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Como um cara insatisfeito mudou o mundo!

*Foto de capa: Escada e rampa, na entrada do Museu Leuven, na Bélgica. Foto de maqualedesingblog

 

Recentemente, duas notícias chamaram a minha atenção. A Unilever anunciou que 200 pessoas com deficiências visual e motora já testaram e aprovaram a usabilidade de uma nova embalagem do desodorante Rexona que tem fechos magnéticos, rótulo em braile e um aplicador roll-on maior, para que o produto possa ser usado com uma mão só.[1]

Rapaz com deficiência nos braços usando a nova embalagem do desodorante Rexona.

Em 25 de março de 2021, o Conselho Nacional de Educação (CNE) incluiu o Desenho Universal nas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo.[2]

Segundo estimativas da Organização das Nações Unidas (ONU) [3], 10% da população mundial são formados por pessoas com algum tipo de deficiência. É um bocado de gente. Alguns dizem que é a maior minoria do mundo. Mesmo assim, para ser economicamente rentável, penso que essa nova embalagem de desodorante precisa ser prática e bonita para todo mundo, não apenas para pessoas deficientes. Aliás, é exatamente isso o que propõe o Desenho Universal (Universal Design).

Já ouviu falar em Desenho Universal? Não? Então, senta que lá vem história!

Tudo começou, em 1985, quando o arquiteto americano Ronald “Ron” Mace (1941-1998), que usava cadeira de rodas, começou a achar que, comparado à acessibilidade zero que havia antes, o Desenho Acessível, criado nos anos 1970, era um ótimo avanço, estava tornando possível o acesso aos edifícios já existentes. Mas, não era mais satisfatório.

Ronald Mace, criador do Desenho Universal

Diante de uma entrada principal, cheia de escadas, Ron não queria mais ter de perguntar para alguém ou sair procurando o Símbolo Internacional de Acesso (aquele com o cadeirante estilizado em branco sobre fundo azul) [4], para descobrir onde se escondia a rampa segregada. Ron não queria mais entrar pelos fundos. Então, concluiu que o conceito precisava evoluir, especialmente, no que dizia respeito aos novos ambientes a serem projetados.

Ron não só queria entrar pela porta da frente, como também queria que o acesso a ela fosse o mesmo para todos: cadeirantes, idosos, obesos, cardíacos, pessoas usando aparelho ortopédico e muletas, gente com a perna engessada, gestantes, mães com carrinhos de bebê e pessoas sem nenhuma limitação física. Enfim, literalmente, todo mundo.

Mais do que trazer a rampa para a entrada principal, Ron queria fazer a coisa de modo a que ela não fosse mais necessária ou, se fosse imprescindível, que todos a usassem e gostassem disso.

E, como era um cara que sonhava alto, Ron refletiu: “E se fosse possível estabelecer critérios que tornassem tudo acessível para todos?”.

Foi assim que Ron criou o conceito de Desenho Universal, cujo objetivo é orientar o design de ambientes, produtos, serviços e comunicações para que sejam acessíveis não só para as pessoas com deficiência, mas, também, para todas as pessoas, independentemente de sua condição física, visual e cognitiva, assim como seu tamanho, altura, idade, etc.

Nos anos 1990, Ron estimulou, na Universidade Estadual da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, a formação de um grupo de arquitetos, que estabeleceu os Sete Princípios do Desenho Universal. Assim, para que seja útil, comercializável, atraente e seguro para pessoas com diferentes habilidades o projeto deve ser igualitário, flexível, intuitivo, de fácil percepção, seguro, usado sem esforço e abrangente.

O primeiro princípio diz que ambientes, produtos, serviços e comunicações devem ser igualitários e ter uso equitativo. O uso deve ser feito de modo idêntico ou equivalente e evitar segregar ou estigmatizar. Um bom exemplo são as portas que abrem e fecham automaticamente, torneiras sensíveis à aproximação, controles com botões maiores, etc.

O segundo princípio requer que o design seja flexível e adaptável a uma ampla gama de preferências e habilidades individuais. Por exemplo, tesouras e abridores de latas que podem ser usados tanto por destros como por canhotos, com o mesmo conforto, precisão e segurança.

O terceiro princípio privilegia o uso simples e intuitivo. O produto deve ser fácil de usar, não requerer conhecimento, nem treinamento prévios, independentemente da experiência, habilidades ou nível de concentração do usuário. Por exemplo, uma máquina de lavar roupas, televisor, ou outro equipamento qualquer deve ser fácil de manusear, com um display de instruções contendo palavras simples e também desenhos/símbolos.

O quarto princípio determina que haja fácil percepção e redundância de informações. Desenhos, luzes, sons e texturas podem ser usados para facilitar o entendimento das informações, independentemente das habilidades sensoriais ou cognitivas do usuário. A embalagem de um remédio e os botões do elevador, por exemplo, devem ter também informações em braile. O manual de um produto deve vir em várias línguas, conter desenhos e organizar informações por ordem de importância. Sites da internet também podem ser projetados para permitir que softwares ledores de tela permitam a navegação por pessoas cegas.

O quinto princípio propõe que o projeto seja seguro e tenha tolerância a erros, minimizando os riscos de acidentes e desestimulando ações não intencionais, especialmente, em tarefas que exijam atenção. Barras de apoio, corrimãos, pisos antiderrapantes e com sinalização tátil, alarmes sonoros e luminosos, sistemas que detectam e emitem som quando o motorista dá uma cochilada são alguns exemplos de recursos que podem ser usados.

O sexto princípio diz que os produtos, ambientes ou serviços devem ser usados sem esforço, com um mínimo de fadiga. Por exemplo, o estacionamento reservado para idosos e cadeirantes deve ficar próximo ao elevador ou porta de entrada. As rampas devem ser suaves e conter patamares para descanso.

O sétimo princípio preconiza que ambientes, produtos, serviços, etc. devem ser abrangentes, permitindo a aproximação, alcance, manipulação e uso, independentemente de tamanhos corporais (alto ou baixo, obeso ou magro, forte ou fraco), posturas (sentado ou em pé) ou mobilidade do usuário (com ou sem deficiência, jovem ou idoso). Por exemplo, um totem de autoatendimento bancário ou de fornecimento de senhas para atendimento devem poder ser usados confortavelmente também por pessoas em cadeira de rodas ou com baixa estatura. Numa loja, corredores mais largos e provadores de roupas maiores facilitam a vida de pessoas com deficiência, mães com carrinho de bebês e pessoas obesas. Hospitais, consultórios e laboratórios médicos devem estar equipados com mesas de exames acessíveis a cadeirantes, pessoas com baixa estatura e idosos.[5]

Embora, todos possam ser favorecidos pelo Desenho Universal, é claro que dois segmentos da população são mais beneficiados: idosos e pessoas com deficiência. Graças aos avanços da medicina, à ampliação da água tratada, do saneamento básico e do estilo de vida mais saudável, esses grupos de pessoas estão vivendo mais e tendo uma vida mais ativa.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2018, pela primeira vez na história, o percentual de pessoas com 65 anos ou mais ultrapassou o de crianças com menos de cinco anos no mundo. O Ministério da Saúde estima que, no Brasil, isso vai acontecer em 2030. Um quinto da população mundial (dois bilhões de pessoas) terá mais de 60 anos e 426 milhões de indivíduos terão mais de 80 anos, até 2050.

Cada pessoa com deficiência e/ou idosa se relaciona, direta ou indiretamente, pelo menos, com três outras pessoas. Ao respeitar as necessidades das pessoas com deficiência e dos idosos, o Desenho Universal também deixa satisfeitos parentes, amigos, cônjuges, atendentes pessoais, profissionais da área, enfim, todos que se relacionam com essas pessoas. Portanto, as empresas que adotam os princípios do Desenho Universal não só cumprem a legislação específica, mas, também melhoram sua imagem pública e ampliam sua clientela.[6]

Como todo mundo sabe, um cliente satisfeito tem o potencial de divulgar a empresa, produto ou serviço para outras pessoas que, por sua vez, se tornarão potenciais clientes e multiplicadores. Em tempos de pós-pandemia, a adoção do Desenho Universal pode fazer a diferença entre a empresa que não vai sobreviver e aquela que vai se reinventar e conquistar novos clientes.

Ainda que não esteja suficientemente disseminado, no Brasil e em países menos desenvolvidos, a tendência é que o Desenho Universal se torne a corrente dominante e nada fora disso será considerado aceitável.

Quando o Windows perguntar se você tem mesmo certeza de que quer excluir aquele arquivo vital para seu trabalho, lembre-se do Desenho Universal e agradeça ao Ron por salvar sua pele!

Notas:

[1] Mais informações sobre esse produto, aqui neste link.

[2] Ufa! Demorou só 41 anos para que fosse atendida a reivindicação do movimento de pessoas com deficiência para que os estudantes de arquitetura tivessem noções de acessibilidade.

[3] Sei que a ONU está bem desacreditada, mas, para as pessoas com deficiência, ela foi uma mão na roda (com o perdão do trocadilho), dando visibilidade a um segmento da população, até então, completamente invisível.

[4] Lei nº 7.405, de 12 de novembro de 1985. Confira neste link.

[5] Vocês não imaginam as peripécias e humilhações a que uma mulher com deficiência tem de se submeter para fazer um simples exame ginecológico de rotina.

[6] Alô, Luciano Hang, pense nisso, antes de reclamar dos estacionamentos reservados de novo.

 

 

Lia Crespo, para Vida Destra, 17/05/2021.                                                              Sigam-me no Twitter, vamos debater o meu artigo! @liacrespo

 

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5 COMMENTS

  1. Neste exuberante art. de @liacrespo s/como um cara insatisfeito mudou o mundo como Ron Mace c/os 7 princípios p/o desenho universal, tornando a acessibilidade p/todos,inclusive previsto no inc. II do art. 3 da Lei 13.146/2015. O q me indigna é dizer q se o voto for auditável e impresso, como garantir o sigilo do voto a um deficiente visual já q estará acompanhado. P/q serve a tomada de decisão apoiada?

  2. Vivendo e aprendendo. Muito obrigado Dra. Lia! Eu não tinha conhecimento do desenho universal, mais uma vez, muito obrigado e que seu coração seja cheio de boas emoções.

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Lia Crespo é militante jurássica do movimento das pessoas deficientes, jornalista, com doutorado em História Social, com a tese "Da invisibilidade à construção da própria cidadania. Os obstáculos, as estratégias e as conquistas do movimento social das pessoas com deficiência no Brasil, através das histórias de vida de seus líderes" (FFLCH/USP), e mestrado em Ciências da Comunicação, com a dissertação “Informação e Deformação: A imagem das pessoas com deficiência na mídia impressa” (ECA/USP). Autora dos livros infantis “Júlia e seus amigos” e “Uma nova amiga”, que tratam de deficiência e da importância da amizade para uma sociedade inclusiva.