Vida Destra

Informação é Poder!

Educação e Cultura Sociedade

Alunos com autismo e o veto do governador de São Paulo

Imagem de capa: O laço colorido é o símbolo mundial do Transtorno do Espectro Autista (TEA) 

 

No dia 23 de junho de 2021, o governador de São Paulo, João Agripino Doria, vetou totalmente o Projeto de lei nº 670, de 2020, aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). O projeto modificava a Lei nº 17.158/19, que instituiu a Política Estadual de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e determinava que o atendimento especializado aos alunos autistas, matriculados nas classes comuns de ensino regular, deveria ser feito por professor de educação especial, “com formação acadêmica que tenha em sua matriz curricular, no mínimo, a disciplina de Procedimentos de Ensino em Educação Especial; Transtornos Globais do Desenvolvimento ou de Prática: Transtorno do Espectro de Autismo”.

A autora do Projeto de lei nº 670/20, a deputada Valéria Bolsonaro, coordenadora da Frente Parlamentar de Apoio à Pessoa com Deficiência, declarou que a intenção era garantir, “de forma individualizada em sala de aula, um professor especializado com formação e habilitação em educação especial, capaz de dominar as técnicas específicas de educação, voltadas para pessoas que apresentam autismo”.

Durante sua tramitação, a iniciativa recebeu pareceres favoráveis das Comissões de Constituição, Justiça e Redação; de Saúde e de Finanças, Orçamento e Planejamento. Teve também apoio de diversos vereadores dos municípios de Pedreira, Garça, Capivari e Ibitinga, no interior do Estado de São Paulo, que encaminharam, ao presidente da Alesp, requerimentos afirmando que “embora a Lei Estadual nº 17.158/2019 tenha estabelecido a garantia de um acompanhante especial, verificamos que em muitos casos esta especialização não é em educação especial. Assim, o aluno diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista – TEA, necessita não apenas de um acompanhante, mas sim de um professor com formação específica em educação especial, com domínio das técnicas específicas de educação especial.”

Em seu veto, o governador alegou que o direito a acompanhante especializado já está assegurado na Lei nº 17.158/19 e que o projeto de lei que a modificava invadia a seara do poder executivo, a quem cabe definir a formação e a base curricular necessárias para que o acompanhante desempenhe suas funções, no âmbito das escolas estaduais. O governador também justificou sua decisão citando a Secretaria da Educação, que considerou a proposta pedagogicamente inadequada porque seria “segregadora” e “complicaria” a relação ensino-aprendizagem ao exigir a convivência de dois professores em sala de aula. A Secretaria de Educação também alega já disponibilizar “todo o suporte e apoio necessários para o desenvolvimento acadêmico dos estudantes com TEA, incluindo o professor regente, o acompanhante especializado dentro da sala de aula (quando necessário), o professor especializado durante o turno (previsto no artigo 15 da Resolução SE nº 68, de 12-12-2017) e o professor especializado no contraturno, de modo que os objetivos pretendidos pelo projeto já se encontram atendidos na rede pública de ensino estadual”.

Como sabemos, diversas leis asseguram e regulamentam o direito de pessoas com deficiência em geral e autistas em particular terem um acompanhamento especializado na escola comum. Dentre as mais importantes estão a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) [1], a Lei Brasileira de Inclusão [2] e a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista [3].

Então, a questão de fundo não é se os alunos com autismo, matriculados nas escolares comuns do ensino regular, devem poder contar com os profissionais devidamente habilitados e treinados de que necessitam. Todos concordam com isso.

As perguntas a serem feitas são outras. Será que o profissional que medeia a relação ensino/aprendizagem, isto é, que atua para facilitar a relação entre o professor regente da classe comum e o aluno com autismo, deve ter obrigatoriamente uma formação especializada em autismo? E, mais importante, será que, de fato, para além das leis e dos documentos bem-intencionados e bem-escritos, esses alunos estão recebendo o atendimento de que necessitam?

Para responder a essas perguntas,  Vida Destra ouviu o professor Lucelmo Lacerda, 38 anos, historiador, mestre em História pela PUC-SP, doutor em Educação pela PUC-SP, com Pós-Doutorado em Psicologia pela UFSCar, e pai de um menino autista de 13 anos. Na opinião dele, o governador acertou em vetar a modificação na lei porque estudos científicos estrangeiros baseados em evidências [4] demonstram, sem sombra de dúvida, “que esse profissional que vai mediar a relação entre o professor da sala inclusiva e a pessoa com autismo, além de implementar intervenções imediatas de aprendizagem, não precisa ser especializado em autismo, principalmente, nos termos em que dispõe a modificação  vetada. Por exemplo, na maior parte dos estados, nos Estados Unidos, é uma pessoa com ensino médio e um curso de 40 horas que faz essa mediação”.

Mas, qual é o problema de ter uma pessoa com grau maior de especialização?

Segundo o professor Lucelmo, em primeiro lugar, a especialização exigida por essa lei não coincide com o que é necessário para fazer um acompanhamento adequado. “Existem municípios no estado de São Paulo e em outros lugares do Brasil que exigem essa mesma especialização citada nessa lei. Por exemplo, o município de São Sebastião, onde sou professor e no qual o meu filho está matriculado. Lá, como o município é muito rico, com um laudo constatando o  diagnóstico de autismo, a pessoa tem direito a um acompanhamento especializado, mas,  isso não adianta nada porque conhecer a descrição do que é o autismo não faz a menor diferença”.

Para ele, no Brasil, os professores que fazem o atendimento em ensino especializado não estão adequadamente preparados para sua função porque “a formação de educação especial, hoje no Brasil, é uma formação de autoajuda”. De acordo com o professor Lucelmo, esses profissionais recebem uma formação que se resume, basicamente, “durante dois ou três anos, a serem informados, sobre os direitos das pessoas com deficiência e sobre como elas eram tratadas  ao longo da história, desde a Grécia antiga, quando as crianças eram  jogadas da pirambeira, passando pela segregação, integração até a Declaração de Salamanca[5], que consagra a educação inclusiva. Então, ter alguém com esse tipo de especialização continuaria não resolvendo esse problema crônico no Brasil que não pode ser solucionado por meio de uma lei”.

Segundo o professor Lucelmo, o outro motivo pelo qual não deve ser obrigatória a exigência dessa especialização para todos aqueles que farão o acompanhamento de alunos autistas é o “fato de que isso encareceria demais o atendimento, sem resolver o problema”.  Para ele, é contraproducente gastar inutilmente um “recurso financeiro, sempre escasso no serviço público, que poderia ser usado em outras ações, como, por exemplo, em residências assistidas, com resultados melhores”.

Mas, então, como resolver o problema da baixa qualidade do atendimento às pessoas com deficiência?

Na opinião do professor Lucelmo: “É preciso valorizar e estruturar a carreira do professor que faz o  atendimento em ensino especializado na sala de recursos. É lá que mora o segredo. É necessário oferecer a esse profissional uma formação de verdade, de natureza técnica, para que ele aprenda a usar um protocolo cientificamente validado, seja capaz de estabelecer objetivos e programas, saiba produzir registros e interpretar os dados obtidos e tenha condições de dinamizar o  plano de trabalho à medida que as coisas acontecem. Ou seja, ele deve ser capaz de planejar e avaliar o aprendizado, usando um protocolo de conduta e um plano de ensino individualizado para cada aluno. Os mediadores entre o aluno e o professor regente não precisam ser especialistas porque serão treinados e supervisionados pelo professor especializado da sala de recurso”.

Para o professor Lucelmo, a ênfase na sala de recursos, a mudança radical na formação acadêmica do professor especializado e a estruturação da carreira desse profissional, além de evitar gastos com ações sem resultados comprovados, ainda poderiam evitar um problema bastante frequente e muito lesivo para os alunos com autismo e suas famílias. Hoje, a falta eventual de um mediador impede a criança de ir à escola e faz com que os pais, muitas vezes, tenham de faltar ao trabalho para ficar com ela em casa. O plano de ensino individualizado adequado para cada aluno garantiria que o mediador, devidamente treinado pelo professor especializado, pudesse ser substituído sem grandes problemas por outro igualmente preparado. “O substituto saberia o que fazer porque haveria um protocolo de conduta e um plano de ensino individualizado adequado para aquela criança específica. Bastaria segui-lo”, garante o professor Lucelmo.

Notas:

[1]  Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Leia mais aqui!

[2] Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Saiba mais aqui!

[3] Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012. Leia aqui!

[4] Implementação e eficácia de intervenções mediadas não especializadas para crianças com Transtorno do Espectro Autista: Revisão sistemática e meta-análise. Mais informações aqui!

[5] Documento elaborado na Conferência Mundial sobre Educação Especial, em Salamanca, na Espanha, em 1994, como resultado da tendência mundial que consolidou a educação inclusiva. É considerada um dos principais documentos mundiais que visam a inclusão social, ao lado da Convenção de Direitos da Criança (1988) e da Declaração sobre Educação para Todos de 1990. Acesse aqui!

 

 

Lia Crespo, para Vida Destra, 15/07/2021.                                                              Sigam-me no Twitter, vamos debater o meu artigo! @liacrespo

 

Receba de forma ágil todo o nosso conteúdo, através do nosso canal no Telegram!

 

As informações e opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade de seu(s) respectivo(s) autor(es), e não expressam necessariamente a opinião do Vida Destra. Para entrar em contato, envie um e-mail ao contato@vidadestra.org

1 COMMENTS

LEAVE A RESPONSE

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Lia Crespo é militante jurássica do movimento das pessoas deficientes, jornalista, com doutorado em História Social, com a tese "Da invisibilidade à construção da própria cidadania. Os obstáculos, as estratégias e as conquistas do movimento social das pessoas com deficiência no Brasil, através das histórias de vida de seus líderes" (FFLCH/USP), e mestrado em Ciências da Comunicação, com a dissertação “Informação e Deformação: A imagem das pessoas com deficiência na mídia impressa” (ECA/USP). Autora dos livros infantis “Júlia e seus amigos” e “Uma nova amiga”, que tratam de deficiência e da importância da amizade para uma sociedade inclusiva.