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A questão da Autonomia/Independência do Banco Central – Parte IV

Prezados leitores:

Publicamos hoje a quarta parte deste excelente material produzido pelo economista Lívio Oliveira, que trata de forma didática e detalhada, da questão da autonomia/independência do Banco Central.

Caso tenha perdido os artigos anteriores, acesse-os facilmente pelos links abaixo:

Parte I    Parte II    Parte III

 

Continuação:

 

  1. CRÍTICAS AO SUPORTE TEÓRICO-EMPÍRICO DA INDEPENDÊNCIA DO BANCO CENTRAL

 

4.1. Crítica às hipóteses de neutralidade e exogeneidade da moeda: Os teóricos que defendem a endogeneidade da moeda acreditam que a mesma tem influência sobre as variáveis reais da economia. Eles afirmam que a crença quantitativista da exogeneidade monetária estaria equivocada ao supor que a demanda de moeda seja constante ao longo do tempo. Segundo esse pensamento, a tese de que a autoridade monetária controla totalmente a oferta monetária é falsa, pois o público sempre cria alternativas a uma restrição de oferta de moeda. Isso aconteceria através do aumento da velocidade de circulação da moeda ou da criação de novos instrumentos monetários não controlados pelo banco central, com características semelhantes à moeda.  Um exemplo disso seria, segundo esses estudiosos, o surgimento de criptomoedas como o Bitcoin e o Ethereum. Assim, o postulado da causalidade estaria sendo também refutado, dado que está baseado na exogeneidade da moeda. Sendo assim, o objetivo de manter a estabilidade da moeda através do controle estrito da oferta monetária, baseando-se na crença de uma “sintonia fina”, ficaria comprometido diante dessa capacidade de criação de moeda não passível de controle pelo banco central.

Os críticos da Teoria Quantitativa  refutam também a neutralidade da moeda. Eles alegam que a velocidade de circulação da moeda não é estável, o mesmo acontecendo com a demanda de moeda. Isso implica que o postulado da proporcionalidade, ao qual está vinculada a neutralidade, também estaria comprometido, permitindo que variações na oferta monetária fossem neutralizadas por variações na demanda. Com isso, os preços não seriam afetados, ou pelo menos não o seriam na proporção pretendida pela autoridade monetária. Dessa forma, se a autoridade monetária, perseguindo uma política de desinflação, reduz pela metade à oferta monetária para obter uma redução proporcional nos preços, como assegura o postulado da proporcionalidade, tal política poderia ser anulada totalmente segundo os críticos desses postulados. Isso pode acontecer se a velocidade de circulação da moeda duplicar ou se a sociedade criar instrumentos monetários em valor semelhante à quantidade de moeda que foi retirada de circulação. Se os postulados da proporcionalidade e da neutralidade não são verdadeiros, isso implica em dizer que a política monetária pode afetar as variáveis reais de forma permanente, em uma magnitude que irá depender do nível de transações ou da renda e do encaixe real (quantidade) de moeda que os agentes desejam manter. Da mesma forma, a hipótese da existência de uma taxa natural de desemprego fica desacreditada, pois a economia não teria como característica uma situação de equilíbrio.

O economista austríaco Joseph Schumpeter também tratou da questão da neutralidade da moeda (1977). Para ele, a moeda não é neutra. Em sua análise o crédito tem uma importância fundamental na geração de ciclos econômicos. Aqui, a figura dos empresários inovadores assume uma posição proeminente. Para colocar em prática suas ideias, estes empresários recorrem ao crédito, estabelecendo novas firmas que irão competir com aquelas que já existem no mercado. Há um aumento na renda proporcionada pelo influxo de crédito, interpretada pelos consumidores como sendo permanente ao invés de transitória. Por seu lado, os produtores têm a percepção equivocada de que a demanda relativa por seus produtos continuará crescendo, por isso recorrem ao financiamento da expansão de suas firmas através do crédito. Segue-se uma nova onda de criação de empresas, empregos, fluxos de renda e de lucros até o ponto de saturação, que decorre do próprio binômio inovação-crédito, que permitiu a fase de prosperidade. A concorrência estimula a inovação, e as empresas menos capazes de se adaptar ficam com dificuldades de se manter em funcionamento. Os setores onde a produtividade marginal do trabalho é menor tendem a desaparecer diante do processo de obsolescência (desgaste) do capital dos mesmos. Esse processo termina por causar a falência dos setores empresariais menos preparados. Também aqueles empresários que tomaram empréstimos na fase de prosperidade para fazer frente à concorrência, diante da estagnação da demanda e do endividamento passam a enfrentar problemas para saldar suas dívidas. A economia entra em crise tanto pela restrição à liquidez, como pelo desestímulo às inovações, em decorrência da desaceleração da taxa de crescimento da demanda.

4.2. Crítica às hipóteses de transparência, simetria e independência decisória entre agentes: Para que a competição atue como elemento catalisador do equilíbrio de mercado, da forma como é destacada pela teoria das expectativas racionais, é fundamental a existência de simetria e independência de informação entre os agentes. Mas como evidência empírica essas hipóteses não são verdadeiras, já que é muito comum a ocorrência de falhas de mercado e dependência entre os agentes, por exemplo, através da formação de conluios. Isso implica em perda de eficiência da taxa de juros como variável de ajuste do mercado financeiro.

A existência de falha no mercado pode ser verificada, por exemplo, numa crise de confiança nas instituições bancárias, onde ocorre um caso típico de informação assimétrica. A simples suspeita da iminência de uma crise bancária poderia funcionar como uma profecia autorrealizável, fazendo com que a crise ocorresse na prática. Todos os clientes dos bancos, tanto os que soubessem da informação de que a crise não é verdadeira, como os que não soubessem, sacariam seus haveres, supondo que os demais terão o mesmo tipo de atitude. Nessa corrida bancária, os depositantes não fariam distinção entre instituições bem administradas daquelas que não seriam. Por conta dessa seleção adversa, os bancos bem capitalizados seriam tão penalizados quanto os menos capitalizados. Mesmo a divulgação criteriosa da real situação dos bancos não teria como evitar a quebra do sistema financeiro, porque os depositantes menos informados não considerariam aquela informação como sendo suficiente para coloca-los em igualdade de condições com os clientes mais bem informados. Para evitar a quebra, somente haveria um recurso: a existência de um emprestador de última instância, função típica de um banco central. Aliás, Corazza (2001) considera essa função como a que distingue verdadeiramente um banco central de um simples banco governamental ou comercial.  Segundo ele, essa é a função primordial dos bancos centrais desde que foram instituídos, função que não foi desempenhada nem mesmo pelas Clearing Houses do passado, instituições que representaram uma etapa decisiva na centralização bancária. A função de emprestador de última instância contradiz totalmente a crença na capacidade de auto ajustamento dos mercados financeiros. Isso também não corrobora a percepção daqueles que veem como função primordial do banco central a manutenção da estabilidade de preços.

As crises e falências bancárias generalizadas, que ocorriam frequentemente no passado, antes da existência dos bancos centrais, constituem-se num poderoso elemento de dissuasão relativamente à crença de auto ajustamento dos mercados financeiros. Nessa época, os sistemas de free banking, isto é, sistemas bancários livres sem um banco central eram extremamente vulneráveis a crises de confiança e os pânicos financeiros com falências em larga escala eram muito comuns, com consequências desastrosas para toda a economia. A inexistência de regulamentos favorecia a recorrência das crises.  Diante dessa situação, os Estados Nacionais chamaram a si a responsabilidade pela emissão de moeda e instituíram regras para o bom funcionamento do sistema financeiro. Para afastar o fantasma permanente do caos bancário e financeiro é que se estabeleceram os bancos centrais. No período entre as duas grandes guerras mundiais, com o colapso do padrão-ouro, houve uma nítida tendência de instituição de bancos centrais, para exercer a disciplina nos mercados monetário e financeiro, bem como restaurar a confiança da sociedade nos mesmos. Na década de 20, a partir da realização da Conferência de Bruxelas, houve um apoio explícito à criação de bancos centrais em todas as nações. Aproximadamente 50 bancos centrais foram criados entre 1929 e 1952, muitos deles na América Latina. Até 1964, ano em que criou o seu BC, o Brasil era uma das poucas exceções.

Além de terem a responsabilidade de preservar a estabilidade do sistema financeiro, prevenindo a ocorrência de crises, os bancos centrais tiveram um papel de suporte nas medidas de estímulo à economia, através de políticas monetárias de caráter expansionista. Esse fato não se coaduna com a ideia da taxa natural de desemprego, a qual se relaciona com o postulado da neutralidade da moeda. Em diversas ocasiões, esse postulado tem sido questionado, não só através dos efeitos de curto prazo da política monetária sobre as variáveis reais, como também pela importância relativa que o crédito estatal tem assumido, principalmente em setores com maior perfil de risco.

Aliás, em se tratando de financiamento a atividades com maior grau de incerteza quanto ao retorno econômico, convém destacar aqui outra falha típica de mercado, a alocativa. O sistema financeiro, na ausência de regulação governamental, tende naturalmente a discriminar contra certas atividades econômicas, dadas as suas especificidades, principalmente em razão da incerteza quanto ao retorno financeiro. Dentre essas atividades podemos citar a agricultura, micro e pequenas empresas, pesquisa e desenvolvimento científico e tecnológico, grandes projetos de infraestrutura (rodovias, ferrovias, portos, geração de energia). Nesses casos, o financiamento governamental tem adquirido uma importância fundamental. No caso da infraestrutura, principalmente nos países em desenvolvimento, a acumulação do estoque de capital foi realizada predominantemente às custas do crédito estatal. O setor público agiu em muitos desses casos como o empresário inovador schumpeteriano, financiando projetos de larga escala, que não interessavam ou não podiam ser bancados pela iniciativa privada, dadas as exigências em termos de aporte financeiro e grau de risco.  Nas duas últimas décadas, grande parte dessas empresas que ofertam bens públicos e que foram criadas pelos Estados Nacionais tem passado ao controle da iniciativa privada.

No caso do mecanismo de microcrédito, modalidade de financiamento a empreendedores de poucos recursos que por natureza estão excluídos do crédito bancário convencional, é interessante a experiência do Grameen Bank (Banco Rural), criado em Bangladesh em 1976 por Mohamad Yunus, como iniciativa governamental. Esse banco foi estabelecido com o objetivo de conceder crédito a taxas de juros relativamente baixas, a empresários inovadores pobres que não tinham acesso ao crédito bancário privado. Desde a sua criação, o Grameen Bank tem contribuído para fomentar o crescimento da economia bengali, a partir de pequenas empresas individuais que se estabeleceram graças ao microcrédito, retirando da marginalidade econômica milhares de pessoas. A taxa de inadimplência dos tomadores de crédito do banco, mesmo sendo pessoas pobres, é baixíssima: 1,15%.  Iniciativas como essas têm sido copiadas, principalmente em países em desenvolvimento, onde instituições semelhantes ao Grameen Bank tornaram-se uma realidade.  A experiência do microcrédito sinaliza, além de falhas alocativas do mercado, também o quanto de assimetria informacional e de acesso ao sistema bancário existe.

Em relação à independência decisória entre os agentes, foi realizado um estudo para 17 países da OCDE, onde se constatou que os seus desempenhos macroeconômicos estavam relacionados tanto ao grau de independência dos seus bancos centrais como ao grau de coordenação das negociações salariais. Concluiu-se que nos casos em que essa coordenação era relativamente baixa, maior independência se associava a um sucesso maior no combate à inflação. Outro estudo, dessa vez abrangendo 19 países da OCDE, no período que vai do início dos anos 80 até meados da década de 90, concluiu que a eficiência de bancos centrais autônomos no combate à inflação está relacionada ao grau de centralização das negociações salariais. Quanto maior a centralização menor a eficiência e vice-versa. Isso demonstra o quanto as decisões dos agentes econômicos são interdependentes.

 

Continua no próximo artigo!

 

 

Lívio Oliveira, para Vida Destra, 08/03/2021.                                                            Sigam-me no Twitter! Vamos debater o assunto! @liviololiveira

 

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3 COMMENTS

  1. Você fez uma excelente resenha de discussão pré-crise de 2008 sobre o assunto, mas não discorre sobre a Lei complementar aprovada, nem sobre as discussões pós 2008. Aguardarei o próximo artigo. Parabéns, só aprendo!

  2. Lívio, você fez uma excelente resenha de discussão pré-crise de 2008 sobre o assunto, mas não discorre sobre a Lei complementar aprovada, nem sobre as discussões pós 2008. Acredito que ainda o fará, estarei aguardando.
    O que posso dizer é que você ótimo pra explicar com detalhes, suas informaçoes mostram que você é acima da média. Conhece profundamente sobre o assunto. Parabéns, por nos proporcionar conhecer sobre algo!

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Lívio Luiz Soares de Oliveira. Economista, analista pesquisador, articulista do Vida Destra