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Falácias e anacronismos históricos de dois ministros

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Embora os assuntos que irei relatar, envolvendo as falas de dois ministros, já tenham um certo distanciamento temporal, servem, entretanto, para averiguar como certas personalidades públicas fazem uso contínuo da falácia do apelo à autoridade de modo tão livre e escancarado.

O chamado “apelo à autoridade” (em latim: argumentum ad verecundiam), é uma expressão que designa uma falácia lógica. Ela acontece quando se apela a uma figura de autoridade em certo assunto, a fim de dar peso e validar um argumento adstrito a uma área totalmente alheia à da autoridade invocada.

Esse expediente falacioso tem atualmente adquirido diversas formas, tal como podemos observar nas chamadas personalidades famosas (cantores, atrizes, artistas) que emprestam sua imagem para passar credibilidade aos produtos que vendem.

Mas não é só isso. Hoje as celebridades opinam sobre quase tudo, imprimindo e transferindo simbolicamente sua autoridade em determinada área para outra em que são totalmente ou parcialmente leigas, como comumente acontece quando falam sobre política ou religião.

Em tempos inclusivos, a luminosidade das celebridades não se restringe apenas à classe artística. Desde 2018, mas sobretudo no contexto da pandemia, alguns ministros do STF adquiriram o status de celebridade. E como tal, fazem livremente uso dessa falácia, já que, pelo fato de serem ministros, alegadamente doutos no saber jurídico, acreditam também o ser em outras áreas do conhecimento humano.

Não é de hoje que alguns ministros transitam por áreas em que são totalmente leigos, como se fossem PhD no assunto, quando, na verdade, estão dando apenas seus costumeiros pitacos.

Quero invocar aqui dois argumentos baseados em falácias históricas, anacronismos e descaso contextual, envolvendo Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, na defesa do fechamento das igrejas para exemplificar o que estou falando.

Como veremos, eles não se contentam em rasgar apenas a Constituição; é necessário também desrespeitar a História em causa própria, interpretando-a ao seu bel-prazer, tirando-a do seu verdadeiro contexto.

Mas como fazem com a capa de “ministros do Supremo”, fica a impressão de que o que eles falam é moralmente puro, historicamente correto e cientificamente exato, e não deve ser questionado – Minister locuta, causa finita.

GILMAR MENDES: COMO ARGUMENTAR FORA DO CONTEXTO

Durante a polêmica protagonizada pelos ministros Kassio Nunes e Gilmar Mendes a respeito da abertura das igrejas, a mídia procurou tirar rapidamente da cartola mais um de seus “estudos científicos”. Assim que Kassio Nunes sinalizou favorável aos pedidos da Procuradoria Geral da República (PGR) e da Advocacia-Geral da União (AGU) que apelavam para a volta às reuniões presenciais nas igrejas, o jornal Estadão publicou uma matéria intitulada “Ambiente fechado e emissão de gotículas: estudos apontam riscos da transmissão da Covid em igrejas”.

Segundo o estudo, havia mais risco de transmissão do vírus em igrejas do que em mercados e consultórios.

Essa matéria curiosamente surgiu assim que a polêmica estava começando e serviu de respaldo científico às falas dos demais ministros favoráveis ao fechamento, principalmente a de Gilmar Mendes.

Para sustentar sua posição de fechamentista inveterado, Mendes utilizou depoimentos de membros da OMS que percorriam a mesma lógica de que eventos religiosos ajudam na proliferação do vírus.

Invocou como exemplo o caso da Igreja de Jesus Schincheonji (SCJ) na cidade de Daegu, onde uma das fiéis estava infectada e, deflagrou a partir da igreja, um dos maiores surtos de contaminação de Covid-19 do mundo.

Embora tudo o que Mendes disse seja verdade, é preciso entender que todas as citações do ministro estão fora de contexto. Explico: a maioria dos casos relatados pelo ministro, e pela mídia de forma geral, encontram-se dentro dos meses de fevereiro a abril de 2020, portanto, no início da pandemia. Cabe ressaltar que nesta época as autoridades não haviam sequer desenvolvido um protocolo a respeito de como se comportar frente ao vírus chinês. Durante esses meses, a pandemia não foi apenas ignorada, foi insistentemente menosprezada pelos políticos e infectologistas. A grande mídia fez de tudo para convencer a população de que o vírus era coisa de somenos importância. Os especialistas apresentados, principalmente pela Rede Globo, diziam que não havia problema algum em pular o carnaval; o médico Dráuzio Varella chamou o vírus de “gripezinha”, e uma afiliada da emissora do Distrito Federal fez uma reportagem desestimulando o uso de máscaras.

Também não havia nenhuma orientação quanto à redução no número de frequência em shows e cultos religiosos e muito menos uma regra de distanciamento social. É dentro deste contexto que as contaminações ocorreram não só nas igrejas, mas em todos os lugares.

Portanto, o argumento do ministro, apelando para casos assim, não é só anacrônico, é falacioso, posto que a reivindicação para a abertura das igrejas, este ano, estava em outro contexto.

O critério para a abertura das igrejas estava dentro de todas as normas sanitárias aprovadas pelas autoridades, tais como: redução de público para 25%; uso de álcool em gel; uso de máscaras para todos e distanciamento social. É um contexto completamente diferente do citado pelo ministro Gilmar Mendes, mas que ele fez questão de ignorar.

Em 08 de abril quando houve a decisão majoritária do STF (9×2) de manter as igrejas fechadas, ainda se acreditava que o vírus poderia ser transmitido com o mesmo potencial por meio da superfície como era por via aérea. A crença era a de que a contaminação se dava ao pegar em maçanetas de portas, utilizar bancos, corrimões, pisar no mesmo chão onde várias pessoas potencialmente infectadas passaram, etc. Estribado nesta crença o vereador Alberi Dias, presidente da Câmara de Canela, no Rio Grande do Sul, sugeriu pulverizar a cidade com álcool em gel. Excentricidades à parte, contaminação pela superfície era um dos argumentos usados para proibir reuniões religiosas presenciais.

Mas, eis que dois dias depois (10) da decisão do STF, o Wall Street Journal, seguido pelo New York Times, trouxeram as novas diretrizes do Centro de Doenças Infecciosas dos EUA (CDC) acabando com a narrativa do “teatro da higiene”, afirmando que é “baixo o risco” de se pegar Covid-19 em superfície. Parte da conclusão do estudo que está disponível no site da CDC (acesse neste link) afirma que “Na maioria das situações, limpar as superfícies com sabão ou detergente, e não desinfetar, é suficiente para reduzir o risco. A desinfecção é recomendada em ambientes comunitários fechados onde houve um caso suspeito ou confirmado de COVID-19 nas últimas 24 horas. O risco de transmissão de fômites pode ser reduzido usando máscaras de forma consistente e correta, praticando a higiene das mãos, limpando e tomando outras medidas para manter as instalações saudáveis”.

Esses fatos corroboram fortemente com a opinião de que os templos nunca foram o foco da contaminação. Acrescente-se a isso o fato de que os cristãos, mesmo estando todo esse tempo com suas igrejas fechadas, não pararam de se contaminar. Isso mostra, no mínimo, que o culto presencial não é o grande culpado como queriam nos fazer crer.

Mesmos os casos de contaminações em reuniões religiosas, relatadas no ano de 2020, precisam ser averiguados com mais rigor. Penso que apenas uma pequena parte pode ser creditada apenas ao contágio via igreja.

Digo isso devido à intensa interação social em que as pessoas estão inseridas nos centros urbanos.  As interações não são apenas diversas do ponto de vista social, mas acontecem a partir de diversos espaços e abrangem, inclusive, o contato físico em suas múltiplas possibilidades. Não só o espírito, mas o corpo também interage. Sendo assim, em alguns casos, torna-se quase impossível saber se a contaminação se deu dentro ou fora das reuniões religiosas.

Apesar da maioria das pesquisas voltadas à contaminação dentro das igrejas não serem tão rigorosas, pelos fatos mencionados acima, para muitos, mesmo havendo dúvidas, a culpa sempre deve recair sobre a igreja. O discurso prevalecente parece ser o de que a igreja é culpada até que se prove o contrário. Um pensamento do qual eu discordo completamente. Por diversas razões, penso que o benefício da dúvida deve ser dado à igreja.

Posição diferente da de Mendes, teve a Suprema Corte americana. Na época, a comentarista política, Ana Paula Henkel, noticiou em seu Twitter que “A Suprema Corte dos EUA decidiu -pela 5ª vez- que a Califórnia não pode aplicar restrições às reuniões religiosas e que, para isso, deve provar que elas representam um perigo maior do que atividades abertas” e crava: “Templos de Deus não são menos essenciais que os templos comerciais”.

A decisão de Mendes estava baseada em um tripé muito frágil: anacronismo histórico, pesquisas defeituosas e preconceito religioso. Mas ele falava como tendo autoridade!

ALEXANDRE DE MORAES E O SEU LUTERO DEFENSOR DO FECHAMENTO DE IGREJAS

Mas se não bastassem as distorções e anacronias feitas por Gilmar Mendes sobre as contaminações nas igrejas, eis que surge o seu colega, Alexandre de Moraes, tentando aventurar-se em “História Eclesiástica”, uma área em que é completamente leigo.

Em uma live que circula pela internet, ele conseguiu transformar Martinho Lutero em paladino do fechamento de igrejas e do isolamento social, além de colocar o reformador em um cenário de pandemia que ocorreu 133 anos antes dele nascer. Incrível!

Entretanto precisamos admitir: Lutero realmente era favorável ao fechamento das igrejas e do isolamento social dos doentes. Contudo, tudo isso precisa ser colocado dentro do seu devido contexto.

A fala de Lutero que Moraes tirou fora de contexto é na verdade uma resposta à carta de um pastor sobre como um cristão deveria se comportar durante o surto de peste negra que atingiu as regiões de Wittenberg. A partir da indagação se “um cristão pode ou não fugir de uma peste?”, Lutero oferece algumas orientações para os cristãos durante a calamidade.

Naquela época havia dois tipos de comportamentos seguidos pelos cristãos: aqueles que se expunham desnecessariamente às contaminações como uma demonstração de sua fé em Deus e aqueles que desejavam fugir da peste.

Lutero não se comporta como um ministro do STF baixando algum tipo de lei arbitrária a ser seguida à risca. Não ordena fechar as igrejas. Antes deixa a questão ao livre-arbítrio dos cristãos para chegarem à sua própria decisão e conclusão.

O reformador ensinava que não se deveria negligenciar os cuidados dispensados aos doentes. Se alguém quisesse fugir para salvar sua vida poderia fazê-lo, desde que deixasse alguém em seu lugar para cuidar dos doentes.

Parece que o ministro Alexandre de Moraes nunca leu essa carta por completo e, se assim o fez, omitiu as partes que lhe eram embaraçosas.

Lutero argumenta que as autoridades civis, religiosas e funcionários públicos deveriam permanecer em suas funções mesmo incorrendo em risco de vida. Mas se alguns deles quisessem fugir, poderiam, desde que deixassem em seu lugar um substituto. Parece-me que o Supremo está no topo do funcionalismo público. Alexandre de Moraes resolveu omitir essa parte da fala do reformador. Fê-lo por ignorância ou por conveniência? Seja como for, a verdade histórica aponta na direção contrária da opinião equivocada do ministro. O reverendo episcopal Ted Karpf, responsável na OMS pelos diálogos com entidades religiosas, afirmou em uma entrevista que “Durante a peste na Idade Média tudo fechou, mas as igrejas continuaram abertas. O mesmo ocorreu em 1918, com a gripe espanhola”.

Diferentemente do que insinua o ministro Alexandre de Moraes, Lutero não emitiu nenhuma lei para fechar igrejas por causa da epidemia. Tampouco, procurou isolar todos em um lockdown, mas apenas os doentes. E por fim, era favorável a que funcionários, inclusive juízes, permanecessem durante a pandemia para cuidar da cidade.

Assim como Lutero, acredito que a solução não está em emitir decretos abrindo ou fechando igrejas, mas deixando para o bom senso dos líderes religiosos a decisão. Cada caso deve ser visto dentro do seu contexto local e consenso da membresia.

A moral da história é que nada deve ser aceito apenas por causa do apelo à autoridade, muito menos o apelo à autoridade de dois ministros do STF que não lidam honestamente nem mesmo com a sua própria cátedra.

Questione sempre!

 

 

Paulo Cristiano da Silva, para Vida Destra, 07/07/2021.
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Luiz Antonio
Luiz Antonio
3 anos atrás

No ótimo art. de @pacrisoficial s/a falácia e o anacronismo histórico dos Min. G.Mendes e A.de Moraes na sua sanha p/fechamento de igrejas c/base no apelo à autoridade, só posso dizer q a fé move os fiéis até p/ônibus, aonde ñ tem vírus.

É natural de São José do Rio Preto, casado, servidor público com formação em Ciências Sociais e pós-graduado em Ciências da Religião e Teologia.