Jane Eyre é a personagem principal do romance de mesmo nome, da escritora inglesa <strong>Charlotte Brontë</strong>. Nele, a protagonista, uma órfã, depois de uma infância triste e difícil, em um orfanato muito mal administrado, após concluir seus estudos, resolve trabalhar como preceptora para uma família um pouco diferente das outras. Por que essa menção? Porque neste artigo vamos falar do ensino domiciliar: os preceptores de outrora eram os profissionais que realizavam essa atividade. Também porque é uma boa dica para quem gosta de ler. Para quem prefere filmes, vários foram feitos baseados nessa obra.
Em uma pesquisa rápida sobre o tema, verificamos que vários países adotam o ensino domiciliar, que, em inglês, é chamado “homeschooling”. Entre eles, por exemplo: Portugal, Suécia, Dinamarca, Itália, Noruega, Finlândia, Reino Unido e Estados Unidos. Estes três últimos são destaque nesta análise.
Sobre a Finlândia, há interessante matéria publicada na Gazeta do Povo, intitulada “Finlândia: o país da melhor educação do mundo aplica na escola princípios do Homeschooling”, de Dirceu Prado. Aprendemos que esse país é admirado por muitos justamente por apresentar excelentes resultados na educação. Segundo o autor, além de adotar esse modelo educacional, os finlandeses aplicam “na escola pública alguns princípios e metodologias que são utilizados com grande êxito na Educação Domiciliar”. Outros pontos que são abordados por Prado nos revelam que a Finlândia também optou por ações que valorizam o pensamento criativo e a importância de um ambiente favorável ao aprendizado (neste momento, eu choro só de pensar em como está, atualmente, o ambiente em nossas escolas). Já de início, com esse exemplo da Finlândia, começamos a notar como são bons os frutos colhidos pelos cidadãos que possuem este direito garantido: o direito de ensinar seus filhos em casa.
Em relação ao Reino Unido, esta pesquisa partiu do site gov.uk, procurando se colocar, hipoteticamente, no lugar de um britânico que tenha interesse em educar seu filho em casa, mas que ainda não sabe como o sistema funciona. “Educating your child at home” (educando seu filho em casa) traz de forma bem simples como os pais devem proceder e o que o Estado espera deles. Por exemplo, o período de ensino em casa poderá ser integral ou parcial, por uma opção dos pais. Outro detalhe: o aluno tem que receber educação integral a partir dos cinco anos de idade, mas não precisa seguir o currículo nacional. Também é importante mencionar que há um conselho local (“local council”) que presta a ajuda necessária aos pais e alunos. Nessas horas, bate uma “invejinha boa” dos cidadãos britânicos, que possuem a liberdade de escolha em temas tão fundamentais na vida de qualquer um.
Para saber como funciona o “homeschooling” nos Estados Unidos, selecionamos o artigo intitulado “A review of research on Homeschooling and what might educators learn?” (“Uma revisão da pesquisa sobre ensino domiciliar e o que os educadores podem aprender?”), de Brian Ray, para servir de base aos nossos argumentos, pois traz de forma completa várias pesquisas com os alunos que receberam sua educação nessa modalidade.
Logo de início, verificamos que o “homeschooling” está experimentando um renascimento em muitos países. Por exemplo, nos EUA, a quantidade de alunos educados em casa, que era de 13.000 na década de 1970, saltou para 2,2 milhões em 2015. Um número bem expressivo. Além disso, numerosos estudos de diversos pesquisadores, nos últimos 30 anos, examinaram o desempenho acadêmico desses estudantes, com resultados realmente fantásticos. Os educados em casa têm notas, em média, de 65 a 80, nos testes padronizados de desempenho acadêmico, ao passo que os alunos de escola pública alcançam, em média, nota 50.
Sobre a socialização dos filhos, tema sempre presente nos debates sobre o ensino domiciliar, várias pesquisas baseadas em métodos psicológicos concluíram que os estudantes do ensino domiciliar se desenvolvem tão bem quanto, ou até melhor, que os alunos das escolas institucionais. Nenhuma pesquisa até o momento apresentou resultado diverso a este, mas, por outro lado, alunos com comportamento mais problemático estavam entre os frequentadores das escolas do modelo presencial.
Quando atingem a fase adulta, esses estudantes do ensino domiciliar apresentam porcentagens superiores às da média da população geral, em relação a cursos de nível superior, livros lidos, participação em serviços comunitários, comportamento cívico-social. O autor conclui a sua análise: “Trinta anos de pesquisa nos Estados Unidos, Canadá e outras nações mostram consistentemente que, em média, as crianças educadas em casa têm desempenho acima da média em termos de desempenho acadêmico. Eles têm sólidas habilidades sociais e estão firmemente engajados na vida social de suas comunidades. Como adultos, eles se saem bem, em média, em faculdades/universidades, são engajados civilmente e são respeitosos e tolerantes com aqueles que têm diferentes perspectivas filosóficas e políticas”.
Para completar a minha busca por subsídios que nos esclareçam como funciona o ensino domiciliar, fui além. Como conheço uma brasileira, Cida, que mora nos EUA desde 1985 e que adota o “homeschooling” para educar os seus dois belos filhos Rohan e Arun. Pensei que seria melhor dar a ela o poder da palavra, para que nos conte a realidade dos fatos por quem vive pessoalmente essa experiência.
Vida Destra: Seus filhos, desde o início, estudaram com você, em casa?
Cida: O Rohan começou depois que terminou o segundo ano, e o Arun, depois do primeiro ano.
Vida Destra: Por que você optou pelo “homeschooling”?
Cida: Primeiro, porque eu tinha esta opção; segundo, porque cada criança tem um grau de inteligência diferente e de aprendizagem também. Em uma escola normal ou regular, há padrões que impedem a criança de seguir o seu próprio ritmo. E assim, alguns têm sempre que esperar pelos outros alunos que tenham capacidades diferentes, em ritmos diferentes. Isso pode atrasar os estudos e fazer com que algumas crianças se desanimem e fiquem aborrecidas. Não digo aqui que meus filhos se sentissem limitados, apenas é algo que pode acontecer.
Vida Destra: Como funciona nos EUA o ensino domiciliar, o que os pais precisam fazer quando vão começar o ensino dos filhos?
Cida: Aqui, isso depende de cada Estado e às vezes, de cada cidade. Em Nova York, os pais escrevem uma carta ao “Homeschool Office de NY”, em que demonstram a intenção de conduzir o estudo domiciliar. Nessa carta (que, aliás, é muito simples), o interessado escreve as informações do aluno: nome, idade, grau e o ano em que os pais planejam dar as aulas aos filhos. Geralmente, essa carta é enviada ao escritório dois meses antes do início das aulas. A sugestão é que seja enviada em 1º de julho, e aqui o ano escolar começa no início de setembro. Agora, acaso os pais queiram retirar seus filhos da escola no meio do ano ou em qualquer tempo e começar o ensino domiciliar, poderá enviar a referida carta a qualquer momento. Aqui podemos iniciar o “homeschooling” em qualquer mês do ano. Depois do pontapé inicial, eles, funcionários do escritório, enviam aos pais um pacote com informações, regras, listas de escolas para o “passing test” (um teste de conhecimento), datas, calendários e questionário. Os pais devolvem o material com as informações solicitadas e o seu plano de ensino, ou seja, o currículo especificando todo o programa para o ano. Depois, eles revisam esse material, e, se seu plano for compatível com o do Estado, eles aprovam o seu pedido e enviam um número de identificação para o estudante (“student ID”).
Vida Destra: Você precisa necessariamente seguir a grade curricular das escolas?
Cida: Não, os meus filhos fizeram, em alguns anos, dois graus de cada vez. Vai depender da capacidade e do ritmo de cada criança. Eu optei por um currículo em que algumas matérias como o Inglês e a Matemática foram bem ao nível das escolas de NY.
Vida Destra: Seus filhos fazem provas anuais, semestrais, mensais?
Cida: Não há um limite, porque, em algumas matérias, depois de cada lição, há uma pequena prova. No fim do ano, ou depois de completar o currículo, há uma prova final. Nesta, eu decido se vou passá-los para o próximo grau. Essa prova é fornecida por uma das escolas na lista que o governo de NY envia aos pais, com toda aquela papelada de que falei. A escolha é dos pais, e eles têm a opção de fazer também a prova com as escolas normais públicas, durante o período de provas finais.
Vida Destra: Como você resolveu a possível carência de socialização de seus filhos? Sentiu que havia necessidade de outras atividades para colocá-los em contato com outras crianças?
Cida: Sim, a socialização é definitivamente importante, porque é uma necessidade inata. Por isso, existem vários grupos para os estudantes domiciliares. São grupos formados pelos próprios pais, que organizam atividades curriculares como: artes, música, futebol, natação, etc; e, ainda, visitas a museus, zoológicos, bibliotecas, etc. Esses grupos são muito bem organizados e a participação é gratuita.
Vida Destra: Como seus filhos se saem nos exames?
Cida: Eles sempre se saíram bem. Menos estresse, menos pressão, menos competição, tudo isso faz com que meus filhos fiquem mais relaxados e confiantes.
Vida Destra: Já teve alguma dificuldade em relação ao ensino em casa?
Cida: Sim, distrações. Mas, com a minha experiência, posso dizer que os pais devem ser firmes. Façam um horário (“schedule”) e mantenha esse horário. Não abram mão disso, a menos por motivo de doença. Se houver estresse, é bom que se tire umas férias.
Vida Destra: Você trabalha? Como se organizou para realizar essa tarefa?
Cida: Felizmente, não trabalho. Meu esposo e eu decidimos simplificar e dar ênfase a nossos filhos. Nós fizemos o seguinte horário: Segunda, quarta, quinta e sexta, meus filhos estudam das 9 da manhã às 4 da tarde, com 10 min para relaxar; 30 min para o almoço; e 30 min educação extracurricular, como música e idioma. Depois da escola, estão livres para jogar futebol no parque com as crianças do bairro.
Vida Destra: Alguma vez, algum de seus filhos já lamentou por não ir à escola?
Cida: Nunca.
Vida Destra: Existe a possibilidade de o Estado intervir e retirar esse direito dos pais?
Cida: Nova York é um estado muito independente, não acho que seja possível. Quando comecei a estudar com meus filhos, em 2012, mais de 30 mil crianças, só em NY, estavam estudando em casa. E hoje uma das melhores escolas que existem aqui é uma escola domiciliar on-line.
Vida Destra: Você saberia dizer se esta é uma prática comum aos norte-americanos?
Cida: Muito comum. Aqui, no Estado de Nova Jérsei, onde moro atualmente, os pais nem precisam pedir permissão ao Estado.
Vida Destra: Você precisou contratar professor particular alguma vez? É caro?
Cida: Não, nunca, mas sei que aqui essa contratação é cara.
Vida Destra: Algum de seus filhos já completou os estudos? Pretendem cursar nível superior?
Cida: Meu filho de 14 anos está no grau 11, em dezembro deste ano, ele começa o grau 12, que é o último ano. Como ele é muito jovem para universidades, vai fazer alguns cursos e adquirir alguns certificados (são os planos dele). Meu filho de 13 anos vai terminar o grau 9 em novembro agora. Sobre nível superior, não decidimos ainda, isso vai depender do interesse deles.
Vida Destra: Se você morasse no Brasil, os seus filhos não poderiam estudar em casa com você, porque ainda não há uma lei que regulamente o ensino domiciliar. Sobre isso, saberia expressar qual seria o seu sentimento?
Cida: Seria uma pena, porque nossos filhos têm muita capacidade, e, ainda, temos que ter em mente o valor de um cérebro jovem, se não se fizer bom uso dele, poderá ser lamentável no futuro.
Voltando ao nosso Brasil, até o início do século XX, muitas crianças iniciavam seus estudos com preceptores. Aprendiam a ler e escrever; estudavam matemática; alguns aprendiam outras línguas, como o francês e o inglês; etc. Mas, no presente, segundo o que foi veiculado pelo Consultor Jurídico, o “ensino domiciliar só pode ser autorizado por lei específica”. Isso foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 888815, em que prevaleceu a máxima de que “o ensino domiciliar não está previsto na Constituição Federal e depende de lei específica para ser permitido no Brasil”.
A Constituição Federal, em seu artigo 205, determina: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Muito bom, mas é essa a descrição de educação que estamos vendo na prática, principalmente nas escolas públicas de todo o País, nos últimos anos? Parece-me que não.
Porém, há uma luz no fim do túnel. Segundo matéria publicada no R7, no dia 16 deste mês, intitulada “Entenda o ‘homeschooling’, projeto que pode ser aprovado neste ano”, a Ministra Damares Alves, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, acredita que o PL 2.401/2019, encaminhado ao Congresso em abril deste ano, será aprovado até novembro. De acordo com o texto do projeto, é “assegurada a isonomia de direitos entre os estudantes em educação escolar e os estudantes em educação domiciliar”. Agora, sim! Por outro lado, devemos ter, em nossas mentes e em nossos corações, que projetos em tramitação nas Casas do Congresso Nacional dependem (adivinhem de quem?) de nossos parlamentares. Então, aqueles que, como eu, acreditam no ensino domiciliar (“homeschooling”) pressionem seus deputados e senadores para que o aprovem o mais breve possível.
Nesse sentido, vai aí uma dica preciosa: haverá audiência pública para tratar desse assunto, no dia 15 de outubro, Dia do Professor, às 14 horas. As pessoas poderão participar pelas redes sociais, pela TV Senado, ou pessoalmente, comparecendo ao Senado Federal.
É nosso direito ter liberdade de escolhas que não prejudiquem a mais ninguém, portanto, essa liberdade não pode ser considerada um crime, nem cerceada. O Estado não pode agir contra os seus cidadãos. Isso jamais será correto em uma sociedade saudável.
Gogol, para Vida Destra, 23/09/2019.