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A Questão da Autonomia/Independência do Banco Central – Parte II

Prezado leitor, a primeira parte deste artigo pode ser lida aqui!

2.CONCEITUAÇÃO DE AUTONOMIA E DE INDEPENDÊNCIA DO BANCO CENTRAL

 

Até aqui temos tratado da atualidade da discussão em torno da autonomia/independência do banco central. Mas precisamos demarcar teoricamente o significado da autonomia/independência para que possamos avançar nessa discussão. É o que será feito a seguir.

Autonomia do Banco Central – Em um sentido mais restrito, que podemos denominar de autonomia, isso significa que a autoridade monetária, isto é, o banco central, não deve se subordinar às decisões de política fiscal, a cargo, por exemplo, do Ministério da Economia, para atingir seu objetivo de manutenção da estabilidade econômica, tendo liberdade quanto ao uso de instrumentos monetários. Assim, um banco central autônomo teria uma liberdade relativa, mas com a competência de dispor livremente dos meios que considerar adequados para atingir os objetivos e metas fixadas pelo governo (Executivo e/ou Legislativo), operando na coordenação de políticas econômicas temporalmente consistentes.

Independência do Banco Central – Já em um sentido amplo, a independência significa que o banco central pode e deve estabelecer medidas que sejam contrárias às determinações do governo central, se isso for realmente necessário para assegurar a preservação do valor real da moeda, mesmo que graves recessões na economia venham a ocorrer como resultado da política monetária rigorosa, que tem como meta reduzir a inflação, adotada pela autoridade monetária. Isso quer dizer que ao banco central independente não interessaria perseguir objetivos de natureza fiscal, cambial, comercial ou de pleno emprego, mas somente aqueles de caráter eminentemente monetário. Nesse sentido, o foco exclusivo do banco central é manter a estabilidade e o poder de compra da moeda, custe o que custar.

Pode parecer questão de mera nuance quanto à ênfase do grau de independência, mas os dois tipos de independência têm diferenças fundamentais. No primeiro caso, um banco central autônomo, quando age para manter a estabilidade da moeda, precisa manter um grau de coordenação com os governos centrais para perseguir as metas de redução da inflação. No segundo caso, um banco central independente não se subordina a qualquer tipo de coordenação com outras instâncias governamentais para atingir seus objetivos relacionados à preservação do poder de compra da moeda.

Embora esteja fora de questionamento a necessidade da existência de limites quanto à utilização de instrumentos monetários, ou de quaisquer outras naturezas, pelo banco central, é importante discutir quais são esses limites, o seu grau de extensão, e que tipo de política econômica deve prevalecer. A aceitação de limites pode ser vista como uma questão de disciplina, de planejamento e nesse sentido a autonomia da diretoria do banco central é totalmente defensável. Porém, desprezar sumariamente a interdependência dos diferentes tipos de políticas e focar apenas nos objetivos da política monetária, sem considerar as suas repercussões em variáveis reais como produto e emprego, é algo completamente diferente, tornando a tese passível de muitas críticas.

 

3.SUPORTE TEÓRICO E EMPÍRICO EM FAVOR DA AUTONOMIA/INDEPENDÊNCIA DO BANCO CENTRAL

 

O suporte teórico da autonomia/independência do banco central repousa principalmente nos conceitos de neutralidade e exogeneidade da moeda. No entanto, eles não são os únicos. Podem ser agregados outros, tais como o conceito liberal de auto regulação dos mercados financeiros, que prescindiriam da interferência estatal segundo essa perspectiva, até aqueles de caráter mais empíricos, como a crença de que a independência é necessária para isolar o banco central da interferência dos políticos, cujo comportamento seria demasiado flexível e condescendente em matéria de disciplina monetária. Nesse último caso, isso implica em que, principalmente em períodos eleitorais, surgem pressões, principalmente da classe política, sobre o banco central para que este venha a estimular o crescimento da economia, por meio da emissão de moeda, mesmo que esta postura tenha como consequência o aumento de preços.  Dentro dessa ótica, os governos sempre estariam dispostos a fazer pressões, sobre o banco central, no sentido de que este afrouxe as rédeas da política monetária, principalmente em época de eleição.

Essas proposições teóricas e empíricas, a favor e contra a autonomia/independência do banco central, são tratadas a seguir de modo separado, de acordo com sua evolução histórica no tempo.

3.1.Suporte teórico (I): exogeneidade e neutralidade da moeda. Esses fundamentos estão ligados a uma controvérsia de longa data quanto à concepção de moeda e da economia. Ele surgiu no século XIX e ficou conhecida como Banking School versus Currency School.  Essa controvérsia girava em torno do eixo da validade empírica dos postulados da Teoria Quantitativa da Moeda (TQM), entre eles a causalidade, proporcionalidade, neutralidade e exogeneidade da moeda. Os adeptos da Banking
School
eram críticos da TQM. Já os seguidores da Currency School eram seus defensores.

A TQM foi estabelecida com base na seguinte equação:

MV = PY

Onde M = Quantidade de moeda em circulação (meios de pagamento), V = Velocidade da moeda em circulação, P = Nível geral de preços e Y = Nível de produção real da economia.

A premissa fundamental da TQM diz que a velocidade de circulação da moeda seria relativamente constante. Assim, um aumento na quantidade de moeda (M) iria impactar apenas o nível geral de preços (P), causando inflação.

A causalidade da TQM estabelece que qualquer elevação de preços sempre tem como causa, ou origem, um correspondente aumento na circulação de moeda. Ou seja: um aumento na quantidade de moeda em circulação irá provocar um correspondente aumento no nível de preços. De modo implícito, como suporte para o postulado da causalidade existe a proposição da exogeneidade da moeda, isto é, a autoridade monetária tem total controle sobre a oferta monetária. Por outro lado, quando se admite a endogeneidade da moeda, esse controle estrito, pelo banco central, não seria possível, já que aumentos nominais de demanda, originados em aumento dos negócios ou dos preços, implicariam em correspondentes aumentos na oferta de moeda, mesmo sem a atuação da autoridade monetária, pois os agentes criariam novos instrumentos monetários alternativos. No entanto, a Teoria Quantitativa não admite essa inversão de causalidade, a saber, que aumentos de preços impliquem em correspondente aumento na oferta monetária, mas sim o contrário.

O postulado da proporcionalidade da moeda se baseia implicitamente na neutralidade da moeda. A proporcionalidade estabelece que um aumento na quantidade de moeda em circulação provoca um aumento proporcional nos preços. Já a neutralidade sustenta a tese de que a moeda, excluindo períodos transitórios de ajuste, não interfere nas variáveis reais, como produto e emprego. Para os quantitativistas, isto é, os defensores da Teoria Quantitativa da Moeda, as variáveis do produto e do emprego seriam afetadas por fatores não-monetários, tais como progresso tecnológico, dotação de fatores e taxa de substituição técnica entre fatores de produção (mão-de-obra, terra, máquinas, equipamentos, capital humano, etc). Assim, a moeda seria apenas um meio de troca. Metaforicamente, seria o sangue que faz circular a economia. A mudança de preços relativos poderia influenciar as quantidades e a alocação de recursos reais apenas no curto prazo. Entretanto, dada a transitoriedade desses efeitos, no longo prazo eles se diluiriam completamente. Aqui está implícito também que a velocidade de circulação ou velocidade-renda da moeda é constante, isto é, a demanda por moeda é estável, não estando sujeita a oscilações decorrentes de variação da oferta monetária. Esta, quando ocorrer, vai se traduzir apenas no aumento proporcional de preços.

É por isso que o conceito de taxa natural de desemprego está intrinsecamente ligado ao da neutralidade da moeda. Assim, a moeda não teria poder de geração de riqueza, podendo no máximo afetar a produção de forma temporária. Esses efeitos seriam dissolvidos ao longo do tempo e uma emissão monetária, pelo banco central, no final, redundaria apenas em aumento dos níveis de inflação.

Como corolário da Lei de Say, a qual diz que toda oferta cria sua própria demanda, a neutralidade da moeda implica em que o poder de compra não é criado nem destruído pela moeda através do crédito ou da dívida, que apenas provocam uma alocação intertemporal em benefício do consumo presente, às custas do consumo futuro. O poder de compra é derivado da produção, nunca da expansão monetária. Assim, se estabelece uma equivalência teórica entre taxa natural de desemprego e neutralidade da moeda, onde um aumento na circulação de moeda pode apenas afetar a produção somente no curto prazo.

Existem interpretações ainda mais restritivas quanto à neutralidade da moeda. A Escola de Expectativas Racionais, que tem o economista norte-americano Thomas Sargent, ganhador do Nobel de Economia em 2011, como um de seus maiores expoentes, sustenta que moeda é neutra inclusive no curto prazo. Essa proposição considera que os agentes têm informação perfeita e antecipam aumentos na oferta de moeda provocados por emissões do governo, simplesmente aumentando os preços. Dessa forma, variáveis reais, como produto e emprego, não sofrem influência do aumento da oferta monetária nem no curto prazo. Nessa perspectiva, o aumento da quantidade de moeda em circulação resulta apenas em aumento do nível de preços, isto é, em inflação.

Independentemente de a moeda ser neutra no curto ou no longo prazo, a essência dos postulados quantitativistas de causalidade e proporcionalidade reside na afirmação de que não adianta o banco central intervir na economia com o intuito de estimula-la através da expansão de moeda. Essa tentativa sempre será infrutífera, pois apenas resultará em aumento de preços e/ou no endividamento do país.

Segundo Rezende (2017), a Teoria Quantitativa da Moeda foi, lentamente, sendo abandonada a partir de meados da década de 1980.  De acordo com Rezende, os modelos macroeconômicos de Ciclos Reais de Negócios (em inglês Real Business Cycle – RBC), em que a moeda era variável chave, foram substituídos pelos mais modernos e avançados Modelos Dinâmicos Estocásticos de Equilíbrio Geral (em inglês Dynamic Stochastic General Equilibrium – DSGE), de inspiração Neokeynesiana, em que a variável taxa de juros substituiu a moeda, com base na premissa de neutralidade restrita, isto é, de que não afeta variáveis da economia real como produto ou emprego nem no curto ou no longo prazos.  Esses Modelos DGSE têm sido adotados nos últimos anos, pelos bancos centrais, para estabelecer suas políticas monetárias.

Continua no próximo artigo!

 

 

Lívio Oliveira, para Vida Destra, 22/02/2021.                                                            Sigam-me no Twitter! Vamos debater o assunto! @liviololiveira

 

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Lívio Luiz Soares de Oliveira. Economista, analista pesquisador, articulista do Vida Destra