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O INJUSTO JUSTIFICADO

 

Em uma república fictícia, ao sul do Equador, que vamos chamar de Pindorama, em uma manhã de segunda-feira, em pleno dia útil, verifica-se uma movimentação estranha.

Partindo de diversos pontos do território daquele país, começaram a ser formar caravanas em direção à capital. Eram os chamados movimentos sociais, aquelas pessoas que lutavam pelos direitos humanos, democracia e igualdade, que tinham uma finalidade tão nobre, que quaisquer meios foram considerados válidos para atingir tão elevado objetivo.

Assim, de sindicatos urbanos, sindicatos rurais, de movimentos estudantis e de movimentos despojados de terra, de aldeias indígenas, foram se formando grupos, uns pequenos, outros maiores, de pessoas nobres, que encetavam a viagem.

Para sua própria segurança e defesa, tais caravanas contaram com pessoal de segurança, quiçá algumas armas, brancas e/ou de fogo, bem como artefatos diversos para cozinhar ao longo da viagem, como pedaços de paus, pregos, gasolina, querosene, panos e garrafas de vidro vazias. Também apetrechos para formação de um acampamento transitório, como pedaços de pano, algodão, bolinhas de gude para as crianças se divertirem, pregos, e comida, como batatas, das quais muitas foram utilizadas pelas crianças, para fazer bichinhos de brinquedo, atravessando-se nelas os pregos.

Algumas pessoas de Pindorama, assim que souberam de tão estupenda movimentação, se perguntaram de onde vieram os recursos para tanto. Porém, essas pessoas, partícipes do mais nobre e elevado movimento daquele país, nunca declaravam a origem do dinheiro que os sustentava, o que fez com que gente mal-intencionada chegasse a supor que fossem de origens corruptas. Mas, mesmo se fossem, tudo estaria justificado pela altivez de propósitos daqueles movimentos legítimos e democráticos.

Também causou estranheza o fato de haver-se reunido tanta gente sem que ninguém soubesse disso, antes. Não houvera convocação, anúncios por TVs ou rádios, nem pela internet. Os heróis do povo tinham bastante poder de mobilização, e não usaram nenhum meio de telecomunicações público, combinaram entre si essa grande movimentação, na surdina!

Chegando até a cidade, contaram-se os indivíduos, e a somatória era grande. As multidões cercaram a Praça Tryon Dynameon, onde ficavam o Nomothetiko Synedrio (órgão que fazia as leis) e o Omospondiako Anotato Dikastirio (órgão judiciário), que para o leitor, desconhecedor da língua que se fala em Pindorama, vamos abreviar para NS e OAD. Havia realmente muita gente, tantos que houve a possibilidade, imagine o leitor, de que vândalos se infiltrassem entre eles! E esses indivíduos isolados começaram a fazer baderna, coisas realmente reprováveis, como destruir patrimônio público e privado, atear fogo a prédios, lojas e escritórios. Somente a muito custo, as forças policiais e do Exército de Pindorama conseguiram conter tais vândalos, porque as desavisadas crianças que viajavam com o grupo dos heróis dos movimentos sociais jogavam bolinhas de gude exatamente sob as patas dos cavalos, e os bichinhos de batatas foram parar embaixo dos pneus das viaturas da polícia, do exército e até dos bombeiros, que tentavam combater os focos de incêndio.

A grande reivindicação daquela grande massa de heróis, de representantes da verdadeira democracia e do povo, era a libertação de Kalamaris, um ex-presidente que fora condenado e preso por corrupção. Mas essa condenação se dera de forma injusta, na verdade ele era um preso político, segundo todos os heróis do povo sabiam. Mesmo que a sentença condenatória dada pelo primeiro juiz, Francisko Zo, houvesse sido confirmada, de forma unânime, no Tribunal de 2º e de 3º graus em Pindorama, todos sabiam que Zo somente fez aquilo porque pretendia um cargo político, no governo do presidente que fora eleito e que ocupava o mandato, naquele momento.

Aliás, essa era outra história que eles não conseguiam engolir: o presidente Tsepi somente fora eleito porque enganara a população, na verdade, ele era um homem horrível, que não gostava das minorias e não gostava do povo, um machista da pior espécie! E justamente, o presidente Tsepi fizera de Zo (aquele juiz injusto, ladrão!) o Ministro da Justiça, para escândalo da nação. O antigo presidente, Kalamaris, era um homem honesto, e vivia dizendo que era um homem honesto! Zo nunca dissera que era um homem honesto, portanto, não o poderia ser!

Àquele movimento dos heróis do povo, juntaram-se uma parte do NS, os políticos, senadores e deputados, que tinham com eles afinidades ideológicas. Mas as grandes esperanças estavam depositadas no OAD, no órgão judiciário. Porque exatamente naquele dia, estava sendo julgado um recurso em prol de Kalamaris, pedindo sua liberdade, por causa da desonestidade de Zo, que havia combinado e tramado com outros trabalhadores da Justiça e do Eisangelea (o órgão que acusa os criminosos, na Justiça de Pindorama) a asquerosa condenação de Kalamaris.

Esses juízes do OAD estavam acima da opinião pública. Seus cargos eram vitalícios, não foram colocados lá pelo voto popular. Eles podiam abrir inquéritos, fazer investigações, relatar esses inquéritos, fazer e aceitar denúncias, abrindo processos, que eles mesmos julgavam, sem possibilidade de recurso. E não só: por determinação deles mesmos, nenhum outro órgão público ou privado de Pindorama poderia investiga-los, nem a seus familiares.

Os juízes do OAD se reuniram, então. Muitos deles tinham sido indicados por Kalamaris, ou por uma sucessora de Kalamaris. Ficaram sensibilizados pela reunião de tantos e tão enfáticos heróis, e enojados com a óbvia e ululante desonestidade do Juiz Zo, então consideraram que sim, Kalamaris era inocente, o processo que o condenara fora viciado pela parcialidade e dolo de Zo! Por isso, o processo foi anulado!

A multidão de heróis do povo, enlouquecida, exagerou um tanto nas comemorações, é bem verdade. Mas tendo de volta seu ídolo, Kalamaris, dentre eles, e sendo achincalhado o Ministro Zo (como deveria ser! Humilhado!), eles imediatamente pediram a deposição do horrível presidente Tsepi. Diante de tantos e tão acalorados heróis, em júbilo pela conquista de seus objetivos, a multidão acorreu ao NS, onde pediu aos políticos, deputados e senadores, a destituição imediata de Tsepi. E que também foi concedida!

Infelizmente, dentre o restante da população de Pindorama, havia pessoas que não eram do povo – eram os bourzouais, gente mesquinha e má, que não queria dividir o que tinham com os outros. Por causa disso, a todos esses maus bourzoauais foi oferecido um bom paredão, onde foram colocados frente a uma boa espingarda, com uma boa bala, e oferecidos depois uma boa pá e uma boa cova. Foi verdade também que eram muitos, talvez tantos quantos havia de bons homens e heróis do povo, algumas más línguas chegaram a dizer que havia mais, porque foi necessário usar facas, machados e enxadas para as execuções, já que acabaram as balas e espingardas logos depois da quarta ou quinta rodada de fuzilamentos. Mas deu tudo certo, no final!

Pindorama viveu feliz por milênios, em um paraíso de igualdade e boa-fé entre os homens!

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