Eu sei. Esse é um daqueles assuntos desagradáveis sobre os quais a gente prefere não ler a respeito. Muitas vezes, isso acontece porque, diante de certos problemas, nós nos sentimos impotentes. E, se não podemos fazer nada a respeito, por que deveríamos tomar conhecimento de algo que pode atrapalhar nosso sono? Eu mesma me sinto assim a respeito de alguns assuntos.
No entanto, apesar disso, como indivíduos e como sociedade, constantemente somos instados a tomar posição em defesa dos direitos e, até mesmo, da vida dos mais vulneráveis, daqueles que não têm condições de se defender, como é o caso dos nascituros, dos bebês, das crianças, dos adolescentes, dos idosos e das pessoas com deficiência.
Para tomar posição frente a um assunto ou problema, precisamos conhecê-lo e, muitas vezes, isso significa quantificá-lo. Para isso, precisamos defini-lo e classificá-lo. Nem sempre isso é fácil. Na verdade, quase nunca é.
Sendo históricas, a definição e a classificação das deficiências, assim como a maneira como a sociedade lida com elas, mudaram e continuam mudando ao longo do tempo. A mais recente transformação começou a ser construída, a partir da segunda metade do século XX, pelo movimento das pessoas com deficiência, inspirado por pensadores que se dedicam aos Estudos sobre a Deficiência [1]. Trata-se da substituição do “modelo médico da deficiência” pelo “modelo social da deficiência”.[2]
Pelo modelo médico, grosso modo, a deficiência estaria localizada exclusivamente no corpo da pessoa. Se quisesse conviver na sociedade tal como ela era, a pessoa precisaria corrigir o próprio corpo. A deficiência seria, então, um desafio pessoal. Já o modelo social considera a deficiência uma condição que resulta da interação entre a lesão no corpo e o ambiente social no qual a pessoa vive. Desse modo, o grau da deficiência pode diminuir ou aumentar conforme o ambiente seja mais ou menos acessível arquitetonicamente e amigável socialmente.
Como resultado das discussões internacionais sobre os modelos médico e social, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU), define pessoas com deficiência como sendo “aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”. Incorporada pelo Decreto 6.949/2009 à legislação brasileira como um legítimo preceito constitucional, a Convenção determina a conceituação legal da deficiência e a forma como a sociedade deve lidar com essa parcela da população.[3]
Sendo assim, órgãos nacionais, estaduais e municipais têm adotado o modelo social da deficiência para todos os efeitos, incluindo a coleta de dados estatísticos. Ao contrário do que ocorre com o modelo médico, mais objetivo, mas, também, mais limitado, a produção de dados estatísticos à luz do modelo social apresenta desafios inéditos e complexos. Porque essa é uma transformação relativamente recente, em termos históricos, é natural que sejam necessárias adaptações e correções de rumos. Foi o que aconteceu com o Censo 2010.
Quando, considerando o modelo social da deficiência, o Censo 2010 concluiu que 23,9% da população brasileira eram constituídos por pessoas com algum tipo de deficiência, isso chamou muito a atenção de pesquisadores e gestores públicos, sobretudo pelo índice de 18,8% de pessoas com deficiência visual, considerado muito alto e totalmente desconectado da nossa realidade. Então, em 2018, a partir de sugestões do Grupo de Washington de Estatísticas sobre Deficiência (vinculado à Comissão de Estatística da ONU), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) alterou a interpretação dos dados do Censo 2010 e adotou uma nova margem de corte.[4]
Anteriormente, tinham sido consideradas como sendo deficientes as pessoas que afirmaram ter “alguma dificuldade” para realizar determinada atividade. Pelo novo critério, são consideradas como deficientes apenas as pessoas que declararam (ou que venham a declarar, nos próximos censos) que “de modo algum” conseguem ou têm “muita dificuldade” para, por exemplo, subir escadas. De acordo com essa nova margem de corte, o IBGE concluiu que há 12,7 milhões de pessoas com deficiência no Brasil, o que representa 6,7% da população em geral. Essa porcentagem está mais alinhada com os índices internacionais, que estimam em aproximadamente 15% a população mundial com alguma deficiência.[5]
Naturalmente, a deficiência é uma condição que perpassa todas as fases da vida. Em se tratando de nascituros, bebês, crianças, adolescentes, mulheres e idosos com deficiência, essa dupla vulnerabilidade aumenta o risco de esse ser humano ser abortado, sofrer abuso, violência, negligência e abandono. Pesquisas feitas nos Estados Unidos mostram que pessoas com deficiência estão quatro a 10 vezes mais sujeitas à violência do que as pessoas sem deficiência [6]. Crianças com deficiência sofrem duas vezes mais violência física e apresentam cerca de 80% mais riscos de serem vítimas de violência sexual em comparação com crianças não deficientes. Cerca de 73% das mulheres deficientes pesquisadas tinham sofrido algum tipo de violência, sendo que 10% dos agressores eram seus próprios cuidadores.[7]
No Brasil, a pesquisa sobre violência contra as pessoas com deficiência é incipiente, para não dizer inexistente, se comparada aos estudos relativos à violência contra os outros grupos fragilizados. Somente em 2011, quando a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República passou a compartilhar os dados referentes à violência contra deficientes obtidos pelo serviço Disque 100, outros órgãos públicos foram instados a coletar e medir a ocorrência desses crimes.
Em 2013, o Estado de São Paulo, a partir de iniciativa pioneira da Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SEDPcD), criou o Programa Estadual de Prevenção e Combate à Violência contra Pessoas com Deficiência [8]. Em 2014, houve a criação da 1ª Delegacia de Polícia da Pessoa com Deficiência (DPPD)[9], com o objetivo de referenciar o atendimento policial de casos de violência contra pessoas com deficiência, no Estado de São Paulo. Em seguida, a Secretaria de Segurança Pública incluiu o campo “pessoa com deficiência” no Registro Digital de Ocorrências (RDO). Como resultado, em apenas três meses, mais de quatro mil Boletins de Ocorrência foram registrados tendo pessoas com deficiência como vítimas no Estado de São Paulo, o equivalente a quase 40% do total de denúncias notificadas em três anos. Somente em 2015, foram registrados mais de 15 mil Boletins de Ocorrência por pessoas com deficiência no Estado de São Paulo.[10]
De acordo com a base de dados relativa a pessoas com deficiência da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, organizada pela Fundação Instituto de Pesquisas (Fipe), no período entre 1º de janeiro de 2019 a 30 de junho de 2021, somente a 1ª Delegacia fez 737 Boletins de Ocorrência. No mesmo período, em todo o Estado de São Paulo, foram registrados 24.741 casos referentes a pessoas deficientes. Desses, a maioria diz respeito a pessoas com deficiência física (49,05%). Em seguida, aparecem os registros de crimes contra pessoas com deficiência intelectual (23,96%). Depois, são objeto de 16,07% dos registros, as pessoas com deficiência auditiva e, por último, temos 10,72% de notificações relativas a pessoas com deficiência visual. Considerando a faixa etária, as pessoas com 65 anos ou mais são a maioria das vítimas (23,26%) e aquelas com até nove anos são as menos afetadas (2,93%). No que se refere ao gênero, 55,73% das pessoas com deficiência vítimas de crimes em geral são homens e 44,15% são mulheres.[11]
Em nível nacional, criado em 2016, o Atlas da Violência [12] só começou a recolher e organizar informações sobre pessoas com deficiência a partir do relatório relativo a dados de 2019, divulgado em 31 de agosto de 2021. Até então, a deficiência não era considerada uma das variáveis a ser investigada, tal qual ocorre com sexo, orientação sexual, raça/cor e faixa etária. A partir da inclusão da variável deficiência, o Atlas da Violência [13] descobriu que, em 2019, foram registrados no Brasil mais de 7,6 mil casos de violência contra pessoas com deficiência. Ou seja, praticamente, um caso é notificado por hora no Brasil.
A maioria das vítimas é mulher, sendo que 56,9% delas têm deficiência intelectual. Cinquenta e três por cento dos casos registrados se referem à violência física. A violência psicológica atinge 31% dessas pessoas e 29% delas são vítimas de negligência/abandono. Metade das que são negligenciadas e/ou abandonadas são pessoas com múltiplas deficiências.
Segundo o Atlas, 35% das pessoas com deficiência intelectual, sobretudo mulheres, sofrem violência sexual. Mulheres com deficiência sofrem mais violência psicológica e sexual do que homens na mesma condição. Os homens com deficiência estão mais sujeitos à violência fora de casa (26%) e sofrem mais negligência e abandono (38%) do que mulheres (24%).
O índice de casos de violência contra pessoas com deficiência intelectual é maior se comparado com os números de casos de abusos contra pessoas com outros tipos de deficiência. O Atlas mostra que, em 2019, foram feitas 36,2 notificações para cada 10 mil pessoas com deficiência intelectual, sobretudo mulheres, enquanto, para cada 10 mil pessoas com deficiência física, houve 11,4 notificações de casos de violência. Esses números diminuem, quando se referem a pessoas com deficiência auditiva (3,6) e pessoas com deficiência visual (1,4).
Porque a maioria desses crimes (58,5%) ocorre dentro de casa, sobretudo contra mulheres (60%), há a agravante representada pelo constrangimento de denunciar a própria família da qual a maioria das vítimas é dependente financeira e pessoalmente, muitas vezes, para realizar as atividades mais básicas da vida diária.
Ainda que esses números sejam assustadores, é muito provável que haja subnotificação. As vítimas têm dificuldades de locomoção e de comunicação. Enquanto seus agressores não temem ser descobertos, denunciados, nem punidos, as vítimas frequentemente são desacreditadas. Os casos de violência contra pessoas com deficiência intelectual são ainda mais difíceis de serem identificados, pois essas pessoas podem não compreender que estão recebendo tratamento abusivo, podem desconhecer o que é ou não adequado em termos de sexualidade, podem não saber como se defender, nem que têm o direito de denunciar seus agressores.
Todas as pessoas estão sujeitas a experimentar uma deficiência temporária ou permanente em algum momento de suas vidas. Todos aqueles que chegarem à velhice saberão como é conviver com limitações físicas, sensoriais e até cognitivas. Quase todas as famílias têm ou terão parentes ou amigos com algum tipo de deficiência ou com idade avançada que enfrentam limitações e requerem apoio.
A menos que, num futuro distópico, sejam impedidas de nascer e sobreviver, as pessoas deficientes sempre existirão. Mesmo que haja enormes avanços na medicina, a humanidade, assim como fez desde seus primórdios, sempre terá de lidar com a deficiência porque ela faz parte da condição humana. Todas as civilizações, ao longo da história, tiveram de enfrentar a questão moral e política de como conviver e apoiar as pessoas com deficiência.
Agora, é a nossa vez.
Notas:
[1] Os Estudos sobre Deficiência são um campo acadêmico que investiga a sociedade em que vivemos, com enfoque na discriminação e no preconceito que as pessoas com deficiência enfrentam. Esse campo originou-se no Reino Unido na década de 1960, ligado a movimentos sociais conduzidos por pessoas com deficiência. Leia aqui.
[2] Para saber mais, acesse este link.
[3] Leia sobre aqui.
[4] Mais informações neste link.
[5] O Relatório Mundial sobre a Deficiência estima que mais de um bilhão de pessoas vivam com algum tipo de deficiência, ou seja, aproximadamente, 15% da população mundial (baseado em estimativas da população mundial de 2010). Isso é um pouco mais do que os 10% estimados anteriormente pela Organização Mundial da Saúde. Saiba mais aqui.
[6] Outras informações neste link.
[7] Para saber mais, leia o artigo “Evidências sobre violência e deficiência: implicações para futuras pesquisas”, neste link.
[8] Decreto 59.316, de 21 de junho de 2013.
[9] Decreto Estadual 60.028/14
[10] Mais informações aqui.
[11] Saiba mais acessando a base de dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo neste link.
[12] Gerido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com a colaboração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
[13] Usando dados do Viva-Sinan (Vigilância de Violência Interpessoal e Autoprovocada), do Ministério da Saúde, registrados por profissionais de saúde, e dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2013, realizada pelo IBGE. Leia mais neste link.
Lia Crespo, para Vida Destra, 15/09/2021. Sigam-me no Twitter, vamos debater o meu artigo! @liacrespo
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De fato, o tema é pesado. A vulnerabilidade das pessoas com limitações físicas ou sensoriais é um assunto que sempre foi meio jogado pra debaixo do tapete, um “meio” tabu. É mais fácil falar de pedofilia, que também trata de seres vulneráveis, do que do assunto aqui tratado. Como deficiente, sofri um pouco com a violência emocional na infância, mas isso me deu um olhar crítico sobre o ser humano, suas fraquezas intelectuais, racionais, e sua auto estima e suas vaidades ou medos. Eu realmente acho que a humanidade foi um projeto que não deu muito certo.
Veruska, obrigada por compartilhar sua opinião e sua experiência. Às vezes, penso como você. Mas, creio que a maior parte da humanidade é boa, caso contrário, a espécie já teria se extinguido.
Eu concordo com você sobre a questão da maior parte da humanidade ser boa, porém, são os pequenos grupos grotescos que fazem a maior parte da destruição. Martin Luther King já dizia: “O que me incomoda não é o grito dos maus, e sim, o silêncio dos bons”.