradável para qualquer ser humano, visto que ela é para a alma o que a dor é para o corpo, ou seja, um sinal de que algo não está certo e precisa ser corrigido.
Acontece, entretanto, que há apenas uma forma de acabar com a culpa, que é através do arrependimento, precedido de confissão. O arrependimento ocorre quando uma parte superior de nossa personalidade – alertada pela culpa – reconhece que uma determinada ação praticada não foi correta e, por isso, precisamos nos redimir de alguma forma. Para os cristãos, essa forma é a confissão e a reconciliação com Jesus Cristo, aliás, é (ou deveria ser) para todos, visto que Santo Agostinho diz, em Confissões, inspirado em Paulo: “Tua lei está escrita no coração dos homens e não pode ser apagada pela iniquidade”. O fato é: a fé em Jesus Cristo aliada à admissão de que uma conduta praticada está errada traz o perdão e remove aquele sentimento de culpa, aliviando a consciência. Tal método é tão verdadeiro que mais tarde a psicanálise iria copiá-lo, com o próprio Freud dizendo que “confissão é libertação, é cura”, numa entrevista para o psicólogo Paul Vitz.
Há, contudo, um empecilho para a conciliação desta culpa no caso de pessoas como a Sra. Quindlen, que é a ideologia pela qual ela e seu séquito de seguidores do New York Times militam, a saber, o progressismo de esquerda. Ser de esquerda nos dias de hoje é considerado “cool”, afinal, é sinônimo de defender a liberdade sexual, mesmo que na prática esta seja uma forma de escravidão; é defender as tais minorias, como as mulheres, mesmo se você for uma feminista de esquerda que, além de colaborar com o Nazismo, escreve um livro no qual diz que mulheres não deveriam ter o direito de serem donas de casa, como no caso de Simone de Beauvoir e o seu Terceiro Sexo; é pensar nos pobres, mesmo que você defenda modelos econômicos que por onde passaram deixaram os pobres mais pobres, como o socialismo marxista e sua obsessão com a igualdade social que transforma todos, inclusive ricos e classe média, em miseráveis. Isso que é gostar de pobre! Esses conservadores que pregam medidas extremistas de direita, como a defesa da família, instituição milenar que possibilitou a criação da sociedade moderna; a castidade face ao sexo livre e fácil; a Igreja Católica, que é a grande responsável pelo padrão de vida que temos no Ocidente, que nos diferencia de ditaduras sanguinárias como Rússia e China, certamente são uns retrógrados.
Ao se negar a assumir a responsabilidade por seus atos errados de cúmplice e defesa de homicídio, a Sra. Quindlen se delata à própria consciência e passa a tomar certas atitudes para aliviar a culpa, como “assar biscoitos” para os seus filhos antes das viagens de trabalho com medo de, quando voltar, eles não a amarem mais, bem como o ativismo a favor do aborto. Afinal, ao assar os ditos biscoitos e defender o aborto para que “mulheres pobres que morrem em clínicas clandestinas tentando assassinar seus filhos no útero tenham o “direito” de praticá-lo com segurança”, Quindlen tenta convencer o mundo e a si mesma de que talvez ela não seja uma pessoa tão ruim assim quanto sua consciência diz, até porque ela está lutando por causas nobres, como a segurança das mulheres pobres e o amor dos seus filhos. Aquele sentimento de culpa é anestesiado à medida em que sua consciência responde positivamente às outras boas ações, fazendo com que pese menos na balança, afinal, todos temos obras boas e ruins, não é mesmo? Mas o sentimento de culpa não some com a anestesia, ele é apenas menos cobrado por um período.
Desta forma, a culpa acumulada torna-se um poderoso instrumento político para os seus detentores: quando uma pessoa de esquerda diz lutar pelos pobres, pelos negros, pelos gays ou pelas mulheres, ela não o faz só porque acha que essas pessoas precisam conquistar certos direitos que lhes faltam na sociedade, mas principalmente porque se sentem culpadas por seus erros reprimidos e precisam achar uma válvula de escape que não seja a confissão. Todos sabemos que racismo, homofobia, antissemitismo e demais males são errados, mas os militantes de esquerda que dizem “lutar” contra tais problemas o fazem por uma questão meramente de gramática política, não porque de fato se importam com a opressão que as vítimas desses preconceitos sofrem. A prova disso é que você não pode ser uma das ditas minorias e militar pelo outro lado do espectro político – a direita. Pobre, negro, gay e mulher de direita são termos pejorativos, usados pelos limpinhos progressistas culpados como adjetivos humilhantes para desqualificar qualquer um que do outro lado discorde de seu totalitarismo ideológico – mesmo fazendo muito mais sentido para qualquer pobre, negro, gay ou mulher ser de direita, coisa que a culpa os impede de ver na maioria das vezes.
A questão da culpa aqui abordada está evidenciada também na literatura norte-americana, em “A Letra Escarlate”, de Nathaniel Hawthorne. A obra, que se passa em Boston, no século XVII, gira em torno de um palanque que fica na praça central da cidade e é utilizado para confissões e punições daqueles que cometem algum tipo de transgressão da lei. O enredo começa com a história da jovem Hester Prynne, que tem uma relação adúltera com o reverendo Dimmesdale, após a morte de seu marido, que gera uma criança que naquele contexto é considerada ilegítima. Devido aos padrões da época, Prynne se recusa a dizer quem é o pai de sua filha, o que faz com que as autoridades entrem em ação, levando-a para o palanque central da praça para humilhá-la e colocar nela uma letra “A” de “adúltera”, bordada de vermelho em seu peito (daí o nome do romance: “A Letra Escarlate”). No final do livro, o pastor Dimmesdale sobe ao palanque com Hester e a filha deles, rasga suas vestes de reverendo e confessa publicamente ser tanto o pai da criança quanto o parceiro no pecado de adultério de Hester Prynne. Logo em seguida, sua filha o beija, Hawthorne nos diz que “um feitiço fora quebrado”, em alusão à culpa remediada, e o reverendo morre.
Todavia, há uma cena no palanque que ocorre entre a humilhação inicial de Prynne e a confissão pública final de Dimmesdale, que é quando o reverendo sobe nele, no meio de uma noite, e admite ser o pai da filha da personagem principal para um público inexistente. Ou seja, Dimmesdale faz uma paródia da confissão para sedar sua culpa, mais ou menos como a Sra. Quindlen faz ao praticar o ativismo pró aborto e assar os tais biscoitos da culpa progressista. A Letra Escarlate é uma obra literária que aborda o realismo moral, que diz que a culpa é um fenômeno real baseado na transgressão da lei moral, e não uma “construção social” como os progressistas querem nos fazer acreditar. Essa culpa nos cobra de atos errados que fazemos em menor ou maior escala, como o aborto, o adultério, a avareza, a luxúria etc.
Santo Agostinho dizia que a rejeição à verdade conhecida e a obstinação são pecados contra o Espírito Santo que levam à impenitência final. Literalmente qualquer pessoa, incluindo a Sra. Quindlen, sabe que o aborto se trata de infanticídio, mas os que o praticam e o defendem, e se recusam a confessar, precisam de um antídoto para aliviarem a culpa. Ao rejeitarem a confissão, seus praticantes e defensores se apegam a falsas ideias (obstinação) e rejeitam a verdade conhecida, o que embora faça a culpa ser aliviada por um tempo, como no caso do reverendo Dimmesdale, faz também com que ela volte uma hora ou outra, mais forte, cobrando uma dose maior do antídoto até chegar a um ponto que assar biscoitos da culpa não será mais suficiente para tirar a pessoa do pântano que a chantagem espiritual a colocou.
EL MAGO, para Vida Destra, 26/09/2022.
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