Decidi escrever sobre o STF, sem fatos novos ou que a maioria das pessoas não suponha ou desconfie. Serei apenas recorrente, mas farei indagações cujas respostas gostaríamos de ter. Então, neste artigo, vou juntar minha opinião às de milhões de brasileiros que esperam somente a confirmação daquilo que a gente já sabe ou suspeita.
Para começar, faço minhas as palavras de um ilustre brasileiro que, de tão repetidas, tornaram-se populares:
“A pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer”. (Rui Barbosa)
Quantas vezes, nos últimos anos, ao lermos essa frase de óbvio saber, não identificamos situações nas quais a sensação de desamparo perante decisões estranhas – quando não esdrúxulas – nos fez refletir que realmente a pior forma de ditadura é a do Poder Judiciário?
Estamos hoje sob uma ditadura do Judiciário?
A impressão que tenho é que não, mas a distância que nos separa disso não é muito grande. Não é o caso de enumerar ou relacionar as incontáveis decisões que aparentemente se subordinaram ao viés político, mais até do que ao texto expresso da Constituição Federal que os membros da Suprema Corte têm o dever de respeitar e interpretar. Porque a função do Judiciário é interpretar e aplicar a Constituição e as leis, e a isso se chama “hermenêutica”. Pois é justamente nessas interpretação e aplicação que muitas vezes ficamos com a impressão de que há decisões que são mais reescrições ou reformulações da Lei do que a desejável e necessária hermenêutica, além de outras que nos parecem favorecimentos, pura e simplesmente.
Já fomos surpreendidos por decisões que tanto ignoraram como subverteram o expresso texto legal. Um exemplo notório ocorreu na votação do impeachment da ex-presidente Dilma no Senado quando, em decisão monocrática, se votou em separado aquilo que está indissoluvelmente unido no texto da Constituição. Houve juristas reconhecidos que se insurgiram contra tal decisão, mas nada adiantou, pois os protestos caíram no vazio.
Imagino que o problema tenha início na própria Lei que não obriga que os indicados ao cargo de Ministro do STF tenham experiência como Magistrados, mas “notório saber jurídico”, que jamais é avaliado por testes ou concursos. E quem define que um candidato ao cargo tem “notório saber jurídico”, aqui no Brasil, é quem faz a indicação, isto é, o Presidente da República que nem sempre está capacitado para essa avaliação. Portanto, é evidente que a indicação pode estar eivada pelo alinhamento político e ideológico do indicante. Além disso, o favorecido por um cargo vitalício, mesmo que sabatinado e aprovado pelo Senado, raramente é rejeitado – se é que alguma vez foi. Pode ser rejeitado. Só que não é, pois antes mesmo da avaliação formal pelos senadores, todo trabalho de costurar a aprovação através de acordos, já foi efetuado naquilo que se costuma denominar de “articulação”.
A controvérsia inerente é a suspeita – legítima – de que passa a existir uma dívida de gratidão do indicado ao cargo para com o indicador e que, por essa razão, as matérias apreciadas e as coisas julgadas, jamais contrariarão os interesses de quem indicou. Será que isso soa familiar?
Vemos aqui dois problemas que causam suspeitas: o processo de indicação e a vitaliciedade do cargo. Seria sensato mudar isso.
É evidente que um Ministro do STF não vota sem que sua equipe de juristas e advogados efetue ampla pesquisa sobre o tema colocado em votação, construindo um arcabouço que dá sustentação ao voto proferido, seguindo as orientações do Ministro. Assim, fica explícito que a função principal dos assessores é justificar, com argumentações, o voto que será proferido. Nos últimos tempos, quando várias sessões foram transmitidas ao vivo pela televisão, chegamos a ver exposições longas, por vezes com mais de uma hora de duração, com considerações e justificativas para o voto emitido. E isso é especialmente verdadeiro para o Ministro relator da matéria, cujo voto, muitas vezes, é apenas acompanhado por seus pares, com os sem adendos.
Nada disso, porém, por mais elaboradas que sejam as argumentações em perfeito “juridiquês”, superam as suspeitas de decisões políticas e nem sempre imparciais. Basta ver que as esquerdas do país não reclamam das decisões colegiadas do STF. Alguma dúvida a respeito? Pois podem consultar sites, redes sociais, jornais ou programas noticiosos: não há reclamações das esquerdas. O que pode existir são críticas pontuais em relação à atuação de um ou outro membro do Supremo, mas, em relação às decisões colegiadas, nada.
Geralmente os indignados com decisões estranhas – para dizer o mínimo – são os representantes do pensamento conservador da sociedade, bem como a maioria votante que venceu nas últimas eleições e as pessoas que mantenham um mínimo de dignidade e bom senso. A única coisa da qual as esquerdas reclamam é o porquê o STF ainda não declarou as condenações de Lula nulas, colocando-o na rua, livre, leve e solto, com todos os direitos políticos restabelecidos. Se bem que a recente decisão da Segunda Turma do STF que abriu um precedente ao anular a condenação de Aldemir Bendine, ex- presidente da Petrobras, deve ter sido alegremente comemorada pelas esquerdas com um esperançoso “agora vai”.
Outra coisa que incomoda é a postura dos Ministros do Supremo. Eles agem como se “supremos” fossem em todos os sentidos. É evidente que pela função que exercem, merecem consideração e respeito. Entretanto, sempre que surge uma suspeita de algum favorecimento pessoal ou denúncia resultante de cruzamento de delações ou no curso de alguma investigação, eles se fecham monoliticamente na defesa do suspeito, impedindo qualquer ação de investigação como se estivessem pessoalmente acima da Lei e de qualquer suspeita. Tal atitude até faz lembrar o rei francês Luiz XIV, quando disse “O Estado sou Eu”. Pois é exatamente assim que eles parecem pensar a respeito deles próprios: “A Lei sou eu”.
Para nós, o povo, endividados e desempregados, amargando os desacertos administrativos daqueles que indicaram os atuais Ministros, e lutando pelo pão nosso de cada dia, quando ficamos sabendo o quanto eles gastam com viagens, com vinhos, bebidas finas, lagostas e outros acepipes, o que nos ocorre é lembrar a frase atribuída à Maria Antonieta, esposa de Luiz XVI da França, que teria dito sobre as penúrias da população: “Se não têm pão, que comam brioches”. Ouviram o som de tapa na cara de alguém? Pois foi na nossa.
Uma máxima diz que decisão judicial não se discute, se cumpre. É verdade, mas só em parte, pois para se discutir uma decisão, seja por erro processual ou por inconformismo, há instâncias a quem se recorrer. E a última delas, é o STJ ou, quando se for sobre uma questão constitucional, o STF. Além disso, não há nada mais e a decisão é definitiva. Mas o que fazer quando a última instância literalmente atropela as demais e decide sobre questão fora de sua alçada, isto é, o limite de competência de um tribunal? Pois foi isso que aconteceu quando uma Juíza responsável pela execução penal de um caso decidiu pela transferência de um apenado de uma cela especial na Polícia Federal de Curitiba para o presídio de Tremembé, em São Paulo e, num prazo recorde de uma hora, Ministros do STF cassaram tal decisão, para júbilo do apenado que continuará desfrutando do benefício de uma cela especial. É de se imaginar que os advogados desse beneficiado têm livre acesso aos Ministros do STF, pois conseguir redigir uma petição e obter uma decisão favorável em prazo tão exíguo nesse tribunal é algo digno de constar em livro de recordes, mostrando que há pessoas que recebem tratamento especial, pois há processos no STF que chegam a esperar vários anos por uma decisão. Esse foi o caso, por exemplo, da mineira Alcirene de Oliveira, que faleceu em 2017, após lutar desde 2011 por um recurso extraordinário por medicamentos de alto custo e cujo processo ainda não tinha, em 2018, previsão de julgamento no STF.
Tais fatos já seriam suficientes para nos indignar a ponto de causar náuseas. Só que infelizmente não para nisso. Há as freqüentes declarações contra a Lava Jato veiculadas pela imprensa, operação que lavou a alma da população brasileira, cansada de assistir corruptos atuando impunemente no exercício da corrupção sistêmica e continuada. Há os insultos jamais disfarçados ao ex-Juiz Sergio Moro e os Procuradores da Lava Jato. Há os cerceamentos a procedimentos investigativos da Polícia Federal. Também as limitações impostas que mais parecem obstruir que facilitar a apuração de crimes e malfeitos, tudo em nome das restrições a presumidos excessos jurídicos e policiais. Está ficando difícil prender e indiciar criminosos no Brasil. Há a sensação de leniência com a corrupção e de mal disfarçada proteção em relação à classe política. E apesar disso, já ouvimos um deles afirmar recentemente que o STF é garantidor da Democracia. É mesmo? Qual Democracia, aquela que diz que o poder emana do povo e em seu nome será exercido ou a que é exercida em favor de apaniguados?
Enfim, será que é isso que queremos de um Supremo Tribunal? Será que esses Ministros – ou pelo menos parte deles, ressalvadas as honrosas exceções – nos representam? Ou será que, como brasileiros, gostaríamos que os representantes da Suprema Justiça fossem razão de orgulho para nós e não quem nos mandasse prender quando, honesta e sinceramente, disséssemos que não confiamos no STF como instituição?
Eu tenho minha resposta. Qual a sua?
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