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Era uma vez…

Era uma vez um país muito grande, com muitas riquezas naturais, razoavelmente populoso, mas com políticas voltadas para beneficiar apenas, e tão somente, pequenos grupos inescrupulosos. Por esse triste motivo, esse país nunca chegou a ser realmente grande, no sentido de desenvolvimento e prosperidade para todos. Pelo contrário, a sua gente, majoritariamente, vivia na miséria.

Em uma bela tarde, nesse país, representantes desses pequenos grupos de privilegiados conversavam, tentando achar uma solução para o que eles chamaram de “um enorme inconveniente” para suas vidas tranquilas e abastadas. O que era? Em um dos três Poderes constituintes do governo, instalara-se um ser estranho aos seus objetivos. Um representante da maioria do povo. Deixe-me explicar melhor: um verdadeiro representante da maioria do povo, que não era levado em conta por definitivamente ninguém desse consórcio minoritário, que reinou absoluto, durante muitos e muitos anos, e que podemos chamar aqui de “elite”.

Voltemos à reunião. Estavam todos lá: o senhor Wastrelide, presidente do Poder Legislador; o senhor Unfaidro, presidente do Poder Justiceiro; o senhor Crook, representante dos governos anteriores; o senhor Loservaldo, representante dos que sempre tentaram vencer uma eleição, mas nunca conseguiram; a senhora Phonyleia, representante dos órgãos comunicadores; e o senhor Double Cross, representante dos ex-integrantes e ex-aliados do atual presidente do Poder Executor, este sem nenhum representante presente.

Em tom de nervosismo e com uma voz estridente, a senhora Phonyleia inicia, de forma imprópria e atropelando as autoridades estatais no recinto: “Sinceramente, meus queridos, eu já estou cansada de agir dessa forma pouco convincente. Precisamos de mais agressão, precisamos ser mais contundentes”. Neste instante, o senhor Unfaidro faz uma cara de nojo e engrossa a voz: “Minha senhora, comporte-se! Espere a sua vez de falar! Além disso, devo lembrá-la de que a função de convencer coube somente à senhora, mas o que tem feito? Tem sido o primor da eficiência?”

O senhor Wastrelide, cidadão calmo, corado, detentor de uma boa saúde, intervém com delicadeza: “Senhores, não vamos entrar nessa seara do desentendimento, temos coisas importantes a tratar aqui. O que não foi eficiente até agora deve ser aperfeiçoado, e, para isso, devemos manter o bom espírito da união. Temos que ter o foco de nossas energias bem claro em nossas mentes, e este qual é, meus queridos?” Todos respondem em uníssono: “Ele!” Wastrelide volta a falar: “Ele e mais quem?” Todos se entreolham. Double Cross arregala os olhos e deixa sair um gritinho choroso e desafinado: “Temos mais com o quê nos preocuparmos?” Todos se voltam a Wastrelide, e este, com a paciência de um monge budista, responde: “O povo que ele representa!”

“Quem?!” Grita o senhor Crook, que parecia dormir em sua poltrona, até então. “Sim, do que falas, meu nobre senhor?” Inquere com pompa o senhor Unfaidro. Também se intromete na conversa, rusticamente, o bruto senhor Loservaldo: “Eu também estou boiando igual… (neste segundo olha desconfiado para seus vizinhos empoados) a uma tora no sanitário!”. Mas, mesmo diante desse cuidadoso eufemismo, o senhor Double Cross expressa o seu desconforto: “Precisa falar essas nojeiras?!” E, depois de olhar com um desprezo desmoralizante o senhor Loservaldo, volta-se sorridente e simpático para Wastrelide: “Especificamente de quê o senhor está falando, meu mestre?”

Com a costumeira postura benevolente, o senhor Wastrelide responde: “Estou falando daqueles numerosos que sustentam o senhor “Pedra em nosso Caminho”, o povo que o colocou lá, que o elegeu seu representante máximo.” Novamente, as caras de pouco entendimento, e o senhor Unfaidro meneia a cabeça e declara: “Esse povo de que falas, excelentíssimo colega, nunca, em momento algum, importou para absolutamente ninguém. Por que haveria de ter um mínimo de relevância agora?” E todos se entreolham e riem com satisfação.

O senhor Wastrelide novamente pede a palavra, agora expressando um pouquinho de impaciência: “Meus fraternos colegas, os senhores não leem os comentários ‘deles’ nas redes sociais; não veem as manifestações lotadas ‘deles’; não percebem que o agora é diferente do passado, que ‘eles’ não vão desistir, que são capazes até de lutar bravamente para obter espaço e voz no nosso seleto meio?”

A madame Phonyleia, caladinha até então, mais comportada depois da chamada que recebeu, desta vez levantou o dedinho e pediu para falar: “Eu e meus colegas já fizemos tudo que estava ao nosso alcance, em relação às redes sociais. Tudo que ‘eles’ dizem, nós rebatemos e dizemos que é mentira, fake news. Também já expomos as vidas desses engraçadinhos, metidos a besta, para todo mundo ver que ‘eles’ não passam de embusteiros.” “E adiantou alguma porcaria? Eles pararam, madame frescura?” Entra como um touro na arena, o senhor Loservaldo.

“Calma, meus amigos!” Apazigua, energeticamente, o senhor Double Cross: “Temos que tentar os meios jurídicos, temos que levar todas essas questões para o campo da Justiça. Esta nunca será contestada, justa ou não, pois “Law is law!” “Como é que é?” Desabafa o ríspido senhor Loservaldo. Novamente, com cara de poucos amigos, responde-lhe Double Cross, olhando para o outro lado: “Lei é lei!” “Ah, sim! Mas a minha lei está aqui, ó!” Loservaldo aponta para o revolver enfiado na calça e cospe no chão.

Depois dessa cena, com dificuldade até para respirar, o senhor Unfraido recomeça: “Meus nobres amigos, eu entendi muito bem o que disse o digníssimo senhor Double Cross e garanto aos senhores que levarei aos meus colegas de trabalho essa iluminadíssima ideia. Bravo, companheiro Cross, bravíssimo!”

E todos foram para a mesa posta e muito bonita, elegante, cheia de especiarias finas e caras. Conversavam agora mais leves, mais descontraídos, mais animados. “Uma solução, finalmente, uma solução!” Derretia-se a senhora Phonyleia. “Sim, amável senhora, mas que fique registrado, em todos os anais, que é de minha exclusiva autoria!” Lembrou com ênfase o senhor Double Cross. “Claro!” Responderam todos, com cara de obedientes. Porém, no íntimo de cada um, fervilhava a ideia de como se apoderar dessa magnífica iniciativa, essa luz no fim túnel. E, em cada cabecinha daqueles notáveis membros da alta sociedade, já dançavam sonhadoras as imagens de suas biografias, abrilhantadas por essa tábua de salvação.

Gogol, para Vida Destra, 2/6/2020.

O autor está sem redes sociais, no momento, mas comentários podem ser enviados por intermédio da revista.

5 COMMENTS

  1. Obrigado por mais um texto magistral, caro Gogol! Parabéns!
    É de criatividade para falar e agir, o que mais precisamos no momento.
    Que o Senhor que lhe inspirou a escrever tão bem, derrame Luz sobre este grande país, seu povo, e seu Presidente!

    • Amém, meu amigo! Não podemos perder nossas esperanças, nem nossa criatividade para burlar as tiranias que temos que enfrentar. Um grande abraço!

  2. No espetacular artigo de Gogol, que só agora pude ler, vamos dar nomes aos bois e verificar se acertamos: Wastrelide-Maia; Unfaidro – Tofolli; Crook-FHC; Loservaldo-Ciro Gomes; Phonyleia-Miriam Leitão; e Double Cross – Alexandre Frota.

    • Qualquer semelhança é mera coincidência, meu amigo! ???? Quanto ao Double Cross, o Alexandre Frota jamais será o autor de ideia alguma. Pense melhor. Um grande abraço!

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