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Crip Camp: Revolução pela Inclusão

Capa: Lia Crespo ao lado de Judy Heumann, ativista dos direitos das pessoas deficientes e protagonista do documentário, quando esteve no Brasil, em 2015.

 

 

Neste ano, o Oscar de melhor documentário foi para a produção da Netflix “Professor Polvo“, que conta a história de Craig Foster, cineasta de vida selvagem, e sua amizade com um polvo.

Embora a história do vencedor pareça bem curiosa, estou mais interessada em um dos indicados que não levaram a estatueta: Crip Camp: Revolução pela Inclusão que, segundo a mídia especializada, tem o trunfo de ter sido produzido por Barack e Michelle Obama.

Mas, como bem disse o crítico Daniel Fienberg, do The Hollywood Reporter, não vamos deixar que “a marca de Obama” afaste os espectadores “de uma história que é verdadeiramente apartidária, humana e significativa”.

Crip Camp pode ser traduzido para Acampamento Aleijado. Então, de cara, já gostei do título que vai na contramão do politicamente correto. Além disso, Crip Camp, escrito e dirigido por Nicole Newnham e Jim LeBrecht (ele mesmo um dos protagonistas do filme), mostra pessoas com deficiência como protagonistas tanto na frente, como atrás das câmeras.

Num primeiro momento, o documentário mostra o cotidiano, as aventuras e desventuras de jovens com deficiência, no Camp Jened, um acampamento de verão, que acontecia no estado de Nova York, entre 1951 e 1977. Sem as costumeiras supervisão e ajuda de seus pais, muitos dos participantes experimentam, pela primeira vez na vida, a oportunidade de tomar suas próprias decisões, assumir a responsabilidade por suas escolhas, ter a chance de se apaixonar, namorar, enfim, de sentir-se como qualquer outro adolescente vivendo nos anos 1970.

Mas, Crip Camp relata também a história de como essa experiência mais íntima e pessoal encorajou muitos jovens com deficiência a se engajarem num movimento mais amplo, não só por direitos, mas também por visibilidade. Enfrentando inúmeros obstáculos e contra todas as expectativas, esses jovens conquistaram avanços decisivos não somente para si mesmos, mas, para todas as pessoas com deficiência. Apesar disso, essa é a luta que “menos atenção recebeu dentre todas as outras lutas por igualdade de direitos, no século 20 “, conforme escreveu Jake Coyle, para o The Washington Post.

Larry Allison, Judith Heumann, Denise Sherer Jacobson, Stephen Hofmann e James LeBrecht são alguns dos jovens campistas que lideraram um protesto pacífico que forçou o governo americano a regulamentar a Seção 504, da Lei de Reabilitação de 1973, que proibia a discriminação e exigia a remoção de barreiras à acessibilidade de pessoas deficientes em qualquer edifício, programa ou atividade financiados por verba federal.

Depois de escrever cartas, fazer lobby e organizar passeatas de parar o trânsito, o movimento dos deficientes decidiu que era a hora de convocar um protesto nacional. Assim, em 5 de abril de 1977, ativistas realizaram protestos em prédios federais localizados em Atlanta, Boston, Chicago, Denver, Los Angeles, Nova York, Filadélfia e Seattle. Os dois protestos mais notáveis ​​ocorreram na capital do país, Washington, e na cidade de São Francisco, na Califórnia.

Em Washington, cerca de 300 pessoas deficientes fizeram uma passeata até o Departamento de Saúde, Educação e Bem-Estar dos Estados Unidos e permaneceram no prédio por 28 horas.

Em São Francisco, cerca de 150 pessoas, homens e mulheres, negros e brancos, em sua maioria jovens, com diferentes tipos de deficiências, além de intérpretes da Língua Americana de Sinais, atendentes de cuidados pessoais e pais de crianças com deficiência, entraram no prédio do Departamento de Saúde, com a intenção de sair só depois de conquistar a regulamentação da Seção 504.

Tudo foi cuidadosamente planejado, com bastante antecedência e em segredo, pois, evidentemente, deslocar um grande número de pessoas com deficiência para dentro de um edifício não acessível, sem despertar demasiada atenção das autoridades a ponto de impedirem a entrada no prédio, não seria e não foi nada fácil, para dizer o mínimo.

Além do planejamento minucioso, os ocupantes foram beneficiados pelo fator surpresa, já que nunca antes ocorrera um protesto envolvendo tantos deficientes e ninguém suspeitou que fossem capazes de uma estratégia política tão complicada. Além disso, como os manifestantes esperavam, as autoridades evitaram forçar uma retirada, por medo do desastre de relações públicas que representaria o uso de violência e a prisão de pessoas com deficiência. Conforme os estrategistas imaginaram, pelo menos desta vez, o preconceito em relação às pessoas com deficiência funcionou a favor dos manifestantes.

Do lado de fora do prédio, a mídia e centenas de apoiadores realizavam vigílias diárias. Isso manteve a ocupação à vista do público e encorajou os manifestantes a resistir. Esse apoio foi importante porque a vida na ocupação era um desafio diário. A maioria dos ocupantes tinha levado apenas uma escova de dentes. Alguns tinham necessidades médicas específicas, outros precisavam de ajuda para usar o banheiro, mudar de posição em intervalos regulares, tanto na cadeira de rodas como na cama, durante a noite, para evitar escaras. Como nem todos estavam acompanhados de seus atendentes pessoais, tiveram de improvisar e contar com a ajuda mútua. Os cegos ajudavam os tetraplégicos que, por sua vez, liam as informações impressas para eles.

Todos assumiram sua responsabilidade e cada um realizava sua tarefa em comitês que cuidavam da alimentação, segurança, limpeza, comunicação/mídia, arrecadação de fundos e, claro, do entretenimento porque ninguém é de ferro. Para que cada pessoa sentisse que estava sendo ouvida, as decisões eram discutidas e tomadas coletivamente.

O sucesso do protesto também se deveu ao histórico de ativismo da região de São Francisco e ao fato de que muitos deficientes também participavam do movimento por direitos civis dos negros e dos atos contra a guerra do Vietnã. Assim, os manifestantes tinham muitos aliados do lado de fora da ocupação, incluindo o prefeito de São Francisco, George Moscone, que mandou instalar, no prédio ocupado, chuveiros portáteis e telefones públicos. O Exército de Salvação forneceu colchões e cobertores. As refeições foram fornecidas pelo McDonald’s e, depois que o FBI impediu que gente de fora entrasse no prédio, as refeições quentes foram garantidas, até o final do protesto, pelos Panteras Negras.

Numa época anterior à internet, aos computadores e smartphones, o contato entre os ocupantes e o mundo exterior foi um desafio enfrentado com criatividade. Através das janelas, a comunicação era feita por cartazes e pelos surdos que, de dentro do prédio, mandavam mensagens em língua de sinais para intérpretes do lado de fora, garantindo, assim, que a imprensa ficasse a par de tudo e informasse o público.

A Seção 504, da Lei de Reabilitação, foi regulamentada em 28 de abril de 1977, lançando as bases para a Lei dos Americanos com Deficiências (ADA, na sigla em inglês), sancionada pelo presidente George H.W. Bush, em 1990. A ADA ampliou os direitos dos deficientes para além do acesso a espaços e serviços financiados pelo governo federal. Assim, desde então, as pessoas com deficiência têm direito de acesso a quaisquer atividades, serviços, programas e locais públicos ou privados de uso público. Sobretudo, a ADA estabeleceu que a deficiência não é um problema exclusivo do indivíduo, mas, uma condição que interage com a sociedade. Cabe a ela tornar-se acessível, em benefício de todos. Como diz Judy Heumann: “Nós não somos aqueles que precisam mudar. Mas, sim, a sociedade que nos rodeia.”

Foram 23 dias ininterruptos de protesto. Ainda hoje, é considerada a mais longa ocupação de um prédio federal. Nada mal para um bando de aleijados, hein?

 

 

Lia Crespo, para Vida Destra, 04/05/2021.                                                              Sigam-me no Twitter, vamos debater o meu artigo! @liacrespo

 

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4 COMMENTS

  1. Parabéns, Lia. Amei seu artigo de estreia no VD. Espero mesmo que seja o primeiro de muitos. Bem-vinda, querida. Que Deus nos ajude e acompanhe nessa jornada de ampliar nossos espaços de fala. Pela família, pela Pátria, pela Liberdade. Avante!

  2. No seu brilhante art. de estréia @liacrespo nos relata s/um dos filmes indicados p/Oscar, Crip Camp,a revolução p/inclusão q possibilitou através de protestos a regulamentação de uma lei americana,q proibia a discriminação e exigia a remoção de barreiras à acessibilidade de pessoas deficientes.No BR só após ratificarmos um tratado,tivemos a Lei 13.146/2015 e temos muito a fazer em termos de políticas públicas.

  3. Parabéns por sua estréia Lia!!!
    Lindo texto e história que eu particularmente desconhecia.
    Uma lição de vida pela tremenda conquista!!!
    Desejo sucesso e a certeza dele, nesse novo desafio.
    Deus te abençoe querida!!!

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Lia Crespo é militante jurássica do movimento das pessoas deficientes, jornalista, com doutorado em História Social, com a tese "Da invisibilidade à construção da própria cidadania. Os obstáculos, as estratégias e as conquistas do movimento social das pessoas com deficiência no Brasil, através das histórias de vida de seus líderes" (FFLCH/USP), e mestrado em Ciências da Comunicação, com a dissertação “Informação e Deformação: A imagem das pessoas com deficiência na mídia impressa” (ECA/USP). Autora dos livros infantis “Júlia e seus amigos” e “Uma nova amiga”, que tratam de deficiência e da importância da amizade para uma sociedade inclusiva.