Houve época em que, quando me perguntavam qual minha profissão, quase sem perceber eu estufava um pouco o peito antes de responder de boca cheia: “Sou jornalista”. Também atuei como advogado e publicitário, mas minha primeira resposta era essa. Eu sentia orgulho de pertencer a essa classe de profissionais. Afinal, se a imprensa era considerada o quarto poder, aquele que fiscaliza e controla os outros três; se dela já foi dito que, se livre e independente, é o pulmão da democracia, eu me sentia como um daqueles que podia atuar como fiscal da população em defesa dos valores democráticos, enquanto levava a essa população informação e conhecimento. Como não se envaidecer disso, não é?
Na época eu respondia pela edição de uma revista técnica e pouco escrevia sobre política. Isso foi durante o regime militar e, no exercício de minhas atividades profissionais, tive poucas oportunidades de tecer comentários ou críticas a ele. Contudo, acompanhava os fatos através da grande imprensa e do noticiário radiofônico e televisivo, além de ouvir atentamente os comentários pessoais de colegas de profissão. É claro que eu execrava, como todos, a censura prévia que o governo de então fazia aos órgãos de comunicação. Mas, por mais que tentasse me informar sobre fatos por diferentes fontes, não conseguia comprovar as afirmações feitas à boca pequena de que vivíamos “anos de chumbo” e nem conseguia comprovação sobre os rigores da repressão, especialmente da perseguição cruenta aos opositores do regime em vigor, as prisões arbitrárias e as torturas como método padrão no combate à guerrilha e a subversão. A bem da verdade, pessoalmente me opunha àqueles que pretendiam substituir uma forma de tirania por outra, a comunista, que, a meu ver, era bem pior e cruenta. Quem estudou história sabe que isso é verdade. E história foi uma matéria que sempre gostei. Ainda assim, ansiava pela redemocratização do país. Afinal, eu pertencia ao grupo de profissionais que tinha o dever de fazer respirar a democracia.
O tempo passou e a redemocratização do país chegou. E chegou exatamente quando fui trabalhar no jornal O Estado de S. Paulo, não como jornalista, mas respondendo pelo marketing e comunicação. Trabalhar naquele que era considerado o melhor e mais importante periódico do Brasil,mundialmente reconhecido como tal, apenas me trouxe satisfação e orgulho. Empenhei-me em fazer o meu melhor para aumentar a influência e prestígio daquele jornal. Foi a época em que tive o privilégio de atuar com profissionais do nível de José Nêumanne Pinto, Luciano Orrnelas, Augusto Nunes, Fernão Lara Mesquita e Julinho Mesquita, apenas para citar alguns nomes dentre inúmeros grandes jornalistas que atuavam naquela casa, quando ela ainda era merecedora de respeito pelo excelente jornalismo que praticava. Quem não se orgulharia de estar trabalhando próximo de pessoas tão ilustres, merecedoras de todo respeito e admiração, não é?
Mais uma vez o tempo, esse sempre senhor da razão, passou inexorável e fiquei ansioso pelos resultados que a tão desejada redemocratização iria trazer. Minhas esperanças de um Brasil grande, porém, foram gradativamente desvanecendo, pois o que vi foi, na imaturidade dos eleitores, a volta dos conchavos escabrosos na política, os desacertos nas decisões, o mau uso dos recursos públicos, a gastança sem controle, o crescimento dos favorecimentos obscenos e esse gigantesco Brasil, tal e qual um paquiderme na lama, chafurdando em escândalos de corrupção, sem sair do lugar. O sonho do Brasil grande e pujante se transformou em decepção.
Ainda assim, eu, como democrata, acreditava que nós, os jornalistas, poderíamos fazer a diferença ajudando a reconduzir o país ao rumo certo, de ordem, progresso e real desenvolvimento. O que poderia ser mais ético do que a imprensa, o pulmão da democracia? Era o que eu pensava.
Pois eu estava errado em imaginar isso. Fui ingênuo, confesso. Em anos recentes constatei com um misto de espanto e tristeza que nossa classe de jornalistas havia se corrompido até bem mais que outros segmentos da sociedade, tanto por ideologia, quanto pelo dinheiro fácil e abundante da corrupção institucionalizada. Hoje, profundamente desapontado, constato a falência moral do jornalismo brasileiro, apesar das louváveis e notáveis exceções. Vejo, entre engulhos, os jornalistas que deveriam defender os mais elevados valores, se entregando à falsidade, deturpação e indisfarçável tentativa de manipulação da opinião pública, numa relação promíscua e indecorosa com o que há de pior no cenário político brasileiro.
Se isso me agasta por um lado, me consola por outro, pois finalmente as máscaras caíram e a natureza insidiosa dos péssimos profissionais a soldo, submissos aos mais abjetos interesses, está cada vez mais evidente. Basta querer ver para enxergar.
Perdi o gosto de ler revistas e jornais, algo que me dava grande prazer. Minha atual fonte primária de informação é a Internet, onde garimpo estritamente aquilo que me interessa e que posso minimamente confiar. Comemoro o advento das redes sociais, nas quais “jornalistas” não profissionais denunciam e corrigem as distorções desses outros, os pérfidos e vendidos. E quando hoje me indagam qual é minha profissão, prefiro dizer qualquer coisa, menos declarar-me jornalista. Espero viver o suficiente para, um dia, voltar a me orgulhar do nosso jornalismo.
Laerte A. Ferraz, para Vida Destra, 03/03/2020.
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Lamentavel. O Estadão era presença obrigatoria nas casas das familias, muitas vezes no cafe da manha.
Quando adolescente tive por hobby recortar materias, fotos , anuncios e muitas vezes serviram como referencia nos trabalhos de escola.
Cresci e entrei para publicidade , lamento ver esses periodicos agonizando. Triste fim.
Até os anos 90, jornal impresso era presença quase obrigatória nas casas de famílias da classe média. Poucos acreditavam que os impressos perderiam espaço para os meios digitais, mesmo até 2010. A última década, porém, quase decretou o final do ciclo dos impressos e, talvez por coincidência, assistimos à decadência moral do jornalismo. E não apenas dos jornais, mas também dos meios eletrôncos.
Excelente artigo ! Quando li, logo me identifiquei. Não que seja jornalista, mas professora de escola pública do RJ. Meu sentimento foi o mesmo: vergonha e tristeza ao presenciar o quê se tornou a escola pública.
Grato pelo comentário, Leda. Mas também dei aulas e sei bem o estrago que o processo der doutrinação causou na qualidade de ensino. Sou solidário com seu depoimento.
Brilhante artigo. Vivi a época dos anos de chumbo na faculdade de arquitetura e admirava aqueles jornalistas que lutavam pela real democracia.
A pergunta que faço, Mauro, é: foram realmente anos de chumbo?
Muito bom, Laerte!
Grato, Ruy.
Este ótimo artigo representa de modo claro a involução que houve no jornalismo brasileiro.
Obrigado, caro Livio.
De fato é lamentável essa sua conclusão, uma profissão que teria como objetivo levar até os seus leitores as informações do país e do mundo, notícias verdadeiras para que todos ficassem cientes !!!
Mas como também na política, o jornalismo virou puro interesse próprio, aonde mentir ou falar a verdade é tudo igual!!!
Mas o que nos deixa feliz é saber que ainda existe jornalistas com o seu caráter e a hombridade de reconhecer o que é certo e o que é errado!!!
PARABÉNS!!!
Mesmo tendo poucas pessoas como vc, acredito que um dia próximo o Brásil estará livres dessas pessoas, profissionais e principalmente de políticos sem caráter e que só pensam em benefícios próprios!!!
Abraços e fique com DEUS!!!
Grato pelo seu comentário, Rui. Isso apenas enriquece meu testemunhal. Abraços.
Desse lamaçal que é o jornalismo de hoje, tem inclusive aqueles que você um dia teve o privilégio de atuar.
Mas, essa tendência do jornalismo, infelizmente, não estaciona só no Brasil.
Só não acho legal uma autoridade pública fechar a porta para alguns jornalista e escancarar para outros. (fica naquele de bajuladores e inimigos).
Parabéns pelo texto!
Grato pelo comentário, Adamarcos.
Excelente artigo. Muito bom reler o artigo e ver um relato “in loco”.
Obrigado, Nunes. Abraços.