Desde a criação do Estado moderno, diversas foram as teorias que procuraram explicar o que fundamenta o poder dos governos, isto é, a possibilidade deles de obrigar alguém a agir de determinada forma, ainda que a contragosto, com base na violência e ameaça de uma punição maior. Tamanha é a discussão que ela transcende o tempo, indo desde a antiguidade até os dias de hoje. Como a discussão é vasta, torna-se impossível que analisemos todas as teorias que buscam fundamentar o poder estatal ou governamental, portanto, vamos nos limitar a analisar, neste texto, as teorias de 3 autores: o contrato social, de Jean Jacques Rousseau, a teoria do socialismo, de Hans Hermann Hoppe, e a teoria da servidão voluntária, de Étienne de la Boétie. As teorias desses 3 autores são divergentes em suas conclusões, no entanto, concordam em alguns meios sobre o que é o poder estatal, como ele é exercido e por que nos submetemos a ele, que, embora seja coercitivo, muitas vezes nos curvamos voluntariamente por entender a necessidade de sua manutenção.
Para começar com Rousseau, temos que entender o contexto de sua obra: ele dizia que o homem, antes de conviver em sociedade, vivia no “estado de natureza”, isto é, um modo de vida em que não havia a propriedade privada e, por isso, estávamos em pleno contato com a natureza, buscando apenas a sobrevivência como seres bondosos. No entanto, determinadas condições, como o aumento da população, a ameaça de animais, os desastres naturais, levaram o homem a se organizar socialmente no “estado civil”, o que deu origem ao instituto da propriedade privada que, por sua vez, culminou na revolução neolítica, em que a agricultura fora descoberta: se antes, no estado de natureza, o homem caçava apenas pensando no que ia comer quando sentisse fome, agora, no estado civil, o homem pensava em cultivar alimentos através da agricultura, pensando em contornar os desafios impostos pela natureza para garantir a sobrevivência da espécie no longo prazo. Assim, quando o inverno chegasse, quando o solo estivesse desgastado de modo a não ser mais passível de plantio, ou quando os animais morressem de repente, vítimas de outros, o homem teria meios de garantir a sua sobrevivência e a de sua família através da agricultura e da propriedade privada.
Se a propriedade privada passou a existir, passou a ser necessário também protegê-la, afinal, se houvesse sua violação, o homem correria o risco de regredir ao estado de natureza e ficar submetido a todos aqueles males dos quais se livrara com o advento da propriedade. Foi para proteger a propriedade, então, que, através de um contrato social, os homens, organizados no estado civil, em sociedade, criaram a figura do Estado através de um contrato social, que é formado por dois pactos: o primeiro é o pacto de união, em que as pessoas que viviam no estado de natureza decidem se juntar e se tornar um povo, isto é, um conjunto de indivíduos unidos por um vínculo jurídico; e o segundo é o de sujeição, em que o povo constituído delibera sobre como vai ser o governo.
Assim, na teoria do contrato social de Jean Jacques Rousseau, o poder do governo está fundamentado em um único momento jurídico, em que as pessoas decidiram sair do estado de natureza e firmaram o pacto de sujeição, após firmarem o de união, criando as figuras do estado e do governo, que estariam fundamentadas no vínculo gerado por esses pactos. Essa teoria, no entanto, possui diversas falhas: a primeira é a de que o poder do governo foi consentido no primeiro momento jurídico em que nossos antepassados mais remotos decidiram criá-lo com o pacto de união; contudo, hoje não somos mais consultados se queremos tais modelos de governos ou de estado, o que impede ações como o separatismo, nos limitando a escolher quem será o governo, isto é, nos reduzindo ao pacto de sujeição. A segunda falha é sobre o momento em que esse contrato social seria assinado, que Rousseau não diz quando é: se for no nascimento, o contrato será inválido, visto que a criança não tem capacidade civil ativa para concordar e se submeter a essas regras, e se for durante a vida adulta, ninguém saberá o momento em que a referida adesão ocorre, aliás, se é que ocorre, visto que o contrato social está mais para uma ilusão do que para um fato; e o terceiro ponto comprova isso: ninguém seria louco o suficiente de assinar um contrato que dá à outra parte, isto é, ao Estado, o poder de definir quanto ele cobrará pelo seu serviço e qual será a quantidade ofertada. Pegue como exemplo a segurança pública: pagamos cada vez mais impostos, mas ela está cada vez pior. Se a segurança pública fosse tutelada de fato por um contrato com o Estado, quem seria louco a ponto de assiná-lo?
Por esses motivos, a teoria do contrato social de Rousseau não faz o menor sentido, posto que um contrato presume a aceitação explícita de duas partes capazes, que podem revogá-lo a qualquer momento. A teoria de Rousseau está mais para um ato social do que para um contrato social, porque toda a ideia de estado civil parte de uma imposição, não de uma adesão contratual.
Procurando uma abordagem diferente de Jean Jacques Rousseau – bem como de outros filósofos e cientistas políticos – o economista e filósofo Hans Hermann Hoppe traz outra perspectiva do fundamento do poder estatal: segundo Hoppe, um libertário, o estado é sinônimo de socialismo, e como todo socialismo é violento, o poder estatal está baseado na violência. Mas como assim o estado é socialismo? Em “Uma teoria do capitalismo e do socialismo”, Hans analisa os diversos tipos de socialismo que existem, sendo os principais o socialismo ao estilo russo, que é o marxista tradicional, e o socialismo da social democracia, o que a Europa vive hoje. Nesta análise, ele analisa o backbone da ideia do socialismo em si, isto é, qual é a ação realizada em uma sociedade que a torna socialista, e ele conclui que é a negação da propriedade privada. Com isso, no socialismo ao estilo russo, quase toda a propriedade privada é expropriada pelo governo e enviada a ele para que faça um programa de redistribuição, mas, no socialismo da social democracia, apenas uma parte de nossas propriedades, como nossos salários, são expropriadas pelo governo. Veja que há uma diferença não de categoria, mas apenas de grau entre o socialismo ao estilo russo e o social democrata, mas o que esses dois modelos socialistas têm em comum é que, em ambos, há a figura do estado cometendo expropriações de propriedades em algum grau, seja pequeno ou grande. Veja que não há uma diferença categórica entre os dois modelos socialistas, há apenas uma diferença de grau, já que, em ambos, há o confisco de propriedade, seja muita ou pouca. Por este motivo, Hoppe vai concluir que a teoria do Estado é o fundamento sociopsicológico do socialismo, já que, à medida que há Estado, há também alguma política socialista sendo colocada em prática com as violações de propriedade via impostos.
Além do mais, se o Estado impõe o socialismo em alguma medida, na visão de Hoppe, então ele vai precisar fazer isso de forma violenta, afinal, nem mesmo os socialistas gostam de viver sob a égide desse sistema. Por isso, então, na teoria hoppeana, o estado criará leis que lhe deem o poder de coagir as pessoas a obedecer e a entregar parte de sua propriedade, e se essas pessoas não obedecerem às ordens do estado, serão alvos de atos de violência e até de morte, caso resistam à ação policial.
A tese de Hans Hermann Hoppe faz mais sentido do que a de Rousseau no que tange à violência como fonte do poder estatal, tanto que até Mao Tsé Tung, o primeiro ditador comunista chinês, já reconheceu isso quando afirmou que “Todo o poder político vem do cano de uma arma. O partido comunista precisa comandar todas as armas, pois, desta maneira, nenhuma arma jamais poderá ser usada para comandar o partido”. Na verdade, não há muita inovação em concluir que uma das fontes do poder do estado são as armas e a violência, visto que elas são uma forma simples de coação. A inovação, portanto, seria em teorizar que a violência não é – ou pelo menos não pode ser, como argumentou Rousseau – a fonte do poder estatal. Diz o filósofo genebrino que: “A força não pode ser a fonte do poder do Direito, pois o mais forte (Estado) nunca é suficientemente forte para ser sempre assim, a não ser que transforme sua força em direito e a obediência em dever. A força é um poder físico, não imagino que moralidade possa resultar dos seus efeitos. Ceder à força constitui ato de necessidade, não de vontade, quando muito, ato de prudência. Ora, que direito será esse que perece quando se cessa a força? Se se impõe por obedecer pela força, não há a necessidade de se obedecer por dever, e se não for mais necessário obedecer, não se estará mais obrigado a fazê-lo. Convenhamos, pois, que a força não faz o direito e que só se é obrigado a obedecer aos poderes legítimos”.
Mas talvez nenhuma dessas duas teses – a de Rousseau e a de Hoppe – façam tanto sentido quanto a do filósofo francês Étienne de La Boétie, que vai trazer a tese da servidão voluntária, em que são misturados elementos das teorias de Rousseau, de Hoppe e de outros cientistas políticos. Segundo La Boétie, em qualquer Estado, é necessária a aprovação ou ao menos o consentimento de uma boa parte da opinião pública para exercer os poderes governamentais, dentre eles, o de violência. Escreve o filósofo:
Aquele que os domina tanto, na verdade, nada mais tem do que o poder que vocês lhe conferem para destruí-los. De onde ele tira tantos olhos com os quais os espia, a não ser que vocês os coloquem a serviço dele? Como ele possui tantas mãos para golpeá-los, a menos que as tenha tomado de vocês? Os pés com que ele esmaga as suas cidades, de quem ele os obtém, a não ser de vocês? Como ele tem algum poder sobre vocês, exceto através de vocês próprios? Como ele ousaria atacá-los e assaltá-los se não tivesse a colaboração de vocês? O que ele lhes poderia fazer se vocês não fossem os receptadores do ladrão que os saqueia, os cúmplices do assassino que os mata e os traidores de vocês mesmos? Vocês semeiam as suas plantações para que ele possa assolá-las; vocês enriquecem os seus lares com mobílias e afins para que ele possa pilhar os seus bens; vocês criam as suas filhas para que ele possa saciar a sua luxúria e o seu apetite carnal; vocês criam os seus filhos para que ele faça com eles o melhor que puder: levá-los às suas guerras, conduzi-los à carnificina, torná-los servos da sua avidez e instrumentos das suas vinganças; vocês entregam os seus corpos ao trabalho duro para que ele possa desfrutar as suas delícias e chafurdar em seus prazeres nojentos e vis; vocês se enfraquecem a fim de torná-lo mais forte e mais poderoso, possibilitando-lhe conseguir manter a rédea cada vez mais curta.
A teoria de Étienne de La Boétie encontra a de Hoppe no momento em que ambas concordam que o governo possui um poder de violência e encontra a de Rousseau quando entende que há um vínculo social que une todas as pessoas num único povo que se sujeita a um governo, o que acaba sendo o pacto de sujeição escrito com outras palavras. Contudo, a inovação de La Boétie está no fato da concordância de toda, ou de pelo menos a maioria da população se submeter ao governo, o que acaba trazendo a questão da importância da democracia à tona. Tanto é verdade que os processos de impeachment de presidentes da República só são aprovados se há grande clamor popular, porque, além de tudo, o impeachment causa um trauma na vida política da sociedade e não deve, por isso, ser utilizado de forma arbitrária. A tese de La Boétie pode ser vista também no processo de constitucionalização das monarquias europeias e até na queda delas: eventos como a assinatura da Carta Magna, Revolução Gloriosa, abdicação de Guilherme II na Alemanha, Revolução Francesa (que, embora não tenha acabado com a monarquia, de fato influenciou esse processo no futuro) e outros eventos sempre contaram com a chancela do povo, que entendia a necessidade do governo, mas que, nesses acontecimentos, entenderam que não valeria mais a pena se submeter ao pacto de sujeição firmado com o governante anterior.
Concluímos a partir das terias de Jean Jacques Rousseau, Hans Hermann Hoppe e Étienne de La Boétie que o poder do estado se manifesta de diferentes formas e, embora tenha diversas justificativas de sua fonte, a principal sempre será o povo, que se baseia na servidão voluntária por entender a necessidade do governo, mesmo quando este atende às expectativas de apenas uma parte da população. A tese de um grupo de pessoas unidas juridicamente em um vínculo para administrar o Estado – seja de forma ativa, seja passiva – está referendada no mantra “todo poder emana do povo”, que se mostra verdadeiro após a análise e as conclusões que obtivemos a partir da análise do que esses pensadores pensam sobre as fontes do poder do estado – que embora conte com meios para manipular e coagir as pessoas, como a ideologia, a propaganda e a violência – elas sempre terão a palavra final sobre qualquer governo; afinal, eles são instituídos para administrar pessoas, e se não há pessoas que, de forma passiva, aceitem ficar sob a égide do estado, isto é, na qualidade de governados, não há a necessidade do governo e sequer há poder governamental.
Vinicius Mariano, para Vida Destra, 25/04/2022.
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