Foto de capa: Presidente Jair Bolsonaro discursa durante visita a Chapecó/SC
No último dia 15 de janeiro, a velha imprensa comemorou bastante a determinação do juiz Fabio Tenenblat, da 3ª Vara Federal do Rio de Janeiro, que atendeu o pedido do Movimento de Reintegração das Pessoas com Hanseníase (Morhan)[1] para que “a União e seus representantes, incluindo o sr. Presidente da República Jair Bolsonaro” fossem proibidos de pronunciar a palavra “lepra e seus derivados”[2]. Mas, não atendeu o pedido para que o servidor público que usasse esses termos em seu “discurso” sofresse “um procedimento administrativo” e que fosse aplicada uma multa diária de R$ 50.000,00 ao recalcitrante.
O Morhan moveu essa ação porque considerou ofensiva a fala de Jair Bolsonaro, em evento realizado no ano passado, no dia 7 de abril de 2021, na cidade de Chapecó, em Santa Catarina. Na ocasião, em discurso improvisado, o presidente falou sobre liberdade de expressão, a censura que a mídia vinha (e continua) fazendo às informações sobre tratamento precoce e medicamentos fora da bula para combater a epidemia de covid-19. Ele usou as palavras “lepra” e “leproso”, aparentemente, numa tentativa de passar a mensagem de que o mundo não vai acabar agora, como não acabou por causa de outras doenças. No trecho polêmico, Bolsonaro disse: “Eu acredito na ciência. A ciência por vezes demora. Vocês lembram lá, quem lê a bíblia, já assistiu filme daquela época, da época de Cristo, quando ele nasceu. O grande mal daquele momento era a lepra. O leproso era isolado, distância dele. Hoje em dia temos lepra também. Continua, mas o mundo não acabou naquele momento.”[3]
Em seu despacho, o juiz afirma considerar a Lei nº 9.010/1995 [4], na qual foram baseados tanto o pedido do Morhan como sua decisão, como um “significativo avanço na luta contra a discriminação e o preconceito”. No entender dele, o “legislador, consciente da situação de grave discriminação vivida pelas pessoas atingidas pela hanseníase” resolveu “combater tal iniquidade [5] coibindo não apenas o uso do referido termo, como o de inúmeras outras palavras e expressões igualmente depreciativas”.
Para o juiz, a referida lei “concretiza” [6] a “dignidade da pessoa humana”, ao “reconhecer e assegurar o valor intrínseco de cada pessoa” e ao admitir “igual dignidade aos indivíduos, sem qualquer distinção”. Ele acredita que o uso de termos estigmatizantes e discriminatórios, por parte de autoridades, causa danos e “abalos psicológicos” às pessoas atingidas pela hanseníase”, considerando a “histórica dívida que a sociedade” tem para com essa parcela da população.
Bem, apesar do sucesso que essa discurseira politicamente correta fez na velha mídia, a decisão causa estranhamento porque a Lei nº 9.010/1995 não se refere a “discursos”, nem a pessoas. Ela determina expressamente que “o termo ‘lepra’ e seus derivados não poderão ser utilizados na linguagem empregada nos documentos oficiais [7] da Administração centralizada e descentralizada da União e dos Estados-membros”. Tanto é assim que, em caso de descumprimento da lei, a única punição prevista é o arquivamento imediato de “quaisquer papéis [8] que não observem a terminologia oficial”.
Então, apesar de a lei clara e enfaticamente não se referir a discursos, nem a pessoas, mas, apenas e tão somente a documentos escritos, o juiz acatou o pedido do Morhan porque está convencido de que – imagino que inspirado no Supremo Tribunal Federal, esse verdadeiro farol da defesa da letra das leis e da Constituição [9] — “as normas garantidoras de direitos fundamentais devem ser interpretadas de forma extensiva”. Sendo assim, optou por considerar um “discurso realizado em cerimônia oficial da Presidência da República e devidamente registrado pela TV Nacional do Brasil (NBR)” como sendo um “documento oficial”.
“O juiz está proibindo a leitura do Evangelho?”
Obviamente, embora essa interpretação criativa da lei faça a alegria dos lacradores, na prática, ela pode trazer alguns problemas não previstos. Foi o que apontou o jornalista independente Alexandre Garcia, em seu canal do Youtube.[10] Ainda que considere “muito justo que se evite qualquer coisa que estimule qualquer preconceito”, ele destaca que “a lei não proíbe que alguém pronuncie a palavra [lepra], nem poderia [fazê-lo] porque a Constituição garante a liberdade de expressão”. E o jornalista levanta a questão: “Se o juiz está proibindo que qualquer pessoa da União pronuncie a palavra lepra, o que vamos fazer com os capelães militares, que são funcionários da União, na hora de ler Lucas, Mateus e Marcos? O juiz está proibindo a leitura do Evangelho?”
Para meu espanto, o comentarista Joel Pinheiro, do UOL News, que é notoriamente contrário ao presidente, também concorda com o ponto levantado por Alexandre Garcia e vai além: “Eu acho que a gente deve pensar como a mudança social deve ser efetuada. O termo lepra carrega uma dose de preconceito, de ideias que vêm de muito tempo atrás [e] (…) não é à toa que a lepra aparece tão forte em certas passagens da Bíblia, porque era uma doença que, uma vez que a pessoa pegou, ela está condenada e ela tinha de ser separada para não passar para os outros. [A palavra lepra] (…) tinha uma carga muito pesada. E é por isso que cada vez mais as pessoas optam por [usar] hanseníase que é um termo mais técnico que não traz toda essa carga. Agora, proibir o presidente de falar em discurso? Em documento oficial, em documentos da Saúde, é óbvio que tem que usar o termo técnico da doença. Agora, num discurso em que o presidente busca usar uma palavra que as pessoas entendam… Quanto da população brasileira já sabe que hanseníase é a tal da lepra, a doença que Jesus curava? Muita gente não sabe. Então, proibir, mesmo na manifestação popular, acho um erro. Acho que a mudança tem que vir pela educação, pela mudança gradual, pelo exemplo, e não buscando proibir uma fala que, no fundo, só ia ser compreendida [pelas pessoas presentes ao discurso], se ele [o presidente] usasse esse termo mesmo. (…) Se eu entendi bem, [no discurso, o presidente disse que] (…) o mesmo tratamento injusto, ruim que era dado para os leprosos lá trás, o isolamento, o estigma social, hoje em dia, é dado para quem contraiu covid, que as pessoas querem isolar, querem não sei o quê. [A fala do presidente é] uma idiotice total porque não leva em conta qual a motivação e qual é a importância de se cumprir uma quarentena para não infectar os outros, justamente para proteger as outras pessoas.[11] O ponto dele é de uma completa idiotice. Agora, para ele fazer [compreensível] esse ponto de que ele acha errado esse isolamento, se ele quiser usar essa imagem, [a palavra que ele tem que usar] é lepra, concorda? Se ele usasse hanseníase, para a maior parte dos ouvintes dele, nada ia ser compreendido. Acho importante a gente se mover como sociedade para deixar de lado uma palavra que traz uma carga tão pesada, porque estigmatiza uma pessoa que tem uma doença que [hoje] é uma doença como tantas outras e [que] hoje em dia inclusive é tratável. Agora, essa mudança não vai vir com você aplicando multa em quem fala lepra. Até porque no texto da Bíblia [a palavra usada] é lepra. A gente vai editar também a Bíblia para falar hanseníase?” [12] Ora, ora, o Joel Pinheiro é um bocó [13] mas, nesta questão, concordo totalmente com ele. Eu não diria a mesma coisa de forma melhor!
A mudança da sociedade a partir do discurso
Para desfazer ideias preconceituosas e dar visibilidade às questões das pessoas deficientes na mídia, durante a “era jurássica” do movimento por direitos das pessoas com deficiência, nos anos 1980, o saudoso jornalista Emir Macedo Nogueira [14] sugeriu que nós, integrantes do Núcleo de Integração de Deficientes (NID), escrevêssemos [15] aos jornais sobre qualquer matéria publicada que, mesmo remotamente, se referisse ao assunto. Seguindo à risca a sugestão do professor Emir, o NID costumava entulhar o setor de cartas dos leitores. Muitas dessas cartas foram publicadas e a maioria foi escrita por mim.
Então, como jornalista e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência, reconheço o poder das palavras e, em especial, das palavras escritas. Acredito que a Lei nº 9.010/1995, ao exigir que os documentos oficiais escritos não usem palavras estigmatizantes, é justa e adequada porque reflete o espírito e a atuação dos líderes pioneiros do movimento das pessoas deficientes, com destaque, no caso, para Francisco Augusto Vieira Nunes, o Bacurau (1939-1997)[16], um dos fundadores do Morhan, a quem conheci pessoalmente.
Acredito que Bacurau, como os demais líderes que atuaram naquele momento histórico, buscava a mudança de mentalidade e, consequentemente, das atitudes da sociedade a partir do discurso. Mais precisamente, a partir do discurso inédito que passou a ser ouvido quando as pessoas com deficiência passaram a falar por si mesmas, depois de desautorizarem seus antigos porta-vozes, a saber, médicos, religiosos, políticos, professores e autoridades em geral. Esse novo discurso procurava informar, educar, conscientizar, persuadir e não censurar, ameaçar ou punir.
Ao contrário do juiz e da liderança atual do Morhan, acredito que a proibição, no discurso corriqueiro das pessoas, de certas palavras consideradas “ofensivas” pela patrulha do “politicamente correto” e pela ditadura do “lugar de fala”, não “combate” injustiças, muito menos “concretiza” a dignidade de ninguém. Na verdade, creio que censurar o discurso impede o diálogo e dificulta a transmissão da informação correta, prejudicando aqueles que pretende defender, pois dá ensejo a antipatia e a mais preconceito e discriminação.
Jair Bolsonaro deu uma mancada [17], mas não pretendeu ofender ninguém. Se tivesse sido melhor assessorado, talvez o presidente pudesse ter usado o nome antigo (conhecido por todos, como assinalou o Joel) da doença e, em seguida, aproveitado para dizer o nome atual e informar que hoje ela tem cura, sem deixar sequelas, se diagnosticada e tratada precocemente, e que não é transmissível a partir do início do tratamento.
Creio que o Morhan perdeu a oportunidade de usar esse deslize do presidente para fazê-lo comprometer-se, pessoalmente, com a luta pela conscientização da sociedade sobre a hanseníase. Se, em vez de lacrar, o Morhan tivesse buscado um diálogo com Jair Bolsonaro, talvez pudesse ter conseguido espaço nas redes sociais e, quem sabe, até nas lives semanais do presidente, acompanhadas por milhões de pessoas de todo o País.
O Morhan poderia ter servido melhor à causa, se tivesse usado essa chance para difundir informações corretas com potencial para diminuir o preconceito contra as pessoas atingidas pela hanseníase, para ensinar a importância da detecção precoce da doença e informar onde e como obter o tratamento gratuito.
Em vez da mera lacração, quem sabe o Morhan tivesse tido a oportunidade de falar a centenas de milhares de brasileiros sobre a ignomínia que é o país ainda conviver com essa doença perfeitamente evitável e, sobretudo, dizer como nós, como nação, devemos perseguir sem descanso a eliminação da hanseníase.
Notas:
[1] Saiba mais sobre a organização aqui!
[2] Leia a íntegra da decisão aqui!
[3] Neste vídeo, temos o discurso do presidente. Essa fala específica começa em 24:15 e vai até 24:50. Assista neste link!
[4] Leia a íntegra da Lei nº 9.010/1995 aqui!
[5] [6] [7] [8] Os grifos são meus.
[9] Contém ironia.
[10] Assista o vídeo de Alexandre Garcia aqui!
[11] Joel não assistiu ao vídeo do presidente, pois Bolsonaro não criticou a quarentena dos doentes nesse discurso.
[12] Acesse o Canal Uol, com Joel Silveira aqui!
[13] Saiba por que Joel Pinheiro é um bocó, lendo “A tia-avó do zap e os bocós de mola” aqui!
[14] Emir Macedo Nogueira (1927-1982) foi professor de Português, na cidade de Osasco, nos anos 1950-60, e de Técnica de Redação, na Faculdade Cásper Líbero, nos anos 1970-80. Trabalhou, por 30 anos, no jornal Folha de S. Paulo, onde ocupou cargos como jornalista, editorialista e editor das páginas de opinião.
[15] Escrever aos jornais, naquela época, significava escrever à mão, usando caneta e papel, ou datilografar numa máquina de escrever um texto curto e bem objetivo tecendo considerações sobre alguma matéria que havia sido publicada. Colocávamos esse papel num envelope, escrevíamos o endereço do remetente e do destinatário, levávamos a carta a uma agência dos Correios, onde era selada e enviada. Com sorte, em uma semana ou 15 dias, você veria sua carta publicada na seção Cartas dos Leitores. É, padawan, era assim que as coisas eram feitas no tempo dos dinossauros.
[16] Francisco Augusto Vieira Nunes nasceu em Manicoré, no Estado do Amazonas, e contraiu hanseníase aos cinco anos de idade, na década de 40. Desde a infância conheceu de perto o preconceito e o isolamento do convívio social. Na adolescência passou a morar no hospital colônia de Porto Velho e lá ganhou o apelido de Bacurau, nome de um pássaro da região.
[17] Não, não vou substituir a expressão politicamente incorreta.
Lia Crespo, para Vida Destra, 01/02/2022. Sigam-me no Twitter, vamos debater o meu artigo! @liacrespo
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