Ontem, o Brasil viveu um dia de puro pânico nos mercados de capitais e financeiro. Várias notícias os agitaram, mas a principal delas é o coronavírus, claro.
E por que isso acontece? Vou tentar simplificar e explicar ao máximo. O artigo vai ficar um tanto longo, mas peço coragem dos leitores de enfrentá-lo até o final.
Hoje em dia, as cadeias produtivas e distribuidores de mercadorias no mundo estão integradas. Isso quer dizer, por exemplo, que o minério de ferro produzido no Brasil segue para a China, onde é transformado em aço, que por sua vez vai para a Coreia do Sul, onde é manufaturado em automóveis e esses automóveis depois vendido nos EUA e na Europa. Outro exemplo: o cobre produzido no Chile, o silício dos EUA e o alumínio produzido no Brasil seguem para a China, onde são manufaturados em placas de circuitos eletrônicos, que por sua vez são enviadas ao México ou de volta para o Brasil, para montagem de eletroeletrônicos, como televisores e celulares. Esse roteiro, em que cada país assume um pequeno trecho da cadeia econômica, é o desenho geral dos mercados internacionais, sendo que para cada mercadoria podem variar os atores, mas a produção de cada uma dessas mercadorias envolve a movimentação de insumos entre vários países.
Isso se torna mais entrelaçado ainda quando analisamos a produção do ponto de vista dos estoques. Há basicamente dois modos:
- O fordismo/taylorismo, em que as indústrias funcionam com estoque pleno, que garante uma produção durante períodos variáveis de 3 a 12 meses (“just in case”) ou
- O toyotismo, em que à medida que a empresa vai produzindo, ela vai adquirindo os insumos, fazendo encomendas na medida do necessário e das previsões de produção para o curto prazo, mantendo estoques zerados ou mínimos, que não suportam períodos maiores que 3 meses (“just in time”). Ora, para manter estoques altos, as empresas têm que gastar muito com espaço e logística de armazenamento, fica muito caro. Portanto, a maior parte das fábricas adotam o sistema “just in time”, hoje em dia.
Somando os dois fatores, vemos que a indústria dos anos 50 é muito diferente da indústria atual. Nos anos 50 cada indústria funcionava como uma unidade praticamente autônoma de produção, enquanto hoje é parte de uma imensa rede internacional, com a produção e distribuição de mercadorias e serviços pulverizadas entre vários países. Daí, se algum deles não consegue fazer frente a seus compromissos, a cadeia toda sente os efeitos do “default” (descumprimento de contratos).
Entretanto, em praticamente todas essas cadeias produtivas e distribuidoras, a China está em algum trecho, mais ou menos maior, dependendo do caso. Isso todo mundo já percebeu, ao pegar nas mãos um produto qualquer e ver marcado “Made In China”. Significa também que se a China parar de produzir, de comprar e vender no mercado internacional, um monte de cadeias produtivas e distribuidoras vão sentir, e vão sentir muito!
No caso específico das relações Brasil-China, pelas duas mãos do comércio internacional será muito forte o impacto.
No caso das exportações, diga-se que os principais produtos que o Brasil remete para a China são soja (30%), petróleo (24%) e minério de ferro (21%). Isso afeta três setores e empresas fundamentais da Economia Brasileira: Agronegócio, Petrobrás e Vale.
Pelo lado da importação, adquirimos da China uma gama imensa de eletroeletrônicos intermediários da China, isto é, materiais elétricos e eletrônicos que são insumos para a produção de celulares, televisores, máquinas de lavar, geladeiras, secadores, ventiladores, sanduicheiras, etc.
E até agora eu só falei do trânsito de capitais (mercadorias e serviços). A coisa toda está interligada com o setor financeiro.
Porque as empresas, hoje em dia e desde há muito tempo, usam uma pequena parcela de capital próprio para funcionar, mas a maior parte do capital que usam é financiado, e isso vai do curto (hot money, por exemplo) ao longo (concentrados no BNDES, aqui) prazos. Na China, não é diferente. Tanto para comprar insumos quanto para vender produtos, as empresas na China usam capital financeiro, isto é, empréstimos, que servem como garantia das transações ou adiantamento de pagamentos. Aliás, ontem (26/02/2.020), o Banco Central chinês realizou uma vídeo-conferência, para implantar apoio financeiro a médias, pequenas e microempresas, no intuito de retomar a atividade financeira, com a oferta de empréstimos para refinanciamentos, com juros de 2,5% a.a..
Ocorre que as empresas chinesas estão praticamente paradas por conta da epidemia do COVID-19, e milhões delas estarão à beira da falência, se os bancos, chineses ou internacionais, não concederem extensões para pagamentos dos empréstimos que tomaram ou que precisam para continuar funcionando, como capital de giro. No mínimo, as instituições financeiras (bancos) já sentiram o risco do coronavírus chinês, e vão querer subir os juros desses financiamentos, para concedê-los. Isso significa que os produtos chineses vão ficar mais caros, mundialmente – o mesmo que dizer que vão perder “market share” (fatias de mercado).
Agora vamos analisar a Bolsa de Valores. O quê que é isso? A maior parte dos brasileiros não sabe! Muitos pensam que a Bolsa é um imenso cassino, onde ricos ficam especulando. Mas não é isso.
Na verdade, a Bolsa é a maior fonte de capital e financiamento que as grandes e gigantes empresas podem conseguir, diretamente, de investidores que vão dos grandes (ricos) aos pequenos (classe média, ou até a classe pobre, em cotas). Todos investidores são bem vindos à Bolsa, não apenas os grandes!
Deixem-me explicar mais: uma empresa, ao chegar em determinado tamanho, deixa de se identificar com seus sócios-proprietários, e passa a ter um funcionamento quase autônomo. Nessa dimensão, ela pode então dividir seu capital social (seu valor de mercado, seu patrimônio físico e intelectual) em ações. Portanto, AÇÕES SÃO FRAÇÕES DO CAPITAL SOCIAL DE UMA EMPRESA, CHAMADA SOCIEDADE ANÔNIMA. Essas frações são títulos de propriedade de uma parte da empresa, para ressaltar bem, que o acionista compra. Assim, no momento em que uma empresa se transforma em S/A aberta e lança suas ações na Bolsa, ela se capitaliza, vendendo frações de seu capital social e usando o dinheiro assim obtido para a produção da mercadoria a que se propõe ou para a prestação de serviços que são seus objetivos como empresa (o famoso “objeto social da empresa”). O investidor que compra essas ações recebe de volta os dividendos, isto é, a divisão de uma parcela do lucro líquido da S/A.
Na Bolsa de Valores essas ações, como todos sabem, são intensamente compradas e vendidas, e seus preços variam de acordo com a oferta e procura. Se houver muita procura (compra), sobe o preço, mas se, pelo lado contrário, as pessoas ofertam muito (vendem), o preço das ações cai. Na somatória desses preços, o valor da empresa sobe ou cai, também!
O índice que mede a atividade da Bolsa de Valores é o Ibovespa, que é composto por uma média dos valores das S/A’s que operam na Bolsa, ponderados pelo tamanho dessas empresas. Assim sendo, os valores da Petrobrás e da Vale compõem boa parte do Ibovespa.
Quando o mercado está em um ciclo virtuoso, em que as S/A’s se valorizam, o Ibovespa sobe. Isso significa que há uma alta confiança do mercado que essas empresas estão crescendo, e a percepção de risco cai. Quando o mercado vê uma situação de risco, ou crê que as S/A’s vão se desvalorizar, fogem da Bolsa, e vão para “ativos seguros”, como o ouro e, principalmente, o dólar, e este é preferido porque tem alta liquidez, isto é, é facilmente vendido. Então uma lógica de um mercado é: se o Ibovespa sobe, o dólar cai. Se o Ibovespa cai, o dólar sobe.
É exatamente o que está acontecendo, no mundo todo! Ontem (26/02), por exemplo, o índice Nikkei (Japão) caiu -0,79%, o Kospi (Coreia do Sul) caiu -1,28% e o Hang Seng (Hong Kong), -0,73%. E já vêm assim há semanas, caindo um tanto, todo dia.
Desde o início do surto do coronavírus, o Ibovespa tem variado de acordo com a percepção dos investidores a respeito da evolução da epidemia. Quanto maior o número de doentes, quantos mais países forem afetados ou mais longo for o período de crescimento do surto, maior será a percepção de risco dos investidores que, sabendo que a China está com dificuldades de comprar e vender, não vão investir nas empresas que compram e vendem da China, também. Com isso, todas as Bolsas de Valores do mundo estão caindo.
E a coisa piorou ainda mais, aqui, quando houve a notícia de que o COVID-19 chegou ao Brasil! Foi um grande golpe, que o mercado ainda não assimilou completamente, diga-se de passagem. A China ter problemas para produzir já estava sendo precificado pelo mercado. Mas se essa dificuldade de produção partir também daqui, as duas pontas de uma imensa cadeia econômica ficarão afetadas, e isso é o prenúncio de uma recessão (queda da atividade econômica) no comércio (imenso) entre Brasil e China. Vejam o gráfico:
Por conta disso, as quedas nos valores das ações das empresas que estão envolvidas no comércio com a China despencaram, ontem. E estou falando, sim, de Petrobrás e Vale! No caso da Petrobrás, as ações ordinárias (que dão direito a voto, PbON), caíram -9,95%, e as preferenciais (que não dão direito a voto, mas a dividendos 10% maiores que os da PbON) caíram 10,05%. Com isso, pelos mecanismos que eu expliquei acima, a Petrobrás perdeu valor de mercado, – R$ 39,2 bilhões. No caso da Vale (ações ordinárias), a queda foi de -9,54%, e a queda de valor de mercado foi na ordem de R$ 25,2 bilhões. Isso fez com que o índice Bovespa caísse -7%. Por pouco, não houve o “circuit breaker” na Bolsa, “dispositivo de segurança” que, no caso de uma queda abrupta na ordem de 5% a menor que o fechamento do dia anterior, pára o funcionamento da Bolsa por 30 minutos. Só não aconteceu porque a queda na abertura foi abrupta, mas não chegou a -5%, e depois ao longo da tarde, foi caindo gradativamente. Vejam a imagem do índice Bovespa nos últimos cinco dia, sendo que a seta vermelha aponta o efeito “coronavírus no Brasil”
Na outra ponta, os investidores correram para o dólar. A demanda pela moeda norte-americana também tem sido intensa nos últimos dias, mas ontem, justamente por conta da notícia do coronavírus no Brasil, disparou +1,37%. Vejam mais um gráfico, agora do dólar, que saltou de R$ 4,39 para R$ 4,45, também indicada na imagem o efeito “coronavírus no Brasil” com uma seta vermelha:
Claro que o noticiário brasileiro também contribuiu para o mau-humor dos investidores. Pode-se aliar ao “efeito coronavírus no Brasil” a queda dos juros reais no Brasil, que acabaram com o “carry-trade” aqui (tema explicado com maestria em um excelente artigo do Silveirado, https://vidadestra.org/moeda-forte-e-mudanca-estrutural/), além das instabilidade que jornalistas irresponsáveis, um STF político e não jurídico, além de um Congresso em pânico estão causando. Mas 90% dessa disparada do dólar é devida ao coronavírus, não tenham dúvida!
Os próximos dias serão tensos, adianto, porque ainda há mais casos suspeitos do coronavírus a serem confirmados, ou não. Isso ainda vai dar muito pano para a manga, infelizmente.
Fábio Talhari, para Vida Destra, 27/02/2.020.
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Olá Fábio.
Para uma leiga, como eu no assunto ficou clara a dinâmica comercial
internacional, os negativos desdobramentos na Bolsa. Esperamos q a epidemia seja passageira e q todos tenhamos boa saude,
física e financeira.
Parabéns Fábio Talhari você traz me trouxe entendimento com esse artigo .
Esclarecedor Fábio, parabéns pelo artigo.
Muito bom.
Sem rodeio e palavras difíceis. Agora entendi várias coisas que sempre me pareceram impossíveis. Parabens
Muito bem explicado.