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Duas mulheres com deficiência foram notícia em novembro

*Imagem de capa: Karine Elharrar, ministra da Energia de Israel

 

Duas mulheres com deficiência usuárias de cadeira de rodas foram objeto de notícias internacionais no começo deste mês de novembro. Uma delas foi Karine Elharrar, 44 anos, ministra de Energia representante de Israel na Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP26), que começou dia 1º e terminou no dia 12 de novembro de 2021.

Karine Elharrar tem distrofia muscular e virou notícia porque não pôde participar do primeiro dia de debates. Ela não conseguiu chegar até o local da conferência, na cidade de Glasgow, na Escócia, porque seu veículo não foi autorizado a entrar no complexo de edifícios onde era realizado o evento. Como a distância restante era muito grande para ir em sua cadeira de rodas, ela esperou do lado de fora, por duas horas, até que o transporte autorizado pela COP26 chegou. No entanto, o veículo não era acessível para sua cadeira de rodas.[1] Ela acabou voltando a seu hotel em Edimburgo, a 80 quilômetros de distância.

“Vim para a COP26 para encontrar minhas contrapartes no mundo e avançar em nossa luta conjunta contra a crise climática”, escreveu Karine Elharrar no Twitter. “É triste que a Organização das Nações Unidas, que promove a acessibilidade para pessoas com deficiência, em 2021 não se preocupe com a acessibilidade em seus próprios eventos.”

A delegação israelense reclamou do ocorrido formalmente aos organizadores da COP26. O primeiro-ministro de Israel, Naftali Bennett,  disse ao primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, que não compareceria à conferência, se Elharrar não pudesse estar presente. Segundo o Times of Israel, Boris Johnson convidou Karine Elharrar para participar de uma reunião entre os dois primeiros-ministros e, na ocasião, pediu desculpas pessoalmente a Karine Elharrar: “Suponho que houve alguma confusão com os arranjos ontem. Lamento muito, muito por isso”, disse Johnson a ela, de acordo com o jornal. Também pediram desculpas o embaixador britânico em Israel, Neil Wigan, e o ministro das Relações Exteriores para o Oriente Médio e Norte da África, James Cleverly.

George Eustice, secretário de meio ambiente da Grã-Bretanha, lamentou que a entrada escolhida pela representante israelense fosse inacessível e que as medidas tomadas para resolver o problema tivessem sido inadequadas. Mas assegurou, numa entrevista à BBC, que “a maioria das outras entradas” era acessível. De fato, outras pessoas em cadeiras de rodas tiveram acesso às instalações da conferência, que incluíam elevadores, rampas e banheiros acessíveis.

O evento “deve ser inclusivo e o local foi projetado para ser acessível a todos”, escreveram no Twitter os organizadores da COP26, acrescentando “que a experiência da Sra. Elharrar foi um erro genuíno e pedimos desculpas por isso”. Apesar desse pequeno incidente diplomático, tudo foi resolvido e Karine Elharrar pôde participar do resto da cúpula do clima.

 

A história de Engracia Figueroa não teve um final feliz

 

Engracia Figueroa, ativista dos direitos das pessoas com deficiência

No entanto, Engracia Figueroa, 51 anos, não teve a mesma sorte. Ela tinha lesão medular, a perna esquerda amputada, era ativista em defesa dos direitos das pessoas com deficiência nos Estados Unidos e faleceu em 31 de outubro. Seus amigos e a organização “Hand in Hand”, que ela representava, estão convencidos de que sua morte foi causada por complicações de saúde decorrentes do uso prolongado de uma cadeira de rodas inadequada, a qual ela teve de usar, depois que a sua própria, especialmente adaptada às suas necessidades, foi destruída pela companhia aérea United Airlines, em julho deste ano.

Segundo relata o jornal USA Today, Engracia Figueroa estava voltando para casa na Califórnia, depois de uma viagem a Washington, quando a United Airlines danificou irremediavelmente sua cadeira de rodas personalizada, com assento especial e outros recursos próprios para prevenir úlceras de pressão.[2] Naquele dia, Engracia ficou no aeroporto durante cinco horas, numa cadeira de rodas comum, manual e quebrada, sofrendo fortes dores.

Durante as semanas seguintes, enquanto ela e a companhia aérea discutiam se a United Airlines deveria consertar ou substituir o equipamento de 30.000 dólares, Engracia Figueroa teve de usar uma cadeira de rodas emprestada que não dispunha das adaptações necessárias.

Quando a empresa aérea concordou em substituir o equipamento, era tarde demais. Além do estresse e dos danos à sua frágil saúde decorrentes do esforço que teve que fazer, o pior aconteceu: o aparecimento da temível úlcera de pressão, ferimento de difícil tratamento, que piorou e infeccionou rapidamente. Depois de diversas hospitalizações, Engracia Figueroa não resistiu e faleceu.

A morte de Engracia causou consternação entre seus amigos e preocupação em outros ativistas pelos direitos das pessoas com deficiência. James LeBrecht, diretor do documentário “Crip Camp”[3] e ativista dos direitos das pessoas com deficiência, escreveu no Twitter:  “Dispositivos de mobilidade são uma extensão de nossos corpos. Quando eles são danificados ou destruídos, ficamos desativados. Até que as companhias aéreas aprendam a tratar nossos dispositivos com o cuidado e respeito que eles merecem, voar permanecerá inacessível.” Para Dan Formento, um veterano das Forças Armadas americanas, “as companhias aéreas não entendem que, quando danificam nossa cadeira, estão tirando nossas pernas de nós”. A “Hand in Hand” divulgou uma carta em seu site, atribuindo à empresa aérea a culpa pela morte da sua líder: “Sua luta para manter o equilíbrio durante esse período de tempo na cadeira inadequada levou a ferimentos significativos.” A United Airlines disse: “Ficamos tristes ao saber do falecimento da Sra. Figueroa e oferecemos nossas condolências aos amigos e familiares dela.”

Por dia, 26 cadeiras de rodas são perdidas, danificadas ou destruídas

 

Se, entre julho e agosto deste ano, cerca de 26 cadeiras de rodas e scooters foram perdidas, danificadas ou destruídas por dia, nos Estados Unidos,[4] a situação não deve ser muito diferente no Brasil.

Desde 2007, a Norma Operacional da Aviação Civil (Noac), aprovada pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac)[5], determina as medidas que aeroportos e companhias aéreas devem adotar para garantir o acesso adequado de passageiros com necessidade de assistência especial ao transporte aéreo, incluindo o transporte gratuito e incondicional de cadeiras de rodas nas aeronaves brasileiras. Porém, nada garante que esses equipamentos cheguem inteiros a seu destino, nem que, se você for uma pessoa com deficiência, não enfrente toda sorte de perrengues e humilhações antes, durante e depois de uma viagem de avião.

Se você for uma pessoa com deficiência, muito provavelmente, vai ter dificuldades para fazer valer seu direito de viajar no assento mais adequado, ou seja, na primeira fileira, o mais perto possível da porta do avião, porque a companhia pode ter mais interesse em alocar ali outro passageiro disposto a pagar uma taxa extra pelo tal “assento conforto”.

Na hora do check-in, se sua cadeira de rodas for movida a bateria, é bom chegar bem mais cedo e se preparar para enfrentar a burocracia, o desconhecimento e a má vontade. Especialmente se a viagem for internacional, é possível que a revista pessoal seja trabalhosa e invasiva.

Como a atual configuração das aeronaves não permite a entrada de cadeira de rodas, você terá de ser carregado ou colocado na cadeira de rodas de bordo (de resto uma geringonça muito desconfortável) para chegar até seu assento. Prepare-se para ter seu corpo manipulado por estranhos, muitas vezes sem o treino e o cuidado necessários. Em 1999, numa viagem a Washington, nos Estado Unidos, para participar de um evento relativo a deficientes, um amigo meu, ao ser “ajudado”, teve o braço deslocado. Foi obrigado a alugar uma cadeira motorizada, porque não conseguia mover sua cadeira manual, durante o tempo em que durou o evento.

Não se esqueça de que, como as aeronaves não dispõem de sanitários minimamente acessíveis, se a viagem for mais longa, você não vai poder ingerir nenhum líquido e/ou vai ser obrigado a usar fralda.

Na hora do desembarque, muna-se de paciência porque será o último a sair. O processo todo pode levar um bom tempo. Você pode aproveitar para rezar fervorosamente (se puder, com os dedos cruzados) para que sua cadeira de rodas não tenha sido extraviada, nem danificada. Dê-se por feliz, se você não for esquecido dentro do avião, como alega o jornalista tetraplégico  Marcelo Rubens Paiva  ter acontecido com ele, em 2012.[6]

Seja como for, ao saber que sua cadeira o espera intacta na porta do avião, é provável que você fique tão aliviado que nem se aborreça por ter de enfrentar a mesma desconfortável e humilhante via crucis para desembarcar. Isso, claro, se seu avião estiver estacionado num finger [7] e/ou se houver à sua espera um ambulift [8], caso contrário, a coisa pode se complicar, como aconteceu, em 2011, no aeroporto de Brasília, com a então deputada, hoje senadora, Mara Gabrilli.[9]

A resposta às preces dos cadeirantes pode ser o sistema “Air 4 All”, projetado pelo consórcio formado pelas empresas PriestmanGoode, SWS Certification e Flying Disabled, que converte os assentos da primeira fila da aeronave e possibilita instalar e travar com segurança até duas cadeiras de rodas motorizadas, num único voo.

Para Chris Wood, fundador da Flying Disabled [10], esse “é um projeto verdadeiramente colaborativo”. [11] É o primeiro sistema desenvolvido em conjunto por uma agência de design, um organismo de certificação, uma empresa líder global na fabricação de cadeiras de rodas e uma grande companhia aérea. E conta, é claro, com o apoio entusiasmado da comunidade de deficientes.

Espera-se que o primeiro protótipo do sistema esteja disponível em dezembro de 2021. Que assim seja!

 

Notas:

[1] As matérias não dizem, mas aposto minhas fichas de que a não autorização teve a ver com a repulsa aos motores de combustão interna que, como todos sabem, ocorre em quatro tempos: admissão, compressão, explosão ou combustão e escape. Ou pode ter sido por um problema de segurança. Vai saber.

[2] A úlcera de pressão, também conhecida como escara, é um ferimento que acontece quando a circulação sanguínea fica prejudicada devido à pressão prolongada em partes do corpo em que os ossos estão em maior contato com a pele. As feridas podem aparecer em diversas regiões de apoio do corpo, especialmente atrás da cabeça, nas costas, na articulação do quadril, no cóccix, nas nádegas, cotovelos e calcanhares. O ferimento pode comprometer todas as camadas da pele e o tecido subcutâneo. Pode evoluir para uma necrose, quando a lesão atinge o tecido muscular, e progredir para uma ulceração em profundidade, com destruição da pele e dos músculos, deixando ossos e articulações expostos. Pessoas em cadeiras de rodas estão mais sujeitas a desenvolver escaras na região do ísquio, osso que serve de apoio ao corpo na posição sentada. Nas pessoas com a sensibilidade preservada, as escaras doem muito. Caso contrário, podem evoluir sem que o paciente se dê conta de sua presença. As úlceras de pressão demoram muito tempo para cicatrizar e podem requerer cirurgias.

[3] Saiba mais aqui.

[4] Leia a matéria “Apesar dos apelos para melhorar, as viagens aéreas ainda são um pesadelo para muitas pessoas com deficiência” disponível neste link.

[5] Saiba mais aqui.

[6] Leia as matérias “Escritor Marcelo Rubens Paiva diz ter sido esquecido em avião em SP” aqui e “TAM é condenada por esquecer passageiro deficiente” neste link.

[7] Passarela de acesso direto do portão de embarque do terminal até o interior do avião.

[8] Cabine móvel com um elevador hidráulico usado para transportar pessoas em cadeiras de rodas ou macas, do terminal até a porta do avião e vice-versa, quando não há finger disponível no aeroporto.

[9] Leia a notícia “Deputada cadeirante tem problemas para desembarcar de avião em SP” disponível neste link.

[10] Saiba mais aqui.

[11] Conforme matéria “Novo projeto criará assento que permitirá cadeiras de rodas viajarem na cabine do avião” que pode ser lida aqui.

 

 

Lia Crespo, para Vida Destra, 15/11/2021.                                                              Sigam-me no Twitter, vamos debater o meu artigo! @liacrespo

 

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2 COMMENTS

  1. Os discursos de inclusão são muito bonitos, assim como estatutos da esquerda e comunistas, mas todos têm em comum um fato importante, são apenas discursos ineficaz.

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Lia Crespo é militante jurássica do movimento das pessoas deficientes, jornalista, com doutorado em História Social, com a tese "Da invisibilidade à construção da própria cidadania. Os obstáculos, as estratégias e as conquistas do movimento social das pessoas com deficiência no Brasil, através das histórias de vida de seus líderes" (FFLCH/USP), e mestrado em Ciências da Comunicação, com a dissertação “Informação e Deformação: A imagem das pessoas com deficiência na mídia impressa” (ECA/USP). Autora dos livros infantis “Júlia e seus amigos” e “Uma nova amiga”, que tratam de deficiência e da importância da amizade para uma sociedade inclusiva.