Começaram na semana passada as Audiências Públicas no Supremo Tribunal Federal para discussão da figura do Juiz de Garantias, o acordo de não persecução penal e os procedimentos de arquivamento de investigações criminais previstos no Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019), objeto de análise da Corte nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) 6298, 6299, 6300 e 6305, conforme notícias do STF de 26.10.2021.
Como é consabido, a figura do Juiz de Garantias está prevista no PL 8.045/2010 – Novo Código de Processo Penal (CPP), que já foi aprovado no Senado e encontra-se em trâmite na Comissão Especial da Câmara, bem como foi sancionada a Lei 13.969/2019-Pacote Anticrimes, contendo a previsibilidade do instituto, que teve a eficácia suspensa, em 22.01.2020 por tempo indeterminado por determinação em medida cautelar do ministro do STF, Luiz Fux, nas ADI supramencionadas, contrariando liminar expedida pelo Presidente da Casa, Dias Toffoli, que havia determinado a implementação da medida no prazo de seis meses, bem como tratado da regra de transição para processos em andamento.
Mas o que vem a ser a figura do Juiz de Garantias? Basicamente é a mudança do sistema acusatório penal brasileiro de “misto” para “puro”, em que há um Juiz para a fase inquisitória e outro para a fase instrutória. Conforme Casara (1) , o juiz de garantias pode ser definido como o “responsável pelo exercício das funções jurisdicionais alusivas à tutela das liberdades públicas, ou seja das inviolabilidades pessoais/liberdades individuais frente à opressão estatal, na fase pré-processual”.
Diferentemente da Audiência de Custódia, que foi uma imposição por conta de Tratado Internacional, o Juiz de Garantias apenas existe em outros códigos de processo penal com vistas à busca do princípio da imparcialidade. A título de exemplo, a legislação chilena, que dispõe do chamado “juez de garantia” em contraposição ao “membro del tribunal de juicio oral”. Similitudes, que ainda podem ser encontradas no ordenamento italiano (“giudice per le indagini preliminar”) e português (“juiz da instrução”).
Em uma live disponível no YouTube na Internet, a juíza Ludmila Lins Grillo diz que a expressão “Juiz de Garantias” é equivocada, uma vez que estaríamos pagando pedágio para o Progressismo, já que dá margem para interpretação na linguagem, em virtude à existência de um Juiz da Garantias e o outro Juiz da Instrução, que vai sentenciar, o qual não observaria as garantias. O correto seria o juiz da investigação ou do inquérito.
Com a implementação do Juiz de Garantias, tal figura fere o princípio do Processo Penal da identidade física do juiz, prevista no § 2o do art. 399 do CPP, em que o Juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença. Fato este que não há previsão de revogação deste parágrafo na Lei 13.969/2019.
Foi aventado à época, por senadores, que o Pacote Anticrimes continha vicio de iniciativa por se tratar de matéria afeta ao Judiciário quanto à organização, situação que não se coaduna com a alínea “b” do inciso II do § 1o do artigo 61 da Constituição Federal, no tocante à competência privativa do Presidente da República neste mister, bem como era ilegal por inobservância da Lei de Responsabilidade Fiscal por não indicar a fonte de custeio para a nova despesa.
Embora houvesse uma divisão de opiniões nos debates na Audiência sobre o Juiz de Garantias que comentarei posteriormente, o cerne da questão é basicamente orçamentário, em que Comarcas que só têm um Juiz pau para toda obra e terão que se desdobrar para visitar município contíguo, no sistema de rodízio previsto no parágrafo único do artigo 3-D da Lei Anticrimes, para desempenhar o papel do juiz investigador. Além do que, atualmente, há falta de meios de locomoção, como carro, bem como a maioria dos processos é física, fazendo com que servidores copiem em arquivos PDF em pen drives, tornando a justiça mais morosa.
Em notícia com o título “Lei Anticrimes tem algumas brechas, saiba quais” da Gazeta do Povo, de 15.10.2020, o procurador e presidente do “Instituto Não Aceito Corrupção”, Roberto Livianu disse que se incorrerá em uma nulidade processual ao criar a figura do Juiz de Garantias e termos um processo que não teve um responsável para autorização de produção de provas.
Igualmente, a Associação Nacional de Procuradores da República – ANPR posicionou-se contra a criação do Juiz de Garantias, em razão do fato de: “existência de diversos dispositivos no projeto que não se adequam ao sistema acusatório, albergado pela Constituição Federal de 1988 como conquista civilizatória que separa as funções de investigar, acusar e julgar”.
Já o representante da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP considera o instituto inconstitucional porque os critérios para configuração da imparcialidade no processo penal, no civil e no trabalhista são iguais, mas a divisão de atuação ocorre apenas na área criminal.
Por outro lado, o Instituto Politeia entende que num sistema acusatório, o órgão judicial — não pode exercer função típica do órgão de acusação — deve ser afastado da fase investigatória. De tal forma, que ao analisar a ADI 1570, o STF julgou inconstitucional dispositivo da antiga lei de organizações criminosas (Lei 9.034/95), que permitia que o magistrado praticasse pessoalmente atos durante durante a investigação.
Segundo a representante do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Flávia Rahal: “não há possibilidade de um sistema processual acusatório possível sem a figura do juiz de garantias. Ela observou que o sistema atual instituído em 1941, tem um viés autoritário, ao centralizar na figura do mesmo juiz o controle da legalização da investigação criminal e da instrução e do julgamento do processo. A cisão do processo penal entre dois juízes preserva a imparcialidade”, conforme artigo do CONJUR, de 25.10.2021, com o título “STF dá início à audiência pública sobre juiz das garantias”.
Maria Pinhão Coelho Araújo, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), também defendeu o instituto do Juiz de Garantias, no sentido que incrementará a qualidade da Justiça e a legitimidade do Estado no exercício do dever de punir.
Para a juíza Ludmila Grillo, o “juiz de garantias” é um mal menor e está funcionando como cortina de fumaça para o verdadeiro problema da lei, que é a inviabilização penal pela inserção de uma série de dificuldades que praticamente inviabilizem prisões e tornem os réus em seres sacrossantos e intocáveis.
Entendo que o juiz de garantias vai provocar maior morosidade no processo penal, sem falar que autorizando medidas cautelares, como prisão, busca e apreensão, quebra de sigilo, será que a investigação ficará incólume, como o vazamento de informações de uma denunciação caluniosa talvez pelo MP, jogando por terra todo o trabalho? O juiz de instrução ficará de mãos atadas não podendo rever atos do Juiz de Garantias?
Enfim, considero que em termos de política criminal, o Brasil teria outras prioridades do que implementar o Juiz de Garantias, já que onerará os cofres públicos com a contratação de servidores e juízes, instalações físicas e tecnologia, não sabendo de que “buraco” sairão os recursos, porque creio eu, não será do Judiciário. Aí, Bolsonaro que se vire!
Nota:
1) CASARA, Rubens R. R.. Juiz das Garantias: entre uma missão de liberdade e o contexto de repressão. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de (Org.). O Novo Processo Penal à Luz da Constituição. v. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 170.
Luiz Antônio Santa Ritta, para Vida Destra, 03/11/2021.
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