Em uma sessão espírita, surgiram o Barão de Itararé, Juó Bananére, Pafúncio Semicúpio Pechincha, Puff e Puck, K. Lixto, Mendes Fradique, todos de uma vez. Diante de tantos e tão renomados humoristas da mais antiga cepa do Brasil, os presentes se apressaram em cumprimentos, todos querendo uma “palinha” das piadas refinadas de antigamente. Mas Mendes Fradique perguntou:
– O que está acontecendo ora no Brasil?
A plateia, envergonhada, quedou-se em um silêncio sepulcral. Um dos médiuns tomou coragem e soltou a palavra:
– Sr. Fradique, vivemos um dos momentos mais vergonhosos da História do Brasil. Imagine o senhor que houve um presidente, em décadas passadas, que instituiu a corrupção como forma de governo no país! Foram sucessivos escândalos, uma verdadeira pilhagem aos cofres públicos, bilhões e bilhões de reais, talvez um trilhão deles…
Diante disso, Juó Bananére exclamou:
– Mai niente de piu mudó per cá?
O médium continuou:
– Até mudou, um tanto. Uma operação da Justiça e da Polícia conseguiu prender muitos desses políticos corruptos, bem como seus cúmplices e os corruptores. Inclusive o presidente, foi parar em uma cadeia, na cidade de Curitiba.
– Alvíssaras! Que notícia maravilhosa, incrível! Pois que algum barão acaba preso, enfim! – Exclamou Pafúncio Pechincha.
– Ah, mas a coisa não é tão simples. Foi eleito um novo presidente, que é justamente o contrário do antigo corrupto. Mas muito ao contrário, é um militar, enquanto o outro era um sindicalista, é um homem de hábitos espartanos, enquanto o outro não escondia sua afeição pela bebida, é um homem de uma moral rígida, enquanto o outro lambuzou-se em mentiras. Esse presidente está tentando mudar o país, mas os políticos que ainda seguem o antigo corrupto, mesmo que preso, tentam todo tipo de artimanha e truques sujos para derrubar o atual.
Puff não se conteve:
– Mas o antigo presidente está preso?
– Está! – Respondeu outro médium, entrando na história.
– E como é possível que as pessoas sigam uma pessoa que está na prisão por corrupção, e que sabidamente saqueou os cofres públicos? – Redarguiu Puck, fazendo dobradinha com Puff, como sói acontecer.
– O negócio é complicado… o partido ao qual o corrupto pertence ainda mente, e mente muito, para a imprensa, para o público, para todo mundo. O ex-presidente é um homem de carisma, tem muita gente que acredita nele como se fosse uma devoção.
K. Lixto indagou:
– Trata-se de um novo padre Cícero? Ou será uma espécie de Antônio Conselheiro?
– Não, nada disso! O ex-presidente preso é um homem corrupto, como eu disse! – Respondeu o primeiro médium. – Mas pode ser que algumas pessoas, ignorantes ou mal-intencionadas, o pintem como tal. Mas isso está dando muito trabalho aos cidadãos de bem. O antigo governo desse partido corrupto ainda traz muitas pessoas que compartilham das mesmas ideias populistas que o ex-presidente alardeava. Especialmente na Justiça.
– Como assim? – Perguntou Mendes Fradique.
O primeiro médium ficou constrangido. Não queria falar sobre o tema. Mas o segundo novamente interveio:
– O ex-presidente está preso, em Curitiba, como a gente disse. Ocorre que está em um prédio da polícia, que não é bem uma prisão, ocupando uma sala. Nesse lugar, as pessoas entram e saem como se fosse um escritório comercial, para ir ver o ex-presidente. A manutenção dele ali custa muito caro aos cofres públicos, não é o lugar adequado para o cumprimento de uma pena…
– Mas então tirem o homem de lá! – Exclamou K.Lixto.
– Então… tentaram. A juíza que cuida do processo do ex-presidente deu ordem para que ele fosse transferido para São Paulo, para um presídio.
– Ué? Icho non stá cherto? – perguntou Juó Bananére.
– É, deveria estar. Mas aqui no Brasil as coisas não são como deveriam ser.
– Fui eu quem disse isso, há cem anos! – Exclamou Mendes Fradique.
– O problema foi que o partido desse ex-presidente, mais alguns outros políticos, na verdade uns 70 deles, morrem de medo de imaginar a si mesmos em um presídio. A ordem dessa juíza soou para eles como uma afronta. Eles estavam no Congresso, votando uma lei muito importante, mas até o presidente da câmara ficou penalizado com a transferência do ex-presidente corrupto para um presídio, então liberou todos os interessados para irem até o Excelso Tribunal, impedirem a transferência.
– Ah, nesse caso, vamos embora! Vem no nosso lugar um homem mais capacitado para tratar desse assunto. – Disse Mendes Fradique.
Imediatamente, foram-se. Mas um dos médiuns permaneceu incorporado, e disse:
– Boa noite a todos! Sou Rui Barbosa!
Um “ooh!” de espanto generalizou-se pela sala. O renomadíssimo jurista, dando o ar da graça, retornando à Terra, naquele humilde centro espírita?
– Ouvi a última parte. Quer dizer que a Juíza que cuida da Execução Penal deu a ordem de transferência? – Perguntou Rui Barbosa.
– Isso! – Responderam todos.
– E o ex-presidente tem advogado?
– Tem sim! – Respondeu o segundo médium – Mas é um sujeito sem muita habilidade, vive brigando com os juízes e com os promotores, leva o caso para o lado pessoal, ignora as provas que existem no processo…
– Ignora as provas? É beligerante contra todos? Mas isso é a receita certa para o fracasso! Um bom advogado deve convencer o juiz de suas teses! – Espantou-se Rui Barbosa.
– É, mas não é assim que ele age. Ele não tenta convencer, ele tenta impor.
– Bom, e por que os políticos foram ao Excelso Tribunal?
– Justamente para pedir que os Ministros de lá impedissem a transferência do ex-presidente.
– Mas não há um Tribunal no Estado em que a Juíza deu a ordem? Ela é da Vara de Execuções Penais, não? Qual o Tribunal imediatamente acima dela? – E Rui Barbosa parecia bem intrigado.
– Tem sim, é o Tribunal Regional Federal de lá.
– E por que não foram àquele Tribunal?
– Porque esse Tribunal já condenou o ex-presidente outras vezes. No entanto, o Excelso Tribunal parece mais simpático à causa do corrupto, e como ficava ali do ladinho do Congresso…
– Mas isso é supressão de instância? Ninguém percebeu isso? – Exclamou Rui Barbosa.
– É, um dos Ministros até disse isso. Mas outros 10, e até a representante do Ministério Público, ignoraram por completo, e consideraram que não poderia haver a transferência do ex-presidente corrupto para um presídio.
– Mas isso os torna perigosamente suspeitos para tratar de qualquer outro caso! Não era o juízo competente, o homem está preso em lugar inadequado, esse é um julgamento muito estranho! – E Rui Barbosa ficou indignado!
– É, mas foi o que aconteceu. Esses Ministros têm tomado decisões muito estranhas. Dão Habeas Corpus para traficantes assassinos, impedem investigações contra as pessoas envolvidas em falcatruas, despacham em processos favorecendo empresas.
– E o povo não fala nada? Não faz nada? – Perguntou Rui.
– É… reclamam bastante, conversam, mas nada de realmente efetivo.
– Bom, se o povo continua pachorrento, e de acordo, alguma coisa deve ser feita. O senhor sabe tudo o que aconteceu naquele Excelso Tribunal? – Perguntou Rui Barbosa para o segundo médium.
– Ah, sei sim, eu sou advogado, também!
– Então me permita… – E Rui Barbosa incorporou no segundo médium.
– Papel e caneta! – Disse Rui.
E começou a psicografar o novo Código de Processo Penal:
“Art. 1. Se alguém peticionar alguma coisa e reunir pelo menos 70 (setenta) pessoas que ocupem o Excelso Tribunal, será imediatamente atendido, seu pedido imediatamente julgado e deferido.
- 1º – Não importa se houver supressão de instâncias;
- 2º – Este Tribunal tem competência extensiva e inclusiva de todas as matérias jurídicas;
- 3º – O comando do “caput” se aplica exclusivamente a políticos e militantes de partidos de esquerda, centro-esquerda e centro, bem como a pessoas que tenham seu nome envolvidos em quaisquer ilícitos;
- 4º – Estão excluídos da proteção deste artigo os cidadãos de bem, pessoas do espectro político de direita, as pessoas sem recursos que buscam tratamento médico, remédio, alimentação, etc.
Art. 2. Fica proibida qualquer investigação contra a pessoa do jornalista Glenn Greenwald, por qualquer órgão da administração pública, direta ou indireta, incluindo Polícia Federal, COAF, Ministério Público, etc., por qualquer conduta que ele apresente.
Parágrafo único: Se o jornalista Larry Rothmann retornar ao Brasil, será preso e sumariamente fuzilado, seu corpo será carbonizado e as cinzas serão jogadas no Lago Paranoá, em Brasília – DF.
Art. 3. É de competência exclusiva e extensiva deste Tribunal a instauração de inquéritos, condução de investigações, produção de demais prova, indiciamentos e relatório desse inquérito, bem como a apresentação de denúncia, abertura de processo, instrução desse processo e sentença, em instância única, sem recursos quaisquer, vedados inclusive os Agravos de qualquer espécie e os Embargos de Declaração.
Parágrafo único. Essa competência não se configura tribunal de exceção, porque o Tribunal diz que não.
Art. 4. Se alguém falar, escrever, desenhar, usar libras, gestos, mímica ou qualquer outro tipo de comunicação, expressando-se a respeito deste Tribunal, no todo ou qualquer de seus Ministros, individualmente ou em grupos, e tal expressão for considerada ofensiva, desrespeitosa, injuriosa ou caluniosa, a critério e tirocínio deste Tribunal, isoladamente ou em grupo, será imediata e incondicionalmente preso.
- 1º. Caso esteja em aviões ou outros meios de transporte que impossibilitem a imediata detenção, inclusive com algemas, o agente delituoso será detido e algemado assim que chegar ao solo ou desembarcar em terra firme.
- 2º. Nenhuma política de desencarceramento é aplicável a esses réus.
- 3º. A proibição do uso de algemas não se aplica a esses réus.
- 4º. As tipificações e penas deste artigo são igualmente aplicáveis a quem fizer qualquer comentário sobre a aparência física, indumentária, porte, voz, modo de expressão, histórico pessoal dos Ministros, isoladamente ou em grupo.
Art. 5. É expressa e definitivamente proibido que qualquer dos Ministros deste Tribunal seja investigado pela Receita Federal, COAF, Polícia Federal, ou quaisquer outros órgãos da administração pública, direta ou indireta. Nenhum inquérito, processo ou procedimento investigatório pode ser iniciado, realizado ou concluído contra qualquer dos Ministros deste Tribunal.
- 1º. Os comandos do “caput” se estendem a qualquer organização ou pessoas, naturais e/ou jurídicas, da sociedade civil, inclusive órgãos e agentes de imprensa, a critério deste Tribunal.
- 2º. Nenhuma reportagem, entrevista ou colhimento de qualquer declaração dos Ministros deste Tribunal pode ser divulgada, sem consentimento prévio deste Tribunal.
Art. 6. Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros, a critério e tirocínio deste Tribunal.
Art. 7. Os integrantes deste Tribunal não pertencem a nenhuma espécie animal, vegetal ou mineral, são manifestações corpóreas do Tao Universal.”
Terminada a redação, todos se entreolharam, surpresos com a dureza do texto. O segundo médium, ainda em transe, disse:
– اه! اوس تاسو ټول وږی یاست!
Todos o acudiram, fazendo-o voltar a si. Gradativamente, o segundo médium começa a tomar consciência. Quando a sentiu suficiente, exclamou:
– Gente! Acho que não era o Rui Barbosa! Incorporei o Hamurabi!