Em 1959, quando o cinema italiano despontava como um dos melhores do mundo, Roberto Rossellini dirigiu o inesquecível “De Crápula a Herói”, um drama adaptado do romance de Indro Montanelli baseado em fatos reais ocorridos na II Guerra e brilhantemente interpretado pelo igualmente inesquecível Vittorio De Sica.
O filme é denso e relata a história de um homem pouco ético cuja única qualidade era a extraordinária semelhança física com o general italiano Della Rovere, líder da resistência ao fascismo e aos nazistas, quase no final da II Guerra. O personagem central desse filme tinha como objetivo apenas sobreviver à guerra e se dar bem, tanto quanto possível. Porém, foi convencido pelos nazistas a se passar pelo General Della Rovere, que estava refugiado e sua missão seria conclamar o povo a colaborar com os nazistas. Inicialmente desfrutando de um prestígio que jamais conhecera o personagem não cumpre o combinado e acaba sendo preso pela Gestapo e condenado ao fuzilamento. O medo da morte revelou o caráter covarde do personagem. Ele poderia escapar ao fuzilamento caso cumprisse o papel que lhe impuseram. Entretanto, talvez movido por um insuspeitado patriotismo, acabou levando o engodo até o nefasto final. Seu sacrifício, porém, não foi em vão, pois o verdadeiro General Della Rovere continuou atuando na resistência e muito contribuiu na liberação da pátria italiana.
Emanuele Bardone, o protagonista real desse drama, um imoral jogador compulsivo, passou para a história como um herói. E o filme de Rossellini, que tão bem retratou a personalidade leviana de Bardone, recebeu o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1960.
Lembrei-me desse magnífico filme ao analisar fatos recentes da história brasileira. Não houve como não estabelecer um paralelo entre Bardone e Roberto Jefferson.
Numa breve retrospectiva, sabemos que Jefferson, então Deputado Federal e Presidente do PTB, recebia – como tantos outros – uma importância mensal liberada pelo esquema de corrupção institucionalizada do lulopetismo e administrada por José Dirceu, para compra de apoio na Câmara.
Por razões ainda pouco esclarecidas, Jefferson e Dirceu se desentenderam em relação ao pagamento dessa propina que acabou resultando numa denúncia pública de Jefferson em relação ao esquema, cujas consequências afastaram Dirceu do governo petista, deram início ao momentoso julgamento conhecido como “Mensalão” e resultou na cassação do mandato e suspensão dos direitos políticos por oito anos de Jefferson, além de uma condenação a sete anos de prisão, em 2005.
Também é relevante o fato de que o julgamento do “Mensalão” pelo STF abriu um precedente importante no julgamento e condenação de envolvidos nos chamados “crimes de colarinho branco”. Esse julgamento começou a lavar a alma da população brasileira e o precedente criado permitiu o ainda mais importante julgamento dos réus da “Lava Jato”.
Certa vez, ao retornar de Porto Alegre para Curitiba, em 2012, encontrei Roberto Jefferson no bar do Aeroporto Salgado Filho. Fiz questão de cumprimentá-lo. Ele foi atencioso quando me aproximei chamando-o pelo nome e estendendo a mão. Estava numa mesa com mais duas pessoas e, sorrindo, levantou-se retribuindo meu aperto de mão. Então, eu lhe disse: “Como brasileiro, Deputado eu quero agradecer-lhe, pois, apesar dos pesares, sua denúncia foi um bem para o Brasil”. Ele nada respondeu. Apenas me olhou nos olhos com fisionomia inexpressiva, talvez refletindo sobre o real significado do que eu acabara de lhe dizer. Sem mais, dirigi-me à sala de embarque para meu voo.
Numa curta frase eu havia lhe dito que, por razões que desconheço, ele passou de crápula a herói, pois foi o pivô de um drama jurídico que mexeu com as estruturas da política brasileira, revelando, pela primeira vez em nossa história, casos concretos de corrupção ativa e passiva envolvendo empresários e a classe política, fato que começou a despertar a consciência da população de que o sonho de punir poderosos era possível, afinal.
Naquele breve momento, olhei para Jefferson ainda saudável e não me foi possível deixar de estabelecer um paralelo entre ele e o crápula que virou herói no filme de Rossellini.
Sinceramente, não posso condenar o ex-deputado pelo seu passado de crápula. Para mim, ele pagou pelo que fez e se redimiu moralmente ao denunciar o esquema de corrupção do lulopetismo, pois sabia perfeitamente que padeceria das consequências e da sanha persecutória que se seguiria por parte de todos prejudicados pelas ações jurídicas decorrentes, bem como sempre seria visto por boa parte da população como apenas crápula e não como herói. Mas uma frase dele é a mais absoluta verdade e reflete o sentimento de gratidão que sinto: “Tirei a roupa do Rei, mostrei ao Brasil quem são esses fariseus“.
A redenção de Jefferson, entretanto, não parou nisso. Recentemente ele teve a coragem de denunciar – citando nomes e fatos – um golpe que se articulava contra a presidência, afirmando que “Para derrubar Bolsonaro, só se for à bala”.
Mais recentemente, posando com um fuzil nas mãos, declarou sem rodeios que “Bolsonaro, para atender o povo e tomar as rédeas do governo, precisa de duas atitudes inadiáveis: demitir e substituir os 11 ministros do STF, herança maldita. Precisa cassar, agora, todas as concessões de rádio e TV das empresas concessionárias GLOBO. Se não fizer, cai.” Imagino que todos sabem que ele tem razão. Ele foi além, ao justificar o fuzil: “Estou me preparando para combater o bom combate. Contra o comunismo, contra a ditadura, contra a tirania, contra os traidores, contra os vendilhões da Pátria. Brasil acima de tudo. Deus acima de todos.”
Caros leitores, mesmo que poucos concordem comigo, peço que reflitam sobre o que escrevi. No que me diz respeito Roberto Jefferson, se não chega a ser um herói, é um caso sui generis de redenção. Apesar disso, continuará a ser atacado. Principalmente agora.
Laerte A. Ferraz para Vida Destra, 14/05/2020.
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Fique à vontade, Jean
Eu me perguntava sempre “E o Jefferson?” Não sabia se ele era realmente um homem arrependido corrigindo os erros, ou um velho político trocando de pele para sobreviver na política e dar novos golpes. Hoje eu creio que ele não seja um traidor em potencial, mas um homem realmente arrependido, lutando contra todo o mal que outrora participou, para salvar ou reconstruir um resto de dignidade que lhe sobrou. Sua coragem no momento dificil que passamos supera qualquer desvio de conduta passado.
Meu amigo, seus artigos sempre chamam à reflexão. A questão para mim não é QUEM, mas COMO se comportam os brasileiros agora para reconstruir o Brasil, porque o momento em que estamos nunca foi tão decisivo para o nosso destino. Aquele que erra, paga pelo seu erro e se emenda pode, sim, ter uma segunda chance, mas terá que ter em mente que será observado com uma lupa muito mais poderosa. O seu artigo também me lembrou o caminho inverso: de herói a crápula. Acho que nem preciso dizer quem é. Um grande abraço!
Grato, caro amigo. Prefiro não julgar pessoas, mas ações. Não tenho como avaliar mal as ações de RJ.
O Roberto Jefferson é um daqueles personagens que divide opiniões. Nós temos a tendência de enxergar o heroísmo dessas pessoas dúbias apenas muitos anos depois do seu falecimento, quando podemos ter melhor noção do seu legado. Eu ainda não tenho opinião formada sobre ele, mas obrigado por compartilhar o seu ponto de vista, muito interessante o artigo. Grande abraço.
Grato, Leonardo
Levanta sacode a poeira e dá a volta por cima. Sem Roberto Jeferson as mudanças, talvez nunca ocorressem. Ele errou se retratou e mostrou q somos falíveis, mas q não devemos insistir no erro.Isso é ser humano. Perfeição é de Deus.
Ele é como a agulha deslizando sobre o disco e vinil. Aquele objeto escuro onde nada se vê, vai sendo desnudado pela agulha e reproduzindo o que há em seu interior. Não há outro modo de extrair algo de um disco de vinil sem ela. Não há como desnudar as entranhas sujas do poder paralelo sem alguém com coragem suficiente. Está de certa forma se redimindo pelo que já pagou, então para mim pouco importa o passado.
Uma excelente reflexão, eu apertaria a mão do Roberto Jefferson, que convenceu -me quanto analisou sua passagem pela prisão Se afirmando como culpado,
não um lula e demais comunistas , eternos inocentes!
Quanto ao motivo da arma , ele e quem tem juízo sabe que se Bolsonaro cair, caímos nas garras dos Comunistas e teremos que lutar pela sobrevivência com armas mesmo!
Ah, verei o filme e indico outro no mesmo sentido do improvável herói! ??
1- O Segredo de Santa Vitória
Sem entrar no mérito da analogia amigo Laertes
Roberto Jeferson teve coragem que poucos ou quase ninguém do meio político teve .
Que foi de desnudar os bastidores sombrios da politica brasileira.
Cumpriu sua pena imposta pela justiça e isso é fato
Mas o que me deixa receoso é :
Será que tudo isso é um engodo para nos enganar lá na frente?
Essa resposta só o tempo nos trará .
Excelente leitura
Abraço.
Os motivos que teve para mudar de lado jamais saberemos ao certo. O que importa é que mudou e como disse jesus que atire a primeira pedra quem nunca pecou…
Aceitemos sua ajuda sem soberba.
E que possa de fato o Sr Jeferson se redimir perante Deus porque aos homens não lhes deve nada. Avante Patriotas.
O filme que me remete a ele é mais recente. Não o vejo como crápula nem tão pouco como herói. Eu diria que ele é MEU MALVADO FAVORITO!
Excelente reflexão. Paradoxo relevante.
Ola. Me parece que a figura de R. Jeferson esta mais alinhada e aliada ao povo. Me passa a impressão de que ele tenta ensinar algo. E o faz com lisura. Talvez para pedir desculpas para esse mesmo povo que outrora enganou. Gosto dele. Hj com os cuidados necessários, acredito que seus comentarios sejam bem pertinentes.