A questão da posse e do porte de arma no Brasil, no período compreendido entre 1941-1997, estava no âmbito da Lei de Contravenções Penais, Decreto 3.668/1941, assinado por Getúlio Vargas, especificamente em seu artigo 19:
“Art. 19. Trazer consigo arma fora de casa ou de dependência desta, sem licença da autoridade:
Pena – prisão simples, de quinze dias a seis meses, ou multa, de duzentos mil réis a três contos de réis, ou ambas cumulativamente.”
A contravenção pode ser entendida como um “delito menor”, apenado com prisão simples e não com reclusão, como o crime. Isso quer dizer, na prática, que mesmo nos casos de flagrante delito, quando a pessoa é pega “com a mão na massa”, não fica presa, pode pagar fiança. No caso do crime, se houver flagrante delito, a pessoa fica presa, sem possibilidade de fiança, e a pena já pode se iniciar em regime fechado. Ou seja, até 1997, não era crime portar arma, era contravenção. Sobre a posse da arma não havia qualquer penalização – não era crime, nem contravenção. O cidadão podia comprar uma arma, registrá-la e mantê-la em sua casa ou em dependências de sua casa (jardins, garagem, etc.). Sempre houve, entretanto, regulamentos a respeito das armas privativas das forças armadas, que eram proibidas – e nesse caso, é crime o seu porte: fuzis, metralhadoras, granadas, etc., de alto calibre (7,62 mm, por exemplo).
No período entre 1980 até 2003, houve uma disparada da taxa de homicídios no Brasil, contudo. As causas, não pretendo investigar aqui, mas indico o livro de Bene Barbosa, “Mentiram para mim sobre o desarmamento”, Editora Vide, 2015, que trata seriamente o tema.
Já em 1997, Fernando Henrique Cardoso tornou crime o porte e a posse de armas (Lei 9.437/97), que estipulava:
“Art. 10. Possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor à venda ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda e ocultar arma de fogo, de uso permitido, sem a autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Pena – detenção de um a dois anos e multa.”
A partir de então o porte e a posse de arma tornaram-se crimes: a pessoa que fosse flagrada nas ruas com armas de fogo seria presa com pena de detenção. Nesse caso (penas de detenção), considerando ser o réu primário (primeiro crime) e de bons antecedentes, com residência e ocupação, podia-se obter judicialmente o “sursis”, que é a suspensão condicional da pena.
Não foi o suficiente, entretanto. A mídia, em fúria, continuava martelando que a presença das armas nas ruas era o principal motivo da disparada das taxas de homicídio. Houve uma espetacularização de destruição de armas, com jornais impressos e emissoras de TV batendo bumbo incessantemente sobre o tema. Cada vez que eram feitas apreensões de armas, estas eram exibidas em praça pública, com rolos compressores as destruindo, os repórteres e a população comemorando o evento, como na foto ao lado. Um carnaval.
O Senador Gerson Camata (MDB) elaborara um Projeto de Lei do Senado (PLS), nº 292/1999, que é o embrião do Estatuto do Desarmamento. O projeto foi engavetado, porque considerado como uma medida muito dura, naquele ano de 1999, além de que a Lei de FHC havia sido recentemente aprovada e, embora estivesse sendo bastante questionada pela opinião pública, ainda havia uma considerável bancada de direita na Câmara e Senado, encabeçadas pelo PSDB e PFL.
As eleições de 2002 (Lulinha “paz e amor”) mudaram não só a cadeira de presidente, mas também a composição do Congresso. Em 2002, as bancadas de partidos de esquerda e centro-esquerda, todas elas favoráveis ao desarmamento total, querendo apenar o porte de arma com reclusão, bem como proibição do comércio de armas no Brasil. Houve até quem falasse que o Brasil seria um “paraíso sem armas”, e veio todo aquele discurso de “tolerância”, “amor”, etc., e a comoção popular pressionava os demais Senadores e Deputados, de centro, centro-direita e mesmo os da direita. Muitos encaparam o discurso pelo desarmamento e da proibição da comercialização de armas.
Então o deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (PT/SP) “desengavetou” o PLS 292/1999 de Camata, transformando-o no P.L. 1555/2003 da Câmara, apresentado em 24/07/2003. O trâmite foi tumultuado, até que em 23/10/2003, foi votado e aprovado no Plenário da Câmara, com apenas 8 votos contrários declarados. Encaminhado ao Senado, novamente como PLS 292/1999 também foi votado e aprovado, transformando-se na Lei 10.826, de 23/12/2003, por sanção de Lula.
A partir daí o crime de porte de arma (art. 6º da Lei) passou a ser apenado com reclusão. Também a comercialização de armas (art. 35) passou a ser crime! Mas esses não foram os únicos pontos polêmicos da Lei: a figura da posse irregular de arma de fogo foi criada, conforme o artigo 16 do Estatuto, assim entendida aquela que não foi autorizada pelo órgão competente, que é a Polícia Federal. Não havia previsão legal para a posse de arma, somente para o porte. Para pedir essa autorização do porte (e por extensão, também a posse), o cidadão tem que comprovar idoneidade, bons antecedentes, não responder a processos ou inquéritos, aptidão psicológica e ter curso de tiro (capacidade técnica). O mero registro da arma não autorizava mais a posse, como antes de 1997, bem como tem que ser renovado a cada cinco anos.
Mas não é só. A Lei 10.826/2006 foi regulamentada pelo Decreto 5.123/2004. Diga-se que DECRETO é uma norma aprovada pelo PODER EXECUTIVO (Presidente da República), sem necessidade de tramitação no Congresso (que é o Poder Legislativo). Por esse Decreto, o porte de arma de fogo era expedido pela Polícia Federal em caráter excepcional, isto é, somente em casos extremos, e mais ainda: tratava-se de um ato administrativo discricionário (não vinculado) do Delegado de Polícia Federal. Explique-se, neste ponto, que os atos da Administração Pública (autorizações, alvarás, licenças, etc.) podem ser:
- Vinculados: se o cidadão reuniu todas as condições (idade, documentação, registro, capacidade técnica, aptidão psicológica, demonstração da necessidade, etc.), o Delegado de Polícia Federal (que é a Autoridade Administrativa) deve, obrigatoriamente, conceder a autorização;
- Discricionários: mesmo que o cidadão tenha reunido todas as condições, como acima, o Delegado de Polícia Federal pode recusar a autorização, sem ter que explicar por que.
Ou seja: mesmo que se reunissem todos os documentos (mais que 25 anos, comprovação da necessidade da arma de fogo, demonstração da capacidade técnica, aptidão psicológica, etc.), o Delegado de Polícia Federal poderia dizer simplesmente “NÃO”, e era não mesmo. Ponto final.
Em 2005, houve então uma movimentação dos setores à direita, para que fosse revogada a proibição do comércio de armas do Brasil. Com isso, visava-se que a posse também fosse liberada, com a alteração do Decreto 5.123/2004 no artigo que tratava da “posse irregular”. Houve então um referendo, o que é diferente de plebiscito:
- Plebiscito: consulta popular sobre um tema de lei a ser elaborada;
- Referendo: consulta popular sobre lei já promulgada.
E foi feito esse referendo, em 23/10/2005. Nele, 63,95% dos brasileiros votaram contra o artigo 35 da Lei 10.826/2003, que proibia o comércio de armas no Brasil.
Entretanto a violência apenas deu uma trégua entre 2003 e 2005. A partir desse ano, voltou a crescer, bem como a taxa de homicídios! Isso foi divulgado pelo Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, instituição mais reconhecida no Brasil na pesquisa desses dados.
O número de homicídios só cresceu, não importando a Lei de FHC (indicada no gráfico com a seta azul) e o Estatuto do Desarmamento (indicado no gráfico com a seta vermelha). Houve queda de 2003 até 2005, oscilação até 2007, e a partir daí não parou mais de crescer, até 2016.
Veja-se que ainda não há dados disponíveis sobre os anos de 2017 e 2018, eis que o Atlas da Violência do Ipea é publicado com intervalos anuais, sendo o último de junho de 2018, referindo-se a dados até 2016! Ao contrário do que muita gente diz nas redes sociais, não houve 62.500 homicídios no Brasil em 2018, houve 62.500 homicídios no Brasil em 2016! Os números exatos são os seguintes:
Ano | Homicídios | Taxa (homicídios /100.000 hab.) |
1997 | 40.531 | 25,94 |
2003 | 51.534 | 29,14 |
2016 | 62.517 | 30,33 |
Colocando-se o número de homicídios nos mapas do Brasil abaixo, é visível que desde 1997 até 2016, ele só cresceu. Algo está muito errado com as “teorias progressistas” encampadas pela esquerda, porque elas não surtiram efeito!
Tanto a Lei de FHC quanto o Estatuto do Desarmamento foram inúteis para conter o crescimento da taxa de homicídios e do número de homicídios. A primeira Lei nem alterou a trajetória dos homicídios, a segunda teve um efeito meramente paliativo, depois mostrou-se ineficaz.
Óbvio que é necessária uma nova Lei. Porém, para isso seria necessária sua apresentação no Congresso, que seria apreciada por um sem número de Comissões, depois votada na Câmara de Deputados, daí levada ao Senado, onde seria novamente apreciada por “n” Comissões e outra vez votada, para então ser aprovada. Há uma boa possibilidade de isso acontecer, dado que a composição da Câmara e do Senado atuais teve um significativo aumento de deputados de direita e centro-direita e um decréscimo de deputados de esquerda e centro-esquerda, o mesmo acontecendo no Senado. Mas não no curto prazo. A edição do projeto anticrime de Sérgio Moro estabelece penas mais duras, inclusive, para o porte ilegal de armas. Neste momento, percebe-se que a intenção do Executivo é penalizar as armas ilegais, para depois poder-se abrir brechas para que o cidadão de bem possa portar armas legalmente. Estamos em tempos de faxina.
Contudo, no Decreto Regulamentador não há uma linha sequer sobre a POSSE da arma de fogo, que ficou sob a tutela da Lei apenas, que fala em posse irregular de arma de fogo, sem falar sobre a posse regular da arma de fogo. Ora, se a Lei não atribui crime a certa conduta, significa que ela não é crime! Princípio constitucional básico: não há crimes e nem penas sem lei anteriores que os definam! Nessa brecha legal que o Presidente Bolsonaro e o Ministro Sérgio Moro agiram: estabelecer a posse regular da arma de fogo por meio da reedição do Decreto 5.123/2004, dentro dos limites da Lei 10.826/2003 (o Decreto, sendo uma norma de edição do Executivo, não pode contrariar a Lei).
Portanto, são injustas as críticas que foram feitas nas mídias sociais a respeito do Decreto assinado em 15/01/2019: ele não foi nada tímido, ele foi apresentado dentro dos limites possíveis, sem contrariar a Lei 10.826/2003.
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