Prometi publicar este artigo faz uns dez dias. Há pelo menos 3 fatores que fizeram com que a escrita fosse postergada: o meu interesse cada vez menor na política, os estudos e a insistência em dar uma segunda chance à pessoa em questão. Talvez aí ainda exista um quarto fator: a relutância em aceitar que, em menos de um mês, possamos ser traídos por parte da tripulação que foi escolhida para levar o Brasil a um novo mundo.
Confesso que não gosto de denominar Bolsonaro um político de direita. Constante na trajetória do atual presidente sempre foi a defesa dos valores conservadores; a visão menos estatista surgiu faz pouco tempo e por influência de seus filhos. A candidatura de Jair Bolsonaro se tornou efetivamente de direita quando Paulo Guedes foi apontado como a grande cabeça do liberalismo em um futuro governo. Ou seja, foi a união de um político conservador extremamente popular com uma cabeça econômica liberal devidamente respeitada que determinou a vitória da direita nas eleições presidenciais de 2018.
Muitos acreditavam que a escolha do vice poderia ter grande influência na sorte da candidatura. Nomes como o de Janaína Paschoal e do Príncipe Luiz Philippe fizeram parte das especulações. Há de se notar que Janaína acrescentaria uma credibilidade extraordinária enquanto que o príncipe reforçaria o papel do liberalismo e do comprometimento com o legado monarquista. Porém o nome escolhido foi o de Mourão, que chegou a atrapalhar durante as eleições com declarações infelizes e reforçou a narrativa de retorno dos militares após o “golpe“. Ou seja, Bolsonaro nada ganhou ao escolher como vice o general Mourão.
Janeiro trouxe a emoção da posse, o calor de denúncias pífias feitas contra o filho Flávio e de outros factóides tornados pela grande mídia princípios de crise, além da famigerada visita de deputados do PSL à China. Um começo difícil que exigiu de Bolsonaro energia, a energia que falta ao corpo ainda em recuperação dos problemas gerados pelo atentado contra a sua vida. E o que acontece quando o presidente precisa fazer a cirurgia que o deixará saudável e descansar? Uma pressa injustificada em despachar do leito hospitalar e uma quantidade incrível de eventos e entrevistas envolvendo o vice.
Estes fatos formariam uma coleção peculiar em qualquer contexto, mas se tornam compreensíveis quando verificamos as atitudes e declarações de Mourão. Em um espaço de tempo muito curto, ele acena para a imprensa como se estivesse lidando com um adversário leal ou um aliado, mostra-se a favor de liberar Lula para fazer do enterro do irmão um palanque político contra o governo – e talvez até reforçar sua candidatura inacreditável ao Nobel da Paz – e propõe criar uma corredor de fuga ao ditador genocida Nicolás Maduro. Isto bastou para que análises equivocadas envolvendo militares e maçons surgissem; e todas erram por utilizar metonímias, já que não seriam todos os militares nem todos os maçons que fariam parte da conspiração contra o presidente eleito.
A esta altura, já havia ficado mais do que claro para este analista político que Mourão passa por um processo de Glasnost (o ato de polir a imagem de um político, como explica Pacepa). Mas o golpe final que deixou evidente a intenção do general foi sua declaração a respeito do aborto tratando o assunto como um caso de saúde pública e decisão da mulher. Aqui, começo a duvidar da inteligência do homem em questão; primeiro, por responder utilizando chavões que qualquer conservador é capaz de rebater; e segundo porque o ato tem o efeito de desvelar completamente a tática do militar.
Não existe em qualquer compêndio de estratégia de um grande homem e militar (sim, as duas dimensões são importantes) a tática de negociar valores ou fingir abrir mão deles perante a tropa que o obedece e respeita. O ato é inaceitável e injustificável, e tem um efeito moral pernicioso duradouro caso seja bem sucedido. A postura de Leônidas antes da Batalha das Termópilas ou de Winston Churchill antes da Segunda Grande Guerra deveria ser suficiente para ensinar o general e político. Entretanto, em um só golpe o vice se torna uma alternativa progressista e antagonista do presidente conservador mais popular da história do Brasil no primeiro mês de seu governo e quando este está combalido. Um golpe de traição e covardia.
Não há estatística de intenção de voto do general porque ele nunca chamou a atenção; mas se sabe que ele não teria sido um candidato mais viável à presidência do que o Amoêdo. O que quer dizer que a efetiva representatividade de Mourão tende a zero. Portanto os votos que tornaram Mourão vice presidente do Brasil são votos conservadores. Ao fazer a declaração pró-aborto, o general apenas revela que esteve escondido em um cavalo para adentrar no novo governo… E imagino que ele deva pensar que a tática é muito nova e sofisticada…
Após eu deixar claro que Mourão está traindo o movimento conservador brasileiro e que se mostra como uma alternativa progressista porque não tem nenhuma representatividade entre grande parte dos eleitores de Bolsonaro (e, portanto, não o poderia substituir a não ser que este morresse), cabe analisar dois pontos.
O primeiro trata da legitimidade de um governante e do poder de fato. Um governante tem sua legitimidade assegurada por um conjunto de fatores que têm origem na teoria dos dois corpos do rei. O termo investidura tem tanto significado por remeter a esta questão, uma vez que o corpo físico passa temporariamente a representar um corpo místico, que representa a liderança de um povo (e não entrarei em detalhes ou busco aqui precisões). Importante é que o corpo físico de um político só se torna capaz de vestir o corpo místico quando o povo que é representado vê naquele legitimidade. As dimensões da legitimidade são a popularidade, a credibilidade e as premissas jurídicas. Percebe-se que, após os atos praticados, Mourão só teria a última dimensão e sua legitimidade seria semelhante a de Temer. Seu poder, desvinculado da massa que elegeu Bolsonaro, seria meramente condicional (seja por conveniência, alinhamento de objetivos ou mera troca de favores).
Por último, é impossível acreditar que um político e militar de alta patente faz movimento tão temerário sem apoio de um grupo. Aqui está o maior mistério, que estou longe de descobrir (e também não vi ninguém perto). Estaria o grupo de Mourão antecipando um cenário em que, com Bolsonaro fora por qualquer que seja o motivo, seria uma alternativa à volta da esquerda ao poder? Ainda que a intenção não seja má, cria uma via alternativa para gente desesperada que seria capaz de assassinar o capitão; desnecessário dizer que se trata de péssima estratégia. Ou estaria o tal grupo interessado em colher frutos econômicos em grande velocidade sacrificando para isto a nossa dignidade, cultura e integridade territorial no longo prazo (com a inevitável volta da esquerda), um replay de 64 em um cenário mundial que não permite mais erros? Neste caso, estaríamos diante de um verdadeiro e imperdoável crime de lesa pátria.
Ambos os cenários são péssimos e prefiro – ou preciso – não chegar a uma conclusão; esperarei já sem esperanças que Mourão cale a minha boca…
Obrigado pela grande contribuição Vieira.
Olhos atentos.
Vieira, se acha que o Mourão é um progressista, você não tem a mínima ideia do que seja libertarianismo minárquico.
Um progressista não lê e nem concorda com Mises, Ayn Rand, Voltaire, Hayek, Friedman, etc.
Há vários problemas nas suas afirmações, sendo o maior deles este: “Um progressista não lê e nem concorda”. Trata-se da mesma bobagem que os marxistas utilizam para não estudar nada fora da literatura alinhada com a ideologia que escolheram defender…
Não sou minarquista, mas li e concordo com várias das ideias de Mises, Hayek, Rand, etc..
Mas a parte mais interessante da sua afirmação é colocar o homem contrário à privatizações como adepto do “libertarianismo minárquico”.
Ah, os libertários. Também já fui um, por 2 meses…