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A questão da Autonomia/Independência do Banco Central – Parte V

Prezados leitores:

Publicamos hoje a quinta parte deste excelente material produzido pelo economista Lívio Oliveira, que trata de forma didática e detalhada, da questão da autonomia/independência do Banco Central.

Caso tenha perdido os artigos anteriores, acesse-os facilmente pelos links abaixo:

Parte I    Parte II    Parte III    Parte IV

 

Continuação:

 

4. CRÍTICAS AO SUPORTE TEÓRICO-EMPÍRICO DA INDEPENDÊNCIA DO BANCO CENTRAL (CONTINUAÇÃO).

 4.3 A controvérsia em torno da política monetária ótima: regras x discricionariedade e a posição da Escola da Escolha Pública: A literatura destaca duas posições principais em relação à autonomia/independência do banco central: os teóricos que defendem a fixação de metas para a política monetária e aqueles que propõem medidas discricionárias de atuação do banco central. Medidas discricionárias são aquelas que não estão sujeitas a regras fixas, em que existe liberdade de ação, dentro do que a lei permite. Os defensores de fixação de metas afirmam que o mercado tem a capacidade de se autorregular e, portanto, prescinde da intervenção governamental, enquanto os discricionaristas defendem o oposto dessa ideia.

Embora pareça óbvia a conexão entre a defesa dos postulados quantitativistas da moeda (neutralidade, causalidade, exogeneidade, etc) com a proposição de independência do banco central, ela nem sempre se confirma. Existem teóricos como Hayek, Friedman e Lucas que, embora aceitem o binômio neutralidade da moeda-taxa natural de desemprego, bem como a crença na autorregulação dos mercados, não defendem concomitantemente a independência da autoridade monetária. Segundo esses autores, um banco central independente não se coaduna com a autorregulação dos mercados, pois tal autonomia lhe confere um poder de interferência muito grande na economia, em decorrência dos potentes efeitos que a política monetária teria no curto prazo. Friedman recomenda até mesmo a extinção dos bancos centrais, afirmando que suas funções poderiam ser exercidas pelo Departamento do Tesouro, pois o controle da oferta monetária não adviria da independência da autoridade monetária, mas sim de uma legislação bem estruturada. Já Hayek, para quem a moeda não é de fato neutra, deveria ser neutralizada com o objetivo da busca pela estabilidade. Segundo esse autor os ativos monetários deveriam sempre ter lastro real para evitar inflação. Hayek também defendia o retorno do sistema bancário ao Free Banking, onde os bancos comerciais converteriam seus ativos e passivos em lastro de valor real. A concorrência entre esses bancos pela emissão de suas notas solucionaria a questão do pagamento de juros sobre seus ativos, determinando também o fim da senhoriagem.

Em diversas experiências, a tentativa da fixação de regras para o crescimento dos agregados monetários revelou-se particularmente frustrante. Foi assim com a experiência monetarista pioneira na Inglaterra, a partir de 1979, no gabinete conservador de Margaret Thatcher. Projetou-se um crescimento da oferta monetária, definida como “esterlina M3”, entre 7 e 11%. O crescimento verificado foi de 22% e o nível de preços duplicou. Embora o governo não tenha reconhecido, por seguir uma linha monetarista, isso aconteceu em função da elevação de custos, em que o aumento de impostos teve um importante destaque.  Os postulados quantitativistas foram desmentidos nesse caso, como em tantos outros que se seguiriam em outros países: a premissa da causalidade foi invertida. O Banco da Inglaterra não se mostrou capaz de controlar o crescimento da oferta monetária, tornando pouco confiável a exogeneidade e a controlabilidade da moeda. A proporcionalidade foi às favas e, por fim, a moeda não se mostrou neutra. O governo tentou manter a iniciativa monetarista por mais algum tempo, mas os seus resultados foram desastrosos, levando-o a abandona-la.

Consequências semelhantes teve o experimento monetarista levado a cabo por Paul Volcker, em 1979, então presidente do FED, banco central norte-americano. Para combater a inflação, sua gestão adotou limites rígidos para o crescimento dos agregados monetários M1 (cédulas e moedas em circulação mais depósitos à vista no sistema bancário) e M2 (M1 mais depósitos a prazo), procurando regula-los através do controle das reservas bancárias, intervindo no mercado sem considerar os efeitos resultantes nas taxas de juros. O que se viu foi outra decepção: as taxas de juros e de inflação dispararam no ano seguinte. Vários instrumentos monetários alternativos e operações financeiras foram criados para burlar o controle do FED, tais como as “New Account”, fundos de mercado monetário, transferências para bancos não-membros do FED ou para bancos estrangeiros. Apesar de o Congresso norte americano aprovar novas regulamentações bancárias, através do Monetary Control Act de 1980, com o objetivo de eliminar as brechas na legislação, como a exigência de reservas mínimas para todas as instituições bancárias, incluindo as que não estavam filiadas ao FED e as filiais norte-americanas de bancos estrangeiros, tais medidas se mostraram inócuas. Após um período de extrema volatilidade nas taxas de juros, câmbio e inflação, além de grande número de falências de empresas em decorrência de uma violenta queda na atividade econômica (a pior desde a grande depressão) as metas de crescimento dos agregados monetários foram abandonadas. O FED optou, em 1982, por retornar ao método anterior de controle da taxa de juros, perseguindo uma política híbrida de combate à inflação e necessidade de reativação da economia.

Friedman reconheceu publicamente o desastre da política monetarista norte-americana desse período, mas atribuiu os erros da mesma ao governo, o qual considerava não ter seguido estritamente a teoria. O fato é que não foram apenas as experiências monetaristas do Reino Unido e dos Estados Unidos, com base no controle dos agregados monetários, que falharam. Onde quer que se tenha perseguido uma política de metas de crescimento para esses agregados houve decepção. O banco central do Canadá seguiu esse objetivo e recuou posteriormente. Como justificativa Gerry Bouey, ex-presidente do Banco do Canadá afirmou: “Nós não abandonamos os agregados monetários. Eles é que nos abandonaram”. Tais foram também os casos do México e da Argentina na década de 90.

Uma linha de argumentação interessante é aquela preconizada pela Escola ou Teoria da Escolha Pública (Public Choice). Para os teóricos dessa escola, a independência do banco central poderia não se traduzir na busca primordial pela estabilidade de preços, mas poderia resultar num insulamento institucional. Segundo esse raciocínio, a independência da autoridade monetária estimularia a sua burocracia a buscar outros objetivos em detrimento da estabilidade da moeda, como mais poder, ganhos financeiros e status em relação a outras esferas governamentais, às quais não teriam necessidade de dar satisfação pelo que fizessem. Por isso, os adeptos da Escolha Pública tornam enfática a necessidade de explicitar claramente a fixação das regras operacionais em torno das quais a autonomia do banco central se daria, incluindo principalmente a definição sobre a quem o staff do banco estaria submetido, em termos de questões como escolha, demissão, avaliação de desempenho, dentre outras.

Os teóricos que defendem a independência do banco central costumam argumentar que a mesma está associada a menores taxas de inflação nos países que a adotaram. Mas isso não significa que a estabilidade de preços tem como pré-condição a independência total da autoridade monetária em relação ao governo. Existem países, como o Japão, que mantêm a inflação sob controle e em níveis relativamente baixos e onde seu banco central, mesmo com grande autonomia, busca seguir, por obrigação legal, uma política monetária coordenada com o Estado. No entanto, com o aprofundamento do processo de globalização, a tese de independência do banco central tornou-se proeminente em diversos países. Isso aconteceu, sobretudo, pela associação desta tese à estabilidade e menor variabilidade inflacionárias, o que diminui as incertezas e os riscos para um sistema financeiro cada vez mais transnacionalizado, um dos principais motores da globalização.

Existem muitos estudos que procuram avaliar o grau efetivo de independência dos bancos centrais. Há autores que procuram medir essa autonomia através do grau de comprometimento que a autoridade monetária teria com o controle da inflação, desprezando outros objetivos, como o pleno emprego. Para outros autores, a mensuração é feita avaliando como o staff do banco central é escolhido, duração do mandato de seus diretores e interface de contato entre a autoridade monetária e o governo. Porém, um longo tempo de permanência dos diretores de um banco central nos seus cargos não implica , necessariamente, em isolamento das pressões políticas. Pelo contrário. Pode ser que estes diretores sejam tão submissos à orientação do governo que este não tem interesse em demiti-los. Ainda há outros estudiosos que propõem medir o grau de independência a partir de regras formais de controle, como duração dos mandatos dos dirigentes do banco central, procedimentos de escolha e demissão, elaboração do orçamento do setor público e fixação de limites ao seu financiamento, dentre outras.

Levando-se em consideração as diversas abordagens propostas para medir o grau de independência do banco central, o fato é que não existe um consenso quanto aos moldes institucionais de independência que deveriam ser perseguidos. Mesmo nos países onde os bancos centrais são independentes, a autonomia não é seguida tão estritamente em relação a legislação como seria de se esperar. Existem países onde aspectos sociológicos são decisivos quanto a essa questão, como o Japão, onde a centralização política, a busca pelo consenso e as razões de Estado têm importância fundamental. O Banco Central Japonês (BoJ), que tem autonomia legal, tem uma forte atuação no mercado acionário nipônico, comprando ações  de um grande número de empresas integrantes do Índice Nikkei, como forma de estimular a economia japonesa em períodos de recessão ou deflação.  Já nos Estados Unidos e na Inglaterra desenvolveu-se uma aversão contra a tentação autoritária e por isso suas sociedades criaram sistemas de pesos e contrapesos, para evitar a concentração excessiva de poderes em poucas mãos, buscando-se permanentemente estabelecer o equilíbrio dessa forma. O tipo de independência da autoridade monetária que esses países possuem também tem influência de fortes componentes culturais.

No caso dos Estados Unidos, o FED persegue uma política híbrida, procurando acompanhar o governo na execução de sua política fiscal. Com esse objetivo, o FED tenta manter as taxas de juros num nível adequado ao financiamento do déficit público, ao mesmo tempo em que busca manter a inflação sob controle. Além disso, os seus diretores estão submetidos por lei à prestação de contas de modo regular no Congresso, que pode alterar as atribuições e poderes delegados à autoridade monetária quando de sua criação. Nem sempre o FED exerce em todo o alcance a autonomia que lhe atribui a legislação. Embora o governo não detenha nenhuma participação acionária no banco, este lhe repassa lucros, como a receita de senhoriagem, o que alguns defensores da independência veem como meio de financiamento ao Estado.

Em todas as nações que possuem bancos centrais independentes há algum tipo de mecanismo de controle do governo sobre a autoridade monetária. Os graus de independência são diferenciados e o critério legal de independência não deve ser considerado como parâmetro inquestionável, pois em muitos casos, por diferentes razões, os bancos centrais se eximem de exercê-la de modo pleno. Em decorrência de todos esses fatores que foram expostos, percebe-se o quanto é difícil chegar a um índice adequado de mensuração da independência da autoridade monetária. Caso algum país chegue à conclusão de que deve conceder autonomia ao seu banco central, o tipo e o grau de independência devem ser analisados à luz das especificidades de sua realidade institucional.

*Continua no próximo artigo.

 

 

Lívio Oliveira, para Vida Destra, 15/03/2021.                                                            Sigam-me no Twitter! Vamos debater o assunto! @liviololiveira

 

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2 COMMENTS

  1. Gostei disso aqui “ Os graus de independência são diferenciados e o critério legal de independência não deve ser considerado como parâmetro inquestionável.” E
    Caso algum país chegue à conclusão de que deve conceder autonomia ao seu banco central, o tipo e o grau de independência devem ser analisados à luz das especificidades de sua realidade institucional.”
    O COPOM Comitê de Política Monetária se reúne a cada 45 dias, para analisarem à Economia e decidirem pela taxa básica de juros para os banqueiros, só que quando chega nas pessoas/empresas, repassadas pelos bancos, são juros absurdos! Vou questionar com o Banco Central.kkkkk…
    Parabéns, Livio! Bem explicativo o seu artigo pra sabermos que não é de qualquer forma que funcionam os bancos centrais. Só sei que eles detêm as prerrogativas e nossas garantias estão aquém.

    • Grato pelo comentário Rose. Sobre a questão da taxa de juros, cabe salientar que a SELIC, estabelecida pelo COPOM a cada 45 dias, é a taxa básica de juros que baliza a economia. O juro do Crédito Direto ao Consumidor (CDC), por exemplo, é um bem maior que a SELIC.

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Lívio Luiz Soares de Oliveira. Economista, analista pesquisador, articulista do Vida Destra