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A paz que poderia ter sido

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A paz que poderia ter sido

 

5/31/1988 President Reagan greets a young boy while touring Red Square during the Moscow Summit in the USSR

 

Fonte: SPIKED online

Título Original: The peace that could have been

Link para a matéria original: aqui.

Publicado em 26 de fevereiro de 2022

 

Autor: Tim Black

 

Após a Guerra Fria, o Ocidente teve a oportunidade de trazer a Rússia para o tabuleiro.

 

Não há nenhuma justificativa para a decisão do presidente russo, Vladimir Putin, de lançar uma invasão em larga escala na Ucrânia. É um ato de agressão quase inacreditável. A soberania e o espírito democrático estão sendo destruídos por mísseis russos, tanques russos e soldados russos. Não há qualquer dúvida sobre onde deve recair a responsabilidade pela miséria e pela matança – no final de uma longa mesa, onde Putin certamente está sentado agora.

Ainda assim, é preciso dar um passo atrás e nos perguntarmos como chegamos a esse ponto. Como é possível que, 30 anos depois da queda do Muro de Berlim, a Europa seja testemunha dessa nefasta paródia da Guerra Fria? Muitos se contentarão em culpar somente Putin. Eles dirão, tal como fazem pelo menos desde a anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014, que tudo isso faz parte do plano de Putin de reviver o ‘império soviético’. Uma última e desvairada tentativa de ‘renegociar o fim da Guerra Fria’, engendrada por um ditador envelhecido que sonha, desesperadamente, em deixar um legado grandioso e heróico.

Isso, porém, turva o papel muito mais preponderante dos governos ocidentais na criação do contexto geopolítico em que Putin tomou a decisão de invadir a Ucrânia. Especificamente, ignora-se o papel do Ocidente, décadas atrás, em perpetuar e exacerbar o antagonismo da Guerra Fria. Esse conflito poderia ter sido encerrado em 1989. Mas, nos anos que se seguiram, o Ocidente liderado pelos Estados Unidos, em última análise, reinseriu o mundo pós-soviético no cenário da Guerra Fria. Não exatamente, claro. E não com o mesmo teor ideológico – já não era mais o caso [de uma contenda] do ‘mundo livre’ do capitalismo versus o autoritarismo do comunismo. Mas aproximadamente, usando uma arquitetura de ‘segurança’ similar. Tratava-se de uma ‘Nova Ordem Mundial’, para usar as palavras do presidente George H. W. Bush, mas uma [nova ordem] que guardava notável afinidade com aquela que pretendia suplantar, com a Rússia, em última instância, ainda desempenhando o papel de principal antagonista do Ocidente.

Eis por que a permanência, a expansão e o intervencionismo hiperativo da mais típica instituição da Guerra Fria – a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) –, após o fim da Guerra Fria, são tão importantes. A sobrevida da OTAN pós-1989 não foi acidental nem uma idiossincrasia do processo histórico. [A OTAN] é a expressão institucional da determinação dos governos ocidentais vitoriosos de mandar no mundo pós-Guerra Fria, e precisamente nos termos maniqueístas da Guerra Fria – demarcando fronteiras entre Ocidente e Oriente, entre estados vitoriosos e estados ‘fracassados’, e, por fim, entre poderes intervencionistas eticamente virtuosos e a antiga sede do império do mal. O que estamos vendo na Ucrânia agora é, de muitas maneiras, o resultado de termos permitido que se tornasse irreconciliável essa oposição entre o Ocidente e a Rússia, incorporada e alimentada pela OTAN.

O que dá a essa narrativa seu aspecto trágico é que tudo isso poderia ter sido muito diferente. Com a fragmentação do Pacto de Varsóvia, no fim dos anos 1980, a queda do Muro de Berlim em 1989 e a implosão da União Soviética em 1991, havia talvez uma chance de superar o ‘nós contra eles’ da Guerra Fria. Havia uma chance, talvez, de não ter a Rússia como o eterno inimigo do Ocidente, tal como é hoje. Havia uma chance, talvez, de até mesmo abandonar a dicotomia militarizada e antagônica de Oriente e Ocidente. “Uma era em que as nações do mundo, de leste a oeste, de norte a sul, poderão prosperar e viver em harmonia”, como disse o Presidente Bush pai em 1990.

Lembre-se de junho de 1992. O então presidente russo Boris Yeltsin apoiou sua contraparte americana, Bush, e se regozijou, ou assim pareceu, com a promessa de um admirável mundo novo pós-Guerra Fria. Seria um mundo em que América e Rússia não mais seriam adversárias. Um mundo de novas alianças que transcenderia o antagonismo do século 20 – violento e atemorizado pela ameaça atômica. Um mundo em que, como Yeltsin afirmou em uma menção à Corrida Espacial, a Rússia e a América poderiam trabalhar juntas para levar o homem a Marte.

Sob as luzes da história, a possibilidade de tal cortesia entre Rússia e Estados Unidos pode ter sido um truque. No entanto, como mostra Mary Elise Sarotte, em seu excelente livro Not One Inch [Nem uma polegada], certamente havia, à época, uma chance de libertar o mundo do referencial antagônico da Guerra Fria – talvez até mesmo da ordem mais abrangente do pós-guerra. De fato, em 21 de setembro de 1989, enquanto a Hungria e a Polônia tentavam se livrar do Pacto de Varsóvia, o secretário de Estado americano, James Baker, e sua contraparte soviética, Eduard Shevardnadze, discutiram a questão de permitir que a Polônia e a Hungria avançassem para, nas palavras de Baker, ‘um tipo de sistema de livre mercado’.

Shevardnadze elaborou o que descreveu como uma ‘proposta razoável’: ‘Vamos dissolver a OTAN e o Pacto de Varsóvia. Vamos liberar os seus e os nossos aliados. Enquanto a OTAN existir, o Pacto de Varsóvia também existirá’.[1] Como Sarotte deixa claro, essa barganha mostra que, na balança, não estava apenas o futuro da URSS, mas também da estrutura institucional da própria Guerra Fria.

Obviamente, a proposta resultou em nada. Entretanto, o futuro da OTAN continuou sendo tópico central das negociações realizadas no início dos anos 1990, envolvendo os Estados Unidos, seus aliados e a União Soviética que se desintegrava rapidamente. Nenhuma surpresa. Em meio à sua derrota, os soviéticos quiseram garantias de que a vitória do Ocidente liderado pelos Estados Unidos não se tornaria, mais tarde, uma ameaça para a Rússia e seus então aliados. Muito do debate, à época, se concentrou na perspectiva de a Alemanha reunificada se tornar membro da OTAN, isso sem mencionar o futuro do armamento nuclear na Europa.

Com a Polônia e a Hungria fazendo forte pressão para ingressar na OTAN, os presidentes Gorbachev e depois Yeltsin também buscaram obter concessões dos governos ocidentais quanto à expansão da OTAN na direção do Leste. Entre os pontos de discussão, eles inclusive falaram sobre a possibilidade de a Rússia entrar para a OTAN, ou de se substituir a OTAN por alguma nova forma de aliança pan-europeia de segurança, ‘do Atlântico até os Urais’.

Isso deu a entender, certamente aos olhos de Moscou, que haviam conquistado concessões dos Estados Unidos em relação à OTAN. Em uma conversa hoje considerada infame, em fevereiro de 1990, Baker fez a Gorbachev a seguinte pergunta: ‘Você prefere que a Alemanha unificada fique fora da OTAN, independente e sem forças americanas, ou que a Alemanha unificada se junte à OTAN, mas com a garantia de que a jurisdição da OTAN não avançará uma polegada de sua posição atual para o leste?’ Gorbachev disse que qualquer expansão da ‘zona da OTAN’ era inaceitável, ao que Baker respondeu: ‘nisso, estamos de acordo’.

Essa barganha, agora, é fonte de muita controvérsia. Putin a invoca como prova da perfídia do Ocidente. E os defensores da OTAN alegam que tal acordo não escrito jamais teria tido qualquer validade.

O problema dos que negam sua relevância é que essa proposta de limitar a expansão da OTAN não ficou restrita à conversa entre Baker e Gorbachev. O chanceler alemão Helmut Kohl disse a mesma coisa para Gorbachev, algumas semanas depois – se Moscou concordasse em sair da República Democrática da Alemanha e permitisse a reunificação, ‘a OTAN não poderia expandir seu território até o território atual da RDA’.[2]

Do mesmo modo, em 17 de maio de 1990, o chefe da OTAN, Manfred Wörner, afirmou que ‘o próprio fato’ de a aliança não almejar ‘a mobilização de tropas da OTAN para além do território da República Federativa [da Alemanha] dá à União Soviética sólidas garantias de segurança’.[3]

Como já sabemos, não foi isso o que aconteceu. Durante os anos 1990, em cada momento significativo das negociações sobre os novos acordos que viriam a governar a Europa – fossem eles sobre a unificação da Alemanha, a expansão da UE ou, é claro, da OTAN – Moscou foi pego de surpresa, ou então estava política e economicamente muito enfraquecido para resistir à vontade do Ocidente. A decisão desastrosa de Yeltsin de deflagrar uma guerra brutal com a Chechênia, em 1994, também não ajudou a Rússia.

Ela nunca obteve um limite formal de expansão da OTAN para o leste, sem contar o sério desafio da existência permanente de uma presença militar, liderada pelos Estados Unidos, no coração da Europa. E aqueles que, nas administrações Bush e Clinton, pressionavam por uma expansão da OTAN – incluindo Dick Cheney e autoridades seniores do Conselho de Segurança dos Estados Unidos – estavam em ascensão, em meados dos anos 1990.

À medida que ficava claro que as manifestações institucionais do Ocidente, incluindo OTAN e UE, não só se definiam pela expansão, mas também assim agiam em detrimento da Rússia, Yeltsin registrou publicamente sua raiva em um momento revelador, em dezembro de 1994. Ao discursar na abertura da reunião de cúpula da Conferência de Segurança e Cooperação na Europa (CSCE), que reuniu 52 nações em Budapeste, Yeltsin, sentado próximo ao presidente Clinton, acusou os governos ocidentais de excluírem a Rússia da nova ordem de segurança na Europa:

‘Nenhum país sério viveria isolado e qualquer país rejeitaria se submeter a esse jogo. Por que lançar as sementes da desconfiança? A Europa ainda não se libertou da herança da Guerra Fria [e] corre o risco de submergir em uma Paz Fria.’

Observadas à luz hostil do atual conflito na Ucrânia, estas são palavras reveladoras. Yeltsin expressou o ressentimento e a insegurança que muitos na Rússia sentiam, à medida que a Nova Ordem Mundial de Bush ganhava ares de ter sido construída em direta oposição à Rússia. Ele [Yeltsin] retomou esse tema em 10 de maio de 1995, durante uma reunião de 3 horas com Clinton, no Kremlin. ‘Não vejo nada além de humilhação para a Rússia, se você prosseguir [com a ampliação da OTAN]. Como você acha que entenderemos [a situação], se um bloco continuar a existir mesmo depois da extinção do Pacto de Varsóvia?’

Mas, como se verificou, os governos ocidentais, especialmente os Estados Unidos, realmente não se importaram com a forma como a Rússia veria essa Nova Ordem Mundial. Membros antigos da aliança soviética, Hungria, Polônia e República Tcheca ingressaram na OTAN em 1997, com Clinton simplesmente insistindo que ‘é a coisa certa a se fazer’.

Sob George W. Bush, os Estados Unidos continuaram a usar a OTAN para modelar uma Europa praticamente posicionada contra a Rússia. Os apelos malfeitos de Putin, para adesão da Rússia, foram repetidamente recebidos com indiferença; enquanto isso, os estados bálticos da Lituânia, Letônia e Estônia se tornavam membros da OTAN, em 2004.

E, em 2009, a Croácia e a Albânia também foram admitidas. Como Putin enfatizou em um discurso famoso, proferido em Munique, em 2007: “Temos o direito de perguntar: contra quem essa expansão se destina?’ Ele sabia a resposta. E [via] cada movimento expansionista, cada deslocamento de uma fronteira militarizada para mais perto da Rússia. E assim foram se assentando as bases para o atual conflito com a Ucrânia.

Não faltaram alertas para o disparate que era erigir uma Nova Ordem Mundial alinhada à Guerra Fria. Como explica Sarotte, logo no início dos anos 1990, o Departamento de Estado americano divulgou uma análise sobre a ‘Europa oriental e a OTAN’ repleta de presságios sombrios. A análise explicava que permitir a adesão de ex-aliados da Rússia à OTAN ‘não só pareceria predatório, mas poderia inclusive “levar à reversão das vigentes tendências positivas na Europa oriental e na USRR”’.[4]

Sete anos mais tarde, o obstinado diplomata americano George Kennan escreveu um artigo mordaz sobre a expansão da OTAN, no New York Times, classificando-a como ‘ o erro mais fatal da política americana em toda a era pós-Guerra Fria’. Ele alertou Clinton das perigosas consequências de tentar ‘expandir a OTAN até as fronteiras com a Rússia’.

Nesse momento, em meados dos anos 1990, mesmo os mais entusiásticos defensores da ampliação da OTAN recusaram a perspectiva de transformar a Ucrânia em um posto militar avançado da aliança ocidental. A Ucrânia tinha sido a segunda maior república soviética, depois da Rússia, e compartilhava muitos aspectos com ela, desde uma população majoritariamente eslava e a tradição Ortodoxa até vínculos familiares profundos. Tornar a Ucrânia – ‘que russos de todos os espectros políticos creem ser parte de seu próprio organismo político’, como afirmou o embaixador americano em Moscou, em 1991 – em um protetorado da OTAN e, portanto, escalar sua vizinhança decaída como potencial inimigo, era, à época, amplamente considerado uma estupidez diplomática grande demais.

Mas não durou muito. Em meados dos anos 1990, a política de relações exteriores dos governos ocidentais havia adquirido um aspecto profundamente problemático. O fim da Guerra Fria fora considerado uma vitória. Até mesmo uma fonte de triunfalismo. Mas isso tinha privado os governos ocidentais da ameaça internacional e doméstica – o comunismo – contra o qual se posicionavam e se defendiam. A política externa, personificada na OTAN, se tornava o meio pelo qual refundavam seus propósitos e objetivos. Isso ficou mais claramente demonstrado em 1994, quando os governos ocidentais intervieram na Bósnia. Os aviões-de-caça americanos, a serviço da OTAN, derrubaram quatro aviões sérvios em missão de bombardeio, que tinham violado uma zona de interdição de espaço aéreo da ONU – esta foi a primeira ação de combate na história da OTAN desde a sua fundação, em 1949. Esse evento foi considerado uma prova de que os governos ocidentais, por meio de ação militar, eram uma força do bem.

Desse ponto em diante, à medida que a ideia de intervenção humanitária se desenvolvia e dava à OTAN sua razão de existir, a expansão da OTAN conquistou uma lógica moral irresistível. A OTAN já não precisava se justificar alegando proteger um grupo limitado de nações contra uma ameaça definida e específica; podia justificar sua existência com o argumento de proteger um grupo de nações, que se expandia rapidamente, contra uma série de ameaças indefinidas e ilimitadas. Diretamente na fronteira russa.

Sem qualquer surpresa, considerando-se a ascensão do intervencionismo humanitário, qualquer mal-estar sobre agregar membros como a Ucrânia desapareceu nos anos 2000. A OTAN, segundo seus defensores, só era uma ameaça para os vilões, como o Talibã ou o Coronel Kadafi.

Em 2008, ofereceu-se à Ucrânia e à Georgia uma cadeira na OTAN. Foi uma decisão que efetivamente deflagrou uma guerra na Georgia e, juntamente com o flerte da UE em direção ao leste, alimentou tensões na Ucrânia que culminaram, em 2014, na invasão da Rússia na Crimeia e sua anexação. O conflito ressoou na Ucrânia desde então, culminando na decisão desesperada e ultrajante da Rússia de lançar uma invasão total.

A Nova Ordem Mundial dos anos 1990 prometia muito. Mas é difícil negar a impressão de que, embutidas na sua estruturação similar à Guerra Fria, estavam as sementes da crise atual. Havia uma chance de trazer a Rússia para o tabuleiro, em vez de isolá-la como um inimigo. E essa chance foi perdida.

*Tim Black é colunista da Spiked.

Notas:

[1] Not One Inch: America, Russia, and the Making of Post-Cold War Stalemate, por ME Sarotte, Yale University Press, 2022, p53

[2] Not One Inch: America, Russia, and the Making of Post-Cold War Stalemate, por ME Sarotte, Yale University Press, 2022, p92

[3] Not One Inch: America, Russia, and the Making of Post-Cold War Stalemate, por ME Sarotte, Yale University Press, 2022, pp130-131

[4] Not One Inch: America, Russia, and the Making of Post-Cold War Stalemate, por ME Sarotte, Yale University Press, 2022, p109

 

 

Traduzido por Telma Regina Matheus, para Vida Destra, 03/03/2022.                                  Faça uma cotação e contrate meus trabalhos através do e-mail  mtelmaregina@gmail.com ou Twitter @TRMatheus

 

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Telma Regina Matheus Jornalista. Redatora, revisora, copydesk, ghost writer & tradutora. Sem falsa modéstia, conquistei grau de excelência no que faço. Meus valores e princípios são inegociáveis. Amplas, gerais e irrestritas têm que ser as nossas liberdades individuais, que incluem liberdade de expressão e fala. Todo relativismo é autoritarismo fantasiado de “boas intenções”. E de bem-intencionados, o inferno está cheio. Faça uma cotação e contrate meus trabalhos através do e-mail: mtelmaregina@gmail.com ou Twitter @TRMatheus