Agostinho, Bispo de Hipona, mais conhecido como Santo Agostino, escreveu um livro autobiográfico cujo título “Confissões” tornou-se, desde o Séc. IV, um dos clássicos da filosofia cristã. Nesse livro, Agostinho narra sua vida antes de sua conversão ao catolicismo e, segundo ele, mais que a confissão de seus inúmeros pecados, seu livro revela atos de adoração e fé, resultantes de sua conversão aos dogmas religiosos que passou a defender com obstinada veemência. Sim, Santo Agostinho, teólogo de reconhecido e notório saber, notabilizou-se pela defesa de sua fé, compromisso que assumiu perante Deus e a Igreja ao ser empossado Bispo.
Trago o exemplo de Santo Agostino à baila para estabelecer uma analogia entre a profissão de fé de um teólogo e a profissão de fé de um jurista ao assumir a cadeira de Ministro do Supremo Tribunal Federal. E existe tal analogia? Com certeza, sim, como tentarei demonstrar a seguir.
Tal como o santo em questão, detentor de notório saber da doutrina eclesiástica, um Ministro do nosso STF deve ser escolhido pelo notório saber jurídico, assumindo formalmente o compromisso de salvaguardar a Constituição Federal, em sua totalidade. Assim como o teólogo católico tem o dever de interpretar as doutrinas e os dogmas do catolicismo, sem jamais subvertê-los ou deturpá-los e, muito menos, modificá-los, um Ministro do STF tem o dever de salvaguardar integralmente o texto da Carta Magna, interpretando seu conteúdo a fim de que este não seja deturpado por interesses espúrios e, principalmente, politiqueiros. Se modificações podem ser feitas no texto constitucional, a competência para isso é do Congresso Nacional, excluindo as chamadas cláusulas pétreas. Agir em desacordo com isso é uma grave ruptura do equilíbrio entre poderes e, indiscutivelmente, razão de instabilidade jurídica.
Denomina-se apostasia quando um clérigo se afasta ou renega a doutrina do catolicismo. E esse é um pecado que se assemelha à heresia e que pode determinar o afastamento do religioso de suas funções.
Lamentavelmente, porém, não existe no ambiente jurídico um termo equivalente à apostasia. Aquele que mais se aproxima disso é o crime de prevaricação, isto é, quando um funcionário público, indevidamente, retarda ou deixa de praticar ato de ofício, ou pratica-o contra disposição legal expressa, visando satisfazer interesse pessoal.
Tivemos um claro exemplo disso quando o ministro Lewandowski, ao lado de Renan Calheiros, fragmentou texto constitucional expresso a fim de favorecer a então Presidente Dilma no processo de impeachment em que era julgada em reunião no Congresso. O objetivo claro era não cassar os direitos políticos de Dilma, como expressamente consta no artigo constitucional. Tal decisão foi duramente criticada por juristas brasileiros, mas o assunto acabou caindo na vala comum do esquecimento, pois, afinal, a própria população se encarregou de punir Dilma ao deixar de elegê-la. Todo mundo lembra do episódio, claro.
É claro que houve outros casos de abuso de poder por parte de ministros do STF, inclusive prisões sem crime e sem julgamento. Contudo, o mais recente deles foi praticado pelo ministro Dias Toffoli. Poucas coisas podem expressar tão bem o sentimento de indignação que a recente fala do ministro causou do que um editorial publicado pelo jornal Gazeta do Povo, no último dia 18 de novembro. Pela pertinência, vale transcrevê-lo na íntegra:
“A CONFISSÂO DE TOFFOLI
Quase um ano e meio depois de afirmar que o Supremo Tribunal Federal (STF) atua como “editor de uma nação inteira” no abusivo inquérito das fake news, o ministro Dias Toffoli atribuiu uma nova função à corte – e que, assim como a de “editor”, não vem nem das leis, nem da vontade popular. Durante o 9.º Fórum Jurídico de Lisboa, o ex-presidente do Supremo afirmou que hoje o Brasil vive um “semipresidencialismo com um controle de poder moderador que hoje é exercido pelo Supremo Tribunal Federal. Basta verificar todo esse período da pandemia”.
A discussão sobre semipresidencialismo – um sistema em que o presidente da República divide formalmente poderes com o Legislativo, embora não a ponto de se falar na adoção do parlamentarismo – já vem de alguns anos e sempre retorna quando se observam impasses entre poderes, especialmente entre Executivo e Legislativo. Se há a constatação de que o Brasil de hoje já funciona em parte de modo semipresidencialista, é porque a Constituição de 1988, embora afirme que o Brasil é uma república presidencialista – escolha ratificada pela população no plebiscito de 1993 –, teve entre seus redatores muitos adeptos do parlamentarismo, e que acabaram deixando sementes espalhadas pelo texto constitucional. Resultado disso é o dito “presidencialismo de coalizão”, em que o governante de turno precisa montar uma maioria parlamentar à base de muitas negociações, nas quais se recorre ao fisiologismo e à corrupção pura e simples. O que mais assusta na frase de Toffoli, no entanto, não é a menção à solução fora de lugar representada pelo semipresidencialismo, mas a um papel que o Supremo concedeu a si mesmo ao arrepio de qualquer previsão legal.
O passado recente bem demonstra a que ponto o Supremo se arrogou o papel de “superpoder”
Não existe “poder moderador” de nenhum tipo no Brasil, e quem o afirma é o próprio Supremo. Em 2020, a corte havia sido chamada a esclarecer o papel das Forças Armadas na ordem institucional brasileira, e em liminar o ministro Luiz Fux (hoje presidente da corte) afirmou expressamente que “inexiste no sistema constitucional brasileiro a função de garante ou de poder moderador: para a defesa de um poder sobre os demais a Constituição instituiu o pétreo princípio da separação de poderes e seus mecanismos de realização. O conceito de poder moderador, fundado nas teses de Benjamin Constant sobre a quadripartição dos poderes, foi adotado apenas na Constituição Imperial outorgada em 1824. Na conformação imperial, esse quarto Poder encontrava-se em posição privilegiada em relação aos demais, a eles não se submetendo. No entanto, nenhuma Constituição republicana, a começar pela de 1891, instituiu o Poder Moderador. Seguindo essa mesma linha e inspirada no modelo tripartite, a Constituição de 1988 adotou o princípio da separação de poderes, que impõe a cada um deles comedimento, autolimitação e defesa contra o arbítrio, o que apenas se obtém a partir da interação de um Poder com os demais, por meio dos mecanismos institucionais de checks and balances [freios e contrapesos] expressamente previstos na Constituição”.
Mais adiante, na mesma liminar, Fux afirma que “considerar as Forças Armadas como um ‘poder moderador’ significaria considerar o Poder Executivo um superpoder, acima dos demais”; ora, se é assim, não estaria Toffoli querendo fazer do Supremo esse “superpoder, acima dos demais”? E podemos perguntar mais ainda: não estaria o STF realmente agindo desta forma, acima dos demais poderes e acima das próprias leis, extrapolando completamente o seu papel de guardião e intérprete da Constituição Federal?
O passado recente bem demonstra a que ponto o Supremo se arrogou o papel de “superpoder”. Não bastando as inúmeras e constantes interferências nas funções dos poderes Executivo e Legislativo, a corte vem rasgando a Constituição e as leis ao promover um apagão da liberdade de expressão no Brasil, instaurar inquéritos abusivos nos quais o devido processo legal é ignorado, criar crimes sem previsão legal (como na recente equiparação da homofobia ao racismo), anular processos e decisões judiciais realizadas em completo respeito às leis penais e processuais, e inventar suspeições. Como afirmamos neste espaço em março de 2021, “quando a Constituição, a lei, a jurisprudência, os princípios legais e a coisa julgada são ignorados, entra em ação o voluntarismo. Já não existe uma única Constituição, mas tantas Constituições quanto magistrados. Já não existe jurisprudência, mas apenas as convicções e as conveniências de cada julgador. E, no Brasil atual, poucas instituições têm representado esse caos judicial de forma tão intensa quanto aquela que deveria ser a principal guardiã da Carta Magna e da segurança jurídica”.
A confissão de Toffoli pode fazer corar Montesquieu, o grande teórico iluminista da tripartição de poderes, mas já fora prevista muitos séculos antes pelo poeta romano Juvenal, que nas suas Sátiras questionava: quis custodiet ipsos custodes?, o que poderia ser traduzido como “quem vigia os vigilantes?”, ou “quem guardará os guardiões?”. Sem os limites que o bom uso dos freios e contrapesos traria, a tendência dos ministros do Supremo é realmente se tornarem um superpoder que decide como bem entende, sem ter de prestar contas a ninguém. E então a ressalva de que “presidir o Brasil não é fácil” soa ainda mais sarcástica, já que agir como um superpoder, decidindo como se bem entender, sem precisar negociar nada com ninguém ou sem prestar atenção a lei alguma, é a coisa mais fácil que há.” Copyright © 2021, Gazeta do Povo. Todos os direitos reservados.
Tal editorial é profundamente esclarecedor. Não tenho muitas dúvidas de que se Toffoli assim confessou, é porque está refletindo o pensamento de outros de seus pares e até mesmo de parte oposicionista da classe política. O que se pode perguntar é: Vai ficar assim mesmo? O assunto irá, como em outros casos assemelhados, cair na conveniente e conivente vala do esquecimento? Até onde essa corda poderá ser esticada antes que arrebente com todas as inerentes consequências?
Se Santo Agostinho em seu livro tivesse confessado apostasia, certamente não teria continuado na função de Bispo da Igreja. Toffoli, porém, com sua confissão, revelou viés tirânico, sinalizou desvio de atuação da corte, mostrou que o STF interferiu nas ações governamentais de combate à pandemia e, com certeza, demonstrou que age por interesse político e, por isso, incapaz de julgar ações do Poder Executivo. Sequer disfarçou. E, pelo jeito, vai continuar por lá.
É esse homem, cuja indicação para o cargo deveria ser pautada por notório saber jurídico, que está efetuando afirmações sem qualquer amparo legal e decidindo – individual e colegiadamente – os destinos da Nação. É lamentável.
Laerte A Ferraz (Pensando Alto) para Vida Destra, 22/11/2021.
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