*Foto de capa: Dany, foto de Rasso Bruckert, fotógrafo cujo trabalho é centralizado no tema “Corpo e Deficiência”, sendo ele mesmo um usuário de cadeira de rodas, desde os 18 anos. Saiba mais em http://www.rasso-bruckert.de/ganz-unvollkommen/
Marcelo [1] é um homem de 45 anos, profissional bem-sucedido, pós-graduado, pai de um adolescente. Anda sempre bem-vestido, mora num condomínio de luxo, frequentemente joga golfe com os amigos, viaja com a família para o exterior nas férias e dirige um carro do ano importado. Ao cruzar com ele, apressado, na Avenida Paulista, você nem desconfia, mas ele traz consigo um segredo que somente duas pessoas conhecem. Uma delas é sua terapeuta. A outra, sua mulher que, ao mexer no fundo do armário, encontrou uma caixa cheia de fotografias com diversas mulheres em cadeiras de rodas, com pernas e braços amputados, usando muletas. Marcelo tem tesão por mulheres com deficiência. Ele é um devotee.[2]
A “preferência número um” dele são sequelas de poliomielite. Em seguida, vêm paraplegia e amputações. Embora sua “predileção” seja “por deficiências envolvendo as pernas”, no que se refere às amputações, ele também gosta delas nos braços. Para serem excitantes, as amputações podem ser de “todos os tipos, curtas, longas, múltiplas ou simples”. Marcelo tem preferências bem peculiares: “Gosto muito de pés de tamanhos diferentes, de mulheres que andam com muletas, usem aparelhos ou cadeiras de rodas, botas de compensação de altura. Mas, gosto também de mulheres que só mancam um pouco e quase nem se percebe que tiveram pólio. Não gosto de outras deficiências como, por exemplo, paralisia cerebral.”
Foi por acaso que, em 1999, tropecei nesse universo paralelo, no qual homens e mulheres, hétero, homo ou bissexuais se sentem sexualmente atraídos por pessoas com deficiência ou pela deficiência das pessoas. Para fazer contato com o objeto de sua fascinação, os devotees visitam chats, sites, perfis e grupos de e sobre deficientes na internet e, até mesmo, se fazem presentes em eventos destinados às pessoas com deficiência, tipo feiras de equipamentos, congressos etc.
Na época, eu trabalhava como gerente de conteúdo do site Entre Amigos, braço virtual da organização SORRI-Brasil, que prestava serviços para pessoas com deficiência. Minha chefe, Carmen Ribeiro, deixou claro que fazia parte do meu dever descobrir que fenômeno era aquele e se os visitantes de nosso chat corriam algum risco. Além disso, confesso que a descoberta mexeu comigo. Senti como se tivesse encontrado as peças faltantes de um antigo quebra-cabeças. Flashes de memórias começaram a espocar em minha mente. Seria um devotee aquele colega que me fez dar voltas e mais voltas pelo shopping, antes de, finalmente, se decidir pela lanchonete pela qual já havíamos passado meia dúzia de vezes? De repente, fui abalroada pela certeza perturbadora: ele só queria me ver caminhar!
Como parte de minha estratégia de busca por informações, mantive diálogo com diversos devotees que frequentavam um fórum de discussões destinado a deficientes. Também criei e postei na internet um questionário por meio do qual, protegidos pelo anonimato, os devotees não só deram mais detalhes sobre sua fascinação, como também expressaram a angústia por não entenderem os próprios sentimentos. Confessaram a vergonha e a culpa por se sentirem sexualmente excitados por características que podem ser causa de sofrimento para seu objeto de desejo. Sobretudo, revelaram a aflição pelo isolamento causado pelo enorme segredo que carregam.
A partir daí, traduzi, escrevi [3] e publiquei textos que se tornaram, pelo menos em língua portuguesa (já que quase tudo sobre o assunto está em inglês), referência sobre o tema na internet. Meio que me tornei uma estudiosa dessa matéria, uma espécie de “devotóloga”, por assim dizer. Este artigo contém alguns relatos inéditos dessa minha jornada ao desconcertante mundo dos devotees.
Como consequência de minhas pesquisas, descobri que, embora só tenha ganho visibilidade a partir do advento da internet, a literatura médica relata casos de devotees desde 1800, conforme relata artigo do Dr. Richard L. Bruno, do Instituto de Pós-pólio do Hospital de Englewood, de Nova Jersey, EUA.[4]
Assim, fiquei sabendo também que há toda uma terminologia para definir o fenômeno e suas características. Existem os devotees que se sentem sexualmente atraídos por pessoas com deficiência. Há os devotees que também são pretenders, isto é, que também se sentem sexualmente estimulados quando fingem ser deficientes, utilizando, em público ou privadamente, equipamentos como cadeira de rodas, muletas, bengalas, aparelhos ortopédicos. E, além disso, existem os wannabes, que são devotees que desejam tornar-se, de fato, deficientes.
Além da visibilidade para o assunto, a internet propiciou a existência de outro fenômeno ainda mais perturbador. Há diversos sites (em sua maioria estrangeiros) por meio dos quais os devotees podem comprar DVDs e/ou fazer o download de fotos e vídeos com pessoas deficientes. Surpreendentemente, alguns desses sites são o braço virtual de empresas e associações geridas por mulheres com deficiência, como é o caso da Coalizão Mundial de Apoio aos Amputados, cujos vídeos são vendidos por mais de US$100,00, “dos quais 60% vão para a modelo e 40% ficam na Associação para cobrir custos de reprodução, postagem, propaganda e mão de obra”. Há quem considere esse comércio benéfico para as modelos, não só do ponto de vista financeiro, como também por promover um aumento em sua autoconfiança e maior consciência de sua sexualidade”.[5]
Há quem os considere uma abominação, pois, ainda que parte das imagens expostas nesses sites tenha sua divulgação autorizada, nem sempre isso é verdade. Considerando os instantâneos fotográficos de pessoas subindo escadas, descendo de ônibus, atravessando ruas, e, especialmente, levando em conta as fotos que parecem ter sido tiradas em hospitais e centros de reabilitação, a tendência é acreditar que nem todas as pessoas que aparecem nesses sites tenham autorizado a divulgação de suas imagens.
Uma visita a esses sites nos remete a uma estranha Playboy virtual, na qual as regras do que é erótico e sexy são o avesso do que conhecemos. Há seções dedicadas às mulheres com amputações (divididas em subseções com amputações de membros superiores, inferiores ou ambos), usuárias de cadeira de rodas, muletas, bengalas, aparelhos ortopédicos, próteses, enfim, uma ampla gama de deficiências e equipamentos a ser usufruída ao gosto do freguês.
Seja como for, de acordo com as respostas ao meu questionário, todos os devotees já acessaram alguma vez ou acessam frequentemente esses sites e 71,43% deles se sentem sempre excitados por seu conteúdo. Quase todos os devotees entrevistados (85,71%) classificaram como sendo “ilegal”, “condenável” e “um absurdo” o fato de que muitas das pessoas deficientes não tenham autorizado o uso de sua imagem ou sequer tenham conhecimento da veiculação de suas fotos ou vídeos nos sites. Apesar disso, quase todos colecionam (78,57%) fotos e vídeos de deficientes que foram obtidos via internet (42,86%) ou por outras formas (28,57%).
Em 2000, o jornalista Gilberto Dimenstein publicou a matéria “Vidas invisíveis” (FSP), na qual relatou a história de Cláudia Maximino, ativista dos direitos das pessoas com sequelas da talidomida no Brasil, e sua luta para impedir a divulgação clandestina de sua imagem num desses sites para consumo de devotees. Para Dimenstein, o prazer dos “devotees” é uma “aberração do tipo pedofilia”, que ganhou “escala planetária”, graças à internet. Para Claudia Maximino, “é uma violência ver-se exposta desse jeito”.[6]
Rosana, 27 anos, casada, atriz, que prefere paraplégicos e portadores de sequelas de pólio, também acha que “é uma sacanagem a exploração de imagens” não autorizadas. “Mas, para nós, devotees, o fato de a pessoa não ter autorizado seu uso não torna a imagem menos excitante. As fotos e os vídeos estão lá e eles excitam sim. Quando estão excitados, os homens não pensam com a cabeça de cima. Eu, como mulher, nessa hora também não penso com cabeça nenhuma. Se eu pensar racionalmente, condeno, lógico. Mas não deixa de ser excitante, entende? O que me revolta é ver fotos de crianças deficientes e achar que alguém se excita com isso ou, simplesmente, com os sites de pornografia infantil. Aliás, será que os devotees devem ser tão execrados como os pedófilos? Confesso que eu mesma me condeno muito por essa minha atração por deficientes. Acho que a culpa que sinto talvez tenha relação com o fato de me excitar com algo que, de certa forma, bem ou mal, causa ou causou um sofrimento para uma pessoa. Tenho tentado parar de pensar nisso ultimamente”.
O andar claudicante pode ser excitante para os devotees
A partir da tabulação dos questionários, descobri que 84% são homens, heterossexuais, com uma faixa etária média de 30 anos de idade. A porcentagem de mulheres é de 16%. Há uma grande preferência por amputações (78,57%), seguida por sequelas de pólio e outros tipos de deficiência (21,43%).
Fábio, 33 anos, diretor de uma empresa que opera com comércio internacional, engenheiro com pós-graduação na FEA/USP, declara: “Faço parte do grupo de seres humanos do sexo masculino que admiram as mulheres com deficiência física, especialmente as amputadas”.
Rogério, 35 anos, médico, também faz parte desse time. “Tem menos de um ano que fiquei sabendo mais sobre o que eu sentia. Antes, tudo para mim era estranho. Era bom, mas era estranho. Pensava que ninguém mais tinha o mesmo desejo. Nunca havia procurado nada sobre mulheres amputadas, que é minha principal atração. Foi um espanto total quando visitei os sites. Pensei: se existem esses sites é porque outros também pensam assim. Foi bom, porque me senti um pouco mais aliviado e normal”.
Às vezes, a predileção é bem específica. É o caso, por exemplo, de Eduardo, 27 anos, solteiro, biólogo: “Eu me sinto atraído por mulheres, de preferência, com amputação da perda esquerda pouco acima do joelho. Embora uma combinação de amputações é uma ideia a ser considerada. Gosto que usem bengalas canadenses”.
Aliás, a maior parte dos devotees (71,43%) tem predileção pela presença de algum tipo de equipamento assistivo (aparelhos, bengalas, muletas, cadeira de rodas etc.). “Toda vez que fantasio alguma coisa, esses equipamentos estão presentes”, diz Luísa, 25 anos, casada, secretária, curso superior, que prefere paraplégicos e portadores de sequelas de pólio. “Mesmo nas brincadeiras com minhas bonecas Suzi e Barbie, sempre dava um jeito de arranjar cadeiras de rodas e muletas improvisadas para elas”.
O andar claudicante, a dificuldade para fazer alguma coisa ou a maneira inusitada de realizar um movimento e, até, acredite se quiser, o barulho característico que fazem muletas e aparelhos ortopédicos são extremamente excitantes para os devotees. Nas palavras de Renato, 32 anos, separado, bancário, que prefere mulheres com sequelas de pólio: “O que me atrai muito é o movimento, o jeito de andar, de se sentar, de subir uma escada, as transferências da cama para a cadeira, da cadeira de rodas para o banco do carro. Eu me excito com o barulho metálico que as muletas e órteses fazem ao tocar o chão”.
Apolo relata que, por ser homossexual, há uma dificuldade maior para estabelecer contato. “Eu sou homossexual e meu devoteísmo se manifesta pelo interesse por portadores de deficiência física masculinos. Mas, nunca vi um deficiente em qualquer bar, discoteca, livraria gay. Me resta a internet, mas também não tenho coragem de entrar num chat gay e perguntar se tem um deficiente no momento. Aliás, no chat, eles demoram para dizer que são deficientes. Se eu entrar perguntando, será que alguém vai responder? Bom, acabo usando as fotos e vídeos como ‘inspiração’ para minhas fantasias sexuais”.
Quanto mais severa e incapacitante for a deficiência, mais atraente ela se torna para 14,29% dos pesquisados. Sérgio, 35 anos, empresário na área de eletrônica, casado, afirma: “É a falta do membro o que me atrai. Prefiro mulheres com amputação dupla (sem nenhum braço ou sem nenhuma perna). Gosto também de amputações múltiplas, mas fico com um sentimento de dó, porque realmente é difícil. O que mais me atrai mesmo são as mulheres sem braços que utilizam os pés para fazer suas tarefas diárias”.
Paula, 35 anos, casada, lésbica, curso superior incompleto, que tem atração por pessoas com sequelas de pólio, quando tem oportunidade de iniciar um encontro erótico, gosta de pedir que a pessoa “faça ou tente fazer as coisas mais difíceis para ela, engatinhar, por exemplo. Na verdade, quanto mais limitante ou incapacitante for a deficiência, mais excitante ela é”.
Alexandre, 35 anos, casado, empresário, também tem predileção por amputadas. “É a falta do membro o que me atrai. Prefiro mulheres com amputação dupla. Quanto mais curto for o restante do membro, mais me sinto atraído. Realmente a capacidade que a pessoa tem para realizar as tarefas, superando suas limitações, também me atrai um pouco”.
Já, para Mauricio, 40 anos, cientista político, que prefere mulheres e homens com sequelas de pólio, o que seduz “é esse papel de atender a uma necessidade de auxílio. Todo o clima formado em torno de ajudar o companheiro a realizar uma noite de amor satisfatória. Sou atraído por todas as etapas do encontro, desde o auxílio para sair do automóvel até a posição para beijar e amar”.
“Ninguém nem desconfia dessa minha fascinação”.
Por “vergonha e medo de serem tratados com preconceito”, a maioria dos devotees (57,14%) nunca contou a ninguém sobre essa preferência. Os que contaram (42,86%), o fizeram para pessoas de seu relacionamento muito íntimo, como esposa(o), namorada(o) e mãe. Esses relataram que a reação sobre essa confidência despertou sentimentos que foram da incredulidade à compreensão, passando pelo choque e a recriminação.
Ricardo, 30 anos, professor universitário, diz que desde pequeno tem atração por mulheres deficientes. “Tenho um pouco de vergonha, e não sei como lidar com isso, mas gostaria de experimentar um relacionamento assim. Meu único medo é de magoar alguém. Nunca falei a respeito disso com ninguém”.
Sheila, 42 anos, cabelereira, diz que se “sentia estranha”, como se fosse a “única pessoa no mundo” com essa preferência. “Ninguém nem desconfia dessa minha fascinação. Nem meu marido. Meu maior medo é que ele descubra e não compreenda. Vivo um ótimo casamento e não desejo perdê-lo. Por outro lado, às vezes, não consigo me controlar e acabo fantasiando que um de nós dois está numa cadeira de rodas”.
Fernando, 42 anos, motorista de táxi, diz sempre ter tido atração por mulheres paraplégicas que usam cadeira de rodas. “Sempre tive medo de falar sobre o que sinto. Isso me causou alguns problemas, pois acabei desenvolvendo Síndrome de Pânico. Faço terapia há seis anos e isto tem me ajudado muito. Sou casado, mas a minha esposa não é deficiente. Compartilhei minha preferência com algumas pessoas, inclusive com a minha esposa e não foi muito agradável, pois ela acha que não é normal”.
Marcela, 30 anos, separada, advogada, prefere para e tetraplégicos. “Nunca consegui entender o porquê disso. Tinha por volta de 13 anos quando percebi que tinha esse tipo de atração. Eu me senti meio que excluída da normalidade. Hoje eu creio que é apenas uma preferência. Assim como existem mulheres que preferem homens altos e louros e outras que se sentem atraídas por morenos magros, eu me sinto atraída por homens deficientes. Mas é importante frisar que não basta ter uma deficiência. Tem que haver afinidades. Não contei para ninguém sobre isso porque as pessoas tendem a julgar isso como loucura ou desvio comportamental. Eu mesma já pensei que fosse uma doença, um desvio de personalidade. Não entendia por que eu não me sentia atraída por caras que minhas amigas adoravam. Embora tivesse muita sorte com eles, eu me sentia sempre incompleta, era como se faltasse algo. Não me sinto desconfortável com isso, apenas me sinto meio solitária às vezes, pois não tenho com quem falar sobre isso. Eu gostaria de viver isso sem censura”.
Pela minha pesquisa, 14,29% dos devotees afirmam ter frequentemente desejos característicos de pretenders e wannabes, enquanto 7,14% deles dizem apresentar essas características apenas eventualmente. Jorge, 43 anos, fotógrafo, que prefere homens tetraplégicos, diz que não quer se tornar de fato deficiente, mas que é muito estimulante fingir ser um. “Em casa, gosto de me sentar na minha própria cadeira de roda e usar uma meia elástica de alta compressão, para simular uma dormência nas pernas, enquanto me masturbo”.
Para Júlia, 34 anos, fisioterapeuta que tem predileção por paraplégicos, diz que desde criança se sente excitada “imaginando” ser deficiente. “Estou ensaiando para alugar uma cadeira de rodas e umas muletas. Não desejo tornar-me deficiente de verdade, só na fantasia. Quando estou consciente, juro para mim mesma que não vou mais pensar nisso. Mas, quando estou excitada, quando começo a pensar, não dá mais pra controlar. O tesão toma conta de mim. Aí, preciso gozar. Às vezes, acho que os psicopatas devem sentir isso, na hora de estuprar e matar suas vítimas. Não acho que mereçam perdão por isso. Ainda bem que meu desvio não prejudica ninguém. Talvez, só a mim mesma”.
Beatriz, 27anos, publicitária, casada, diz que desde criança se excita imaginando ser deficiente, cada dia, por uma razão diferente. “Nunca fingi isso em público, mas essa ideia me excita demais. Fico imaginando como as pessoas vão me olhar, como eu vou me sentir. Estou pensando em alugar uma cadeira de rodas. Ainda não deu certo, mas pretendo fazer isso brevemente”.
Juliana, 25 anos, casada, professora, que tem predileção por paraplegia e sequelas de poliomielite, identifica em si mesma características de pretender/wannabe. “Sinto-me atraída pela condição de deficiente. Não consigo evitar de prestar atenção, seja homem ou mulher. Mesmo quando fantasio algum tipo de relacionamento com um homem deficiente, acho que, para mim, a maior satisfação é fingir ser deficiente. Quando vejo um homem deficiente, imagino como ele é, como transa, fantasio como é estar no lugar da namorada dele. Por outro lado, quando vejo uma garota deficiente, fico excitada me imaginando no lugar dela. Fico imaginando como ela é na intimidade. O esforço que faz para realizar tarefas. Como se levanta, como toma banho, como troca de roupa. Acho que, no fundo, minha maior fantasia é um dia fingir ser deficiente. Mas, algumas vezes, já desejei ardentemente me tornar deficiente. Às vezes, isso passa. Às vezes, isso volta”.
Roseli, 35 anos, casada, lésbica, cantora, tem predileção por cegos, surdos, surdo-cegos e por tetraplégicos. “Eu me satisfaço fingindo ser deficiente e desejo me tornar deficiente. Não consigo explicar o motivo disso. Tive uma fase em que simulei ter paraplegia e surdez. Cheguei ao ponto de provocar o descolamento da minha retina para fazer parte do universo dos deficientes. Quanto mais severa e deformante é a deficiência, mais eu me sinto atraída. Gosto de órteses, próteses, bengalas, cadeiras de rodas, etc. Descobri essa minha fascinação quando vi a Cátia Cantora Cega, na televisão aos 11 anos”.
“A culpa anda sempre do meu lado”.
Geralmente, a descoberta da atração pela deficiência ocorre na infância e adolescência (em 85% dos pesquisados), ocasionando sentimentos de “vergonha”, “culpa”, “desconforto”, deslocamento (“por ser diferente”) ou “satisfação”. André conta que teve consciência dessa atração aos sete anos. “Já adolescente, eu tinha plena consciência da atração e me sentia muito envergonhado, porque me parecia ser o único cara no mundo com este tipo de sentimento. Mesmo depois de adulto, ainda me sentia muito constrangido em ter este tipo de atração. Só fui me sentir melhor quando descobri que não era o único e pude compartilhar esta minha atração com outras pessoas”.
Kevin, 32 anos, solteiro, homossexual, educador, diz que sempre se interessou pela questão da deficiência: “Lia artigos a respeito e estudava sobre o assunto. Na faculdade, fiz cursos optativos sobre a área. Por volta dos 21 anos, dei-me conta de que havia também uma atração física, quando me vi tendo fantasias sexuais que envolviam pessoas com deficiência. Nunca transei com um deficiente, mas, quando converso com um na internet, vejo-me fazendo planos de encontrar a pessoa, ir ao cinema, ‘fazer a corte’”.
A grande maioria dos devotees (92,86%) não consegue explicar para si mesmo os motivos pelos quais possui essa fascinação. Mais da metade deles (57,14%) usa palavras como “estranho”, “desvio sexual”, “fetiche”, e “tara” para definir sua preferência. Dos pesquisados, 42,86% acreditam ou já acreditaram que a sua fascinação poderia ser uma “doença ou um desvio de personalidade”.
Rosana, 50 anos, casada, estilista, conta que já se sentiu desconfortável por causa dessa fascinação. “Eu me lembro das vezes em que, mesmo tendo que acordar cedo no dia seguinte, fiquei acordada, até altas horas da madrugada, só para ver na TV filmes como Uma Janela Para o Céu, Amargo Regresso, Nascido em 4 de Julho. Ficava assistindo a esses filmes e me masturbando. Depois ficava sem entender o porquê dessa preferência. Agora sei que não sou nenhuma anormal, pelo menos, não me considero assim. Espero que não seja uma doença. Acho que, no fundo, é algum trauma, alguma coisa ligada à infância. Não sei explicar. Gostaria de me livrar dessa fascinação. Às vezes, penso que, se realizasse minha fantasia, isso teria fim. Por outro lado, tenho medo de que isso só aumente minha fixação em aparelhos ortopédicos a ponto de eu ter que usar um no dia a dia”.
Alguns dizem não se envergonhar, mas, nunca falaram a respeito disso com ninguém. Gilberto, 40 anos, professor universitário, conta que tem “esse sentimento desde pequeno, talvez uns nove, 10 anos de idade. Ficou forte quando namorei uma paraplégica durante uma viagem de estudos no exterior. Não sinto medo, nem vergonha, tampouco quero livrar-me desse meu desejo, isso ficou bem claro durante esse relacionamento. Quero é poder expor tais sentimentos com maior franqueza e naturalidade possíveis, procurando, então, ser compreendido. Achava que eu era o único ser no planeta que sentia isso. Nunca falei com ninguém sobre o que sinto. Acho que se eu tentasse explicar, não iriam entender”.
Celso, 42 anos, casado, empresário na área de eletrônica, com segundo grau completo, fascinado por deformações nos membros superiores e que acha atraentes próteses de braços e ganchos, diz que nunca passou por sua “cabeça a ideia maluca de me fingir de deficiente ou de me tornar deficiente”. Ele falou para sua mulher sobre sua predileção. “Minha esposa é muito legal. Achou um pouco estranho, no começo, mas, depois, se acostumou. Às vezes, até comentamos sobre isso, durante o sexo, para apimentar um pouco mais. Não contei a outras pessoas por vergonha. Podem pensar que é um sentimento macabro. Mas, me sinto normal”.
Antônio, médico fisiatra, diz que “não é nada fácil” a vida de um devotee. “Sentir atração por algo que trouxe sofrimento a alguém é meio complicado. A culpa anda sempre do meu lado. Por isso, nunca tentei aproximar-me de nenhuma garota deficiente. De fato, acho que não estou ‘preparado’. Garanto que não foi por falta de oportunidade, pois, como médico, eu as vejo com frequência. Tenho quatro colegas devotees e eles são bastante legais.”
Marcos, 35 anos, gerente de vendas, não sabe dizer “precisamente desde quando tenho atração por mulheres paraplégicas, que usem cadeira de rodas. Faço terapia há seis anos, pois me achava muito diferente por ter este tipo de atração. São poucas as pessoas para quem contei isso. Nunca cheguei a namorar uma mulher paraplégica, pois sempre tive medo de magoar a pessoa”.
Gabriela, jornalista de 26 anos, casada e mãe, relata sua agonia: “O difícil é conviver com isso. Sinto muita culpa. O fato de saber que existem outros assim realmente conforta e alivia, mas não resolve. Eu queria parar com isso. Ser normal, só isso. Às vezes, eu consigo. Por exemplo, quando estava grávida da minha primeira filha, por medo de que Deus me castigasse e fizesse com que ela nascesse com algum problema, não pensei uma única vez no assunto. Até achei que estava ‘curada’. Mas depois de um tempo, quando ela já estava maiorzinha, voltei a pensar e a me excitar com essa ideia. Agora, estou grávida de novo de mais uma menina. Dessa vez, não estou com esse medo. Acho que o problema é meu, não da minha filha que está na barriga. Não acho que Deus ‘castigaria’ uma criança por um pensamento meu, por um ‘pecado’ meu. É muito ruim sentir uma coisa ‘proibida’, que não dá pra falar com ninguém. Por outro lado, é muito excitante”.
Já, Paulo, 29 anos, solteiro, assistente contábil, com curso superior incompleto, faz parte dos 28,57% que acreditam que se trata de “uma atração normal”: “Eu vejo de forma natural, existem pessoas que gostam de loiros, morenos, altos, baixos. Eu gosto de deficientes”.
Fábio, 20 anos, estudante de arquitetura, afirma ser um “devotee convicto. Sinto atração por mulheres deficientes desde minha puberdade. Já tive um relacionamento com uma garota amputada. Acho mulheres deficientes lindas, sexies, atraentes e sedutoras. Gostaria muito mais de sair com uma mulher amputada do que com uma não amputada”.
Carlos, 27 anos, jornalista, afirma que tem “atração por mulheres deficientes físicas desde que me conheço por gente. Já fiz terapia por outro motivo e, uma vez, aproveitei e entrei no assunto com a terapeuta. Chegamos à conclusão de que é diferente, mas é normal. Tem gente que adora uma loira, outros preferem morenas, ruivas, gordinhas, orientais etc. Então, por que achar estranho gostar de deficientes? Eu tenho atração por amputadas. Com todas que conheci até hoje, fui sincero e falei que tinha atração por ela ser amputada. No começo, ficaram meio preocupadas, mas, nada como um bom carinho e atenção para resolver”.
Esse é o mundo invertido dos devotees. Exatamente o que isso significa para as pessoas com deficiência ainda é uma questão em aberto.
Notas:
[1] Para proteger o anonimato, os nomes foram trocados.
[2] Pronuncia-se devotí.
[3] Devotee: Atração por Pessoas com Deficiência – Preconceitos e Mitos. Palestra proferida por Lia Crespo, na X Conferência Mundial da Rehabilitation International, realizada no Rio de Janeiro, em agosto de 2000. Saiba mais neste link.
[4] Devotees, Pretenders and Wannabes: Two Cases of Factitious Disability Disorder Richard L. Bruno, Sexuality and Disability volume 15, pages243–260 (1997). Acesse aqui.
[5] Desejo por Mulheres Deficientes e a Comunidade de Devotees. Palestra apresentada durante a Conferência de Estudos sobre a Deficiência, em junho de 2000, Chicago. Tradução de Lia Crespo. Mais informações neste link.
[6] Vidas invisíveis, Gilberto Dimenstein, 20 de fevereiro de 2000. Acesse neste link.
Lia Crespo, para Vida Destra, 01/07/2021. Sigam-me no Twitter, vamos debater o meu artigo! @liacrespo
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Estou completamente impactada por esse texto maravilhoso!!! Estupendo!! Como alguém consegue abordar um tema assim com tanta leveza, informação e beleza assim!? Como aprendi com essa leitura! Maravilhoso!
Muito obrigada! Gentileza sua me dizer isso.
Nunca havia lido ou ouvido falar disso até agora. Que coisa, hein?! Entre pessoas que se querem e se amam é natural, é aceitável, mas ter tara?!
eu gostaria de conhecer uma mulher devotee
Assunto delicado esse, achei interessante os relatos, devotee não é sinônimo de predador sexual, mas sim de alguém que tem preferencias um tanto que incomuns, julgar alguém por isso ou aquilo é muito fácil mas na realidade só quem passa por isso sabe realmente como é difícil de lidar com essa situação.